Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Capítulo 2 – Parte 6 – A Expressão Artística nos Alienados

Observação sobre o texto:
Conforme já comentado em outras partes, deve-se levar em consideração a linguagem e os termos usados por Osório Cesar como vigentes em uma linguagem científica dos anos 1920, que pode soar preconceituosa ou estranha para os nossos dias. Naquele momento ele trazia um novo olhar para o doente mental, dando atenção à sua arte.

...continuação do texto...

Entre todas as artes de movimento, a música é a que mais influência exerce sobre os animais. Sabemos que as aranhas, os cães, os gatos, as serpentes, os cavalos e muitos pássaros sentem o som rítmico musical com prazer. No homem primitivo a música consiste quase exclusivamente no ritmo, que é marcado por instrumentos grosseiros, cujo principal efeito, segundo Ribot, é aumentar a comoção do sistema nervoso. Para isto é usado como indispensável instrumento o tambor. Entre os selvagens da América o tambor é muito louvado. E é com seu auxílio que os índios se embriagam durante horas e horas, ouvindo os sons médios, sem nenhuma significação melódica, que esse instrumento produz. Este processo de embriaguez sonora com o auxílio do tambor encontra-se também em diversos povos de civilização primitiva, entre bruxos, adivinhos, feiticeiros, que provoca nos indivíduos uma espécie de êxtase (1), uma intoxicação motivada pelo som e pelo movimento, ou seja, um estado afetivo determinado diretamente por sensações externas e internas.
O canto dos Botucudos, como descreve Wied (2), parece ser dos mais grosseiros que se possa imaginar na música dos selvagens. “Le chant des hommes ressemble à um rugissement inarticulé qui oscile entre deux ou trois sons, tantôt élevés, tantôt profunds. Ils respirent profondement, mettent leur bras gauche sur leur tête, quelquefois un doigt dans chaque oreille, surtout s’ils ont un public, en ouvrant toute grande une bouche déformée par le botok. Les femmes chantent moins haut et moins désagréablement. On n’entend également que peu de sons qui se répètent continuellement”.
Os instrumentos encontrados entre os índios Parecis por A. Tavares (3) foram as flautas as mais comuns e uma buzina com embocadura de piston, que produz som cavernoso.  
“As flautas são em si; meio tom abaixo do diapasão normal. Formam três grupos naturais: grave, médio e agudo, constituindo o que os compositores chamam uma família, como, por exemplo, nos instrumentos de corda: contra-baixo, violoncelo e violino”.
“A embocadura de todos é semelhante à do flageolet. Têm quatro orifícios. O comprimento varia”.
“Com os orifícios livres, cada qual dá um acorde de mi menor, tom relativo de sol maior: mi2, sol2, si2.”
“O ritmo da música pareci”, diz Tavares, “em regra segue os compassos binário e ternário. Há também nos Fonogramas colhidos, compassos alternantes, cuja regularidade não é conservada em todo o trecho”.  
“O fonograma 14.602 (veja fig. 35) é de um coro em lá maior muito original, quanto à melodia, e surpreendente quanto ao ritmo. É muito incerto. Aproxima-se de 5/4, que é mantido durante os três primeiros compassos; aí se quebra, caindo o coro, ora no compasso binário, ora no ternário. A transcrição deste fonograma foi feita em compasso ¾, para facilitar a leitura”.
A música entre os alienados é muito frequente, observa-se nos manicômios.
De todas as artes que tratamos é a música a que mais se conserva equilibrada no cérebro do alienado. Enquanto as outras manifestações artísticas, principalmente as plásticas (escultura, pintura ), sofrem grandes modificações em sua essência (deformações de todas as espécies; dissonâncias, ritmos quebrados, ideação absurda, etc. ), a música, pelo contrário, na maioria dos casos que temos observado, mostra-se corretamente conservada nos alienados.
André Repond (1*), em um estudo que fez acerca das alterações da reprodução musical na esquizofrenia observou o seguinte:
1 – O que chama mais a atenção na maneira de tocar de todos os esquizofrênicos, é a falta de sensibilidade musical.
2 – Para muitos esquizofrênicos parece não ter absoluta importância o que eles executam, qualquer que seja o humor que eles apresentem.
3 – Uma terceira particularidade é a diminuição vagarosa, embora irregular, do interesse pela música.
“Indivíduos que foram músicos, antes e logo depois do início da moléstia, vão perdendo o interesse pouco a pouco de executantes e de ouvintes. Mas, em alguns casos graves, doentes há que, quando ouvem música, se interessam bastante. Talvez isto se explique pelo fato de que a música provoque certo bem estar, durante o qual os doentes mais facilmente se concentrem”.
“Em alguns casos observamos que, antes da moléstia, certos indivíduos tocavam de preferência músicas clássicas, enquanto que depois de instalada a moléstia só eram capazes de executar valsas e marchas. Em analogia com as outras faculdades, é de supor-se que as funções complicadas também na música são perturbadas com maior facilidade do que as simples; assim, a função musical comporta-se em analogia com a intelectual, cuja decadência, nesta moléstia, não progride com regularidade”.
“No início da moléstia, a vontade de executar ou de compor música é exagerada frequentemente, em analogia com a necessidade comumente observada nos esquizofrênicos de ocupar-se de literatura”.
“Nos nossos casos podemos verificar todos os graus da faculdade do sentimento musical afetivo. Tem-se a impressão de que os doentes simulam sentimentos que já desapareceram. Daí os estranhos maneirismos, exagero de nuanças e a mímica teatral, etc”.
“A perturbação mais notável na esquizofrenia, pela qual a falta de sentimentos afetivos se manifesta, é a perturbação da atenção”.
Em grande parte a observação do autor é verdadeira. Mas, casos há, e não muito raros, nos Hospícios, em que se encontram esquizofrênicos com sensibilidade musical, isto é, com sentimento musical conservado. Conheci um caso bem interessante no Hospital do Juquery, de um preto, com instrução primária rudimentar, músico, e que apresentava uma associação extravagante de ideias, maneirismo acentuado, sem noção do meio e do tempo, cujo diagnóstico feito foi o de demência precoce catatônica e, no entanto, conservava ótima memória musical e executava regularmente vários trechos de músicas de sua lavra, no clarinete – instrumento seu predileto –, observando as nuanças que a natureza da música exigia.
No Hospital do Juquery existe a “Charanga Hebefrênica”, composta exclusivamente de alienados. Vale a pena assistir-se a um ensaio desse pequeno grupo de músicos. São cerca de 15 doentes mais ou menos. A regência está confiada a um parafrênico, com delírio religioso, músico e compositor. Os músicos são todos doentes: dementes precoces, epilépticos, etc. O mestre é autor de vários dobrados e valsas e o repertório da banda se compõe quase na sua totalidade de valsas, tangos, maxixes e dobrados.
Antes de começar o ensaio, o mestre, trepado sobre uma cadeira, com a batuta na mão, explica, com ares de preleção, o sentimento dos trechos musicais. Começa assim o ensaio e leva horas e horas sem uma discussão, sem uma queixa, passando e repassando as frases e os períodos musicais, causando estranha admiração a quem os ouve e os vê.
A valsa que reproduzimos na figura 57 é da inspiração de um esquizofrênico. É o caso do preto de que falamos atrás. As composições desse doente, que ele próprio, solfejando, corretamente escrevia no papel, mostram pouco interesse com relação à originalidade. Os períodos musicais estão certos, a inspiração é sentimental e a forma regular. Não há originalidade; mas nota-se, na concepção, um apanhado geral e muito bem feito dos motivos melódicos das nossas cantigas populares, “choros”.
É uma valsa sentimental, ingênua, como a canção do brasileiro primevo, cheia de anseio e de nostalgia e, por vezes, tocada de um fogo soberano que enfeitiça o amor (1**).
“Nos povos novos”, diz Renato Almeida (1***), “o motivo popular veio com o conquistador e reflete essa dor da adaptação, em que sangrou seu espírito audacioso. Entre nós, no ardor da natureza tropical, cheia de fulgurações, o canto foi melancólico. Melancólico era o índio fugidio e indolente, que vivia a vida cheia de nostalgia, num perpétuo espanto pelas coisas que o cercavam; melancólico era o lusitano, ousado mas triste, vivendo no mar e com a saudade da pátria sempre no coração; melancólico era o negro, caçado, roubado e escravizado, que sofria no cativeiro uma dor irremediável e aniquilante. Todas essas vozes que se levantaram eram um contraste com o cenário de magnífico fulgor. A alma do brasileiro guarda esse fundo trágico, em que o homem teme a natureza e procura vencê-la pela imaginação exaltada, caindo depois em abatimento e langor. E esse primeiro encontro com o meio, esse inquieto e doloroso êxtase ante uma grandeza que maltrata, não encontraremos em símbolos mais vivos do que no canto popular, através da infinda melancolia que resuma, como perfume de flor agreste e maravilhosa”.
A composição musical do nosso doente traz o nome de uma mulher, “Purselia”, talvez lembrança de um passado amoroso.
Comparemos o motivo melódico dessa valsa com o de uma canção dos índios parecis (fig. 35).
Vejamos agora a valsa da fig. 58. Foi composta por outro esquizofrênico, com delírio de grandeza. Julga-se príncipe, filho de Victor Manoel, Rei da Itália, e espera casar-se com uma dama de alta hierarquia. Nesta composição é digna de nota a inspiração musical. Ela tem caráter particularmente original. Os períodos musicais são quebrados por notas sincopadas e apresentam pobreza melódica. As notas se espalham livremente pelas pautas, alheias a qualquer motivo pré-estabelecido. Ritmo inteiramente desorientado, sem caráter de valsa. Poderemos comparar esta forma de desenvolvimento musical com a das composições ultramodernas.
A pobreza melódica e a anarquia de ritmo nas músicas desse doente são o que mais caracterizam a sua originalidade de compositor. Entretanto, é um ótimo músico executante e uma das figuras mais salientes da “Charanga do Juquery”. O seu instrumento predileto é o bombardino.
Num trabalho interessante sobre o ouvido musical dos imbecis, Inhofer (1****) observou que o takento musical é, em grande número de imbecis, superior ao das crianças normais. Igualmente, em indivíduos idiotas bem adiantados o sentimento do ritmo musical se encontra bem conservado, tanto para a recepção como para a reprodução.
De todas as aptidões observadas nos idiotas e nos imbecis, as artísticas e as matemáticas foram as mais notadas por quase todos os psiquiatras. “Mais”, diz Solier (2*), tous les arts ne donnent pas lieu à des tendances analogues, et c’est surtout pour la musique qu’on les reencontre bien plus que pour le dessin, la peinture ou la sculpture”. E, mais adiante: “Comme ces sauvages qui accompagnent leur chant monotone de mouvements cadencés, toujours les mêmes, les idiots qui chantonnent accompagnent aussi leur chantonnement d’un balancement de la tête et du corps”.
“Quelquefois, des idiots, qui ne savent pas prononcer un mot, retiennent du premier coup un air meme assez difficile qu’ils fredonnent juste ensuite. Chez d’autres la musique fait cesser leurs cris ou bien ils adaptent leur balancement à son rhythme”.
Séguin (3*) diz também: “Généralement, l’idiot aime et saisait très bien les rhythmes, je dirai plus: cette faculté que l’on nomme faculté musicale, est le proper des idiots caractérisés. Je n’ai pas vu d’idiots (à moins qu’ils ne fussent frappes de non myotilité ou de paralysie) qui n’exprimassent le plus vif plaisir à l’audition d’um morceau de musique. J’en ai vu un grand nombre qui chantaient juste, quoique parlant mal ou à peine. Ils sont plus sensibles aux rhythmes énergiques, rapidez et gais qu’aux mesures lentes et graves. Sans doute, parce que plus les vibrations sont nombreuses, plus leur action est matériellement énergique. Ils sont également plus sensibles à la musique instrumentale qu’à la voix humaine”.  

Notas de Osório César:

1 – Wallaschek – Primitive Musik. Cit. por Ribot, pag. 139.
2 – Cit. por Grosse, pag. 213.
3 – Roquette Pinto. Rondônia. 2ª ed. Pag. 139.
1* - Über Störungen der musikalischen Reproduktion der Schizophrenico. Algm. Deutsch fur Psychiatrie. Berlim, 1918, vol. 70.

1** - Bilac já descreveu a música brasileira, em síntese, no immortal soneto, que abaixo transcrevemos:

Música Brasileira (“Tarde”. Francisco Alves, 1919).

Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor; encerras na cadência acesa,
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia erra a Tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, chiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva do beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.   

1*** - História da Música Brasileira. Briguiet. Rio, 1926.
1**** - Über musikalisches Gehör bei Schwachsinnigen. Die Stimme, 1908.
2* - Psychologie de L’Idiot et de L’Imbecile. Fel. Alcan. Paris, 1901.
3* - Traitement moral des idiots. 

Observação sobre o texto:
Conforme já comentado em outras partes, deve-se levar em consideração a linguagem e os termos usados por Osório Cesar como vigentes em uma linguagem científica dos anos 1920, que pode soar preconceituosa ou estranha para os nossos dias. Naquele momento ele trazia um novo olhar para o doente mental, dando atenção à sua arte.


Nenhum comentário:

Postar um comentário