Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Capítulo 2 – Parte 1 – A expressão artística nos alienados


Após o título do Capítulo 2, Osório Cesar faz uma citação sumária dos assuntos a serem tratados neste capítulo conforme segue:

Os artistas do manicômio. Necessidade de uma emoção estética. Curioso caso de um escultor cubista do Hospital do Juquery. Arte decorativa. Pinturas murais. A tatuagem. A música (estudo comparativo). A dança (estudo comparativo).

Segue-se o texto do capítulo 2...

A manifestação artística em certos alienados, sob qualquer forma (escultura, desenho, pintura, poesia, etc.) é uma necessidade indispensável à sua vida de enclausurado. Talvez seja isto o motivo para que as suas ideias alucinatórias, de grandeza, etc. venham a se objetivar mais demoradamente no mundo da realidade material. E dessa forma nós observamos um fato singular. Os doentes que se entregam a essas cogitações ficam calmos, trabalham com prazer, estilizam as suas manifestações de arte com inteira satisfação de ânimo. Dir-se-ia que os seus pensamentos se perdem num enorme mundo de belezas.
E não se julgue que essa atitude de arte entre os alienados seja produto de reproduções mecânicas, estereotipadas, feitas sem interesse, sem afetividade. Puro engano. Grande parte desses artistas insanos possui uma verdadeira idolatria por tudo o que fazem e seus trabalhos são, às vezes, sob o ponto de vista estético, de um valor inestimável.
Vejamos.
Entre os artistas de Juquery, onde fomos buscar uma boa parte de nosso material, predominam os incultos, pelo que o número dos loucos poetas e literatos é muito reduzido. Os plásticos e os picturais são, ao contrário, mais numerosos.
Vamos tratar do caso de um escultor muito original, cubista, cuja história é interessante por se tratar de um indivíduo que nunca teve noção de arte e cuja educação intelectual sempre foi medíocre. As sua produções escultóricas giram todas num idêntico princípio: o feiticismo (1), e em algumas delas deixam reproduzir o sentimento atávico evocando a alma dos antepassados de sua raça.
Passemos à história do doente:
T., 32 anos, preto, soldado da polícia, casado, católico, brasileiro, procedente da Cadeia Pública. Entrou no Hospital do Juquery a 2 de julho de 1919. Pai falecido há 22 anos. Mãe viva e forte. Tem quatro irmãos normais. Sabe ler e escrever. Teve na infância moléstia grave cuja natureza ignoramos. Na puberdade teve as primeiras práticas sexuais aos 17 anos.
Doente removido da Cadeia Pública, onde estava preso por ter assassinado a mulher a machadadas.
Somaticamente apresenta diversos estigmas de degeneração, tais como assimetria craniana, orelhas pequenas e abauladas, abóbada palatina funda e pés chatos.
Conta ele que ultimamente não tinha sossego em casa, porque todo o mundo se implicava com ele e por isso resolveu mudar-se. Mas não alcançou tranquilidade; os cursos operários, as telefonagens, as cloroformizações continuaram.
Mesmo de longe, o agente o dominava, mudando o seu pensamento e dando-lhe choques elétricos pelo corpo.
Um dia houve uma embrulhada; ficou cloroformizado e as telefonagens o obrigavam a matar a mulher. Esta, porém, não morreu, segundo ele afirma, mas multiplicou-se e hoje há muitas mulheres idênticas à sua. Ele também foi morto e desdobrou-se em B.
Aqui, no Hospital, continuam a perseguí-lo. Fazem tudo para aborrecê-lo; cantam como galo, latem como cachorro, viram o seu pensamento, que, aliás, é conhecido por todo o mundo.
Reage muitas vezes e procura agredir os empregados ou os demais doentes; no mais passa bem e conversa com relativo acerto.
Esta observação que acabamos de ver foi tomada pelo Dr. Alvarenga, em 2 de fevereiro de 1919. Hoje o doente se apresenta mais calmo, porém a sua história em nada modificou. Além disto, ele se intitula médico, comunica-se de vez em quando com “os poderes espirituais do espaço” e receita fórmulas com medicamentos da sua extravagante imaginação, criando neologismos interessantes. Eis aqui um exemplo de uma fórmula para curar febres:
Dracinus com mel de pau.....50,0
Clorente................................30,0
Álcool drocies......................183,0
Corsemante........................300,0
Tome meio cálice de 2 em 2 horas.
Ultimamente a sua preocupação diária é modelar em barro figuras grotescas de uma originalidade palpitante e de um realismo disforme. Elas representam, a nosso ver, em T., como mais adiante justificaremos, um grito atávico de recordações passadas.
Vejamos a figura 50, uma das suas curiosas produções. “São Jacinto” é o nome que ele gravou nos pés da escultura. É um feitiço. “A imagem”, diz ele, referindo-se a São Jacinto, “foi construída com o ouro mais puro da mina que encontrei no terreiro e ela possui a virtude de espalhar a felicidade entre os homens”.
Do ponto de vista artístico nota-se uma certa originalidade na expressão que a figura apresenta.
A cabeça está coberta por um boné, tendo no alto uma cruz e lembra uma “pose” de “apache”. Na face, nota-se, além dos olhos empapuçados, o nariz desajeitado e chato, caindo em diagonal sobre a boca semiaberta. Uma longa barba cobre todo o queixo, terminando no abdômen dilatado. Não se veem os braços nem as mãos. As pernas, pequenas e desengonçadas, emprestam a esse monstrengo uma atitude singular. Na perna direita nota-se uma atrofia acentuada dos músculos da coxa. Essa escultura faz-nos lembrar a carranca grotesca da Igreja de Santa Maria Formosa, em Veneza, produto da arte decadente italiana, e que Ruskin descreve da seguinte maneira: “uma cabeça enorme, horrenda, sobrenatural, de uma degradação bestial, excessivamente ignóbil para ser descrita ou para ser olhada mais de um instante” (1*).
Charcot e Richer, levando essa arte disforme para o terreno da medicina, estudaram acuradamente num livro interessante (2) a célebre cabeça da Igreja de Santa Maria Formosa. “L’artiste de Santa Maria Formosa”, dizem eles, “em quête d’um type grotesque, nous parait l’avoir rencontré sur son chemin, vue de ses yeux, saisi au passage et reproduit avec une fidélité qui nous permet aujourd’hui d’y retrouver les marques d’une déformation pathologique, d’une affection nerveuse nettement definie et dont nous avons eu récemment sous nos yeux, à la Salpêtrière, des exemples fort intéresssantes. Il s’agit d’um spasme de la face d’une nature spéciale, coexistant solvente chez les sujets hystériques mâles ou femelles avec une hemiparalysie des membres et présentant des caracteres si tranches qu’il est impossible de le confondre avec une autre affection spasmodique faciale”.
Quanto ao nosso artista, não possuímos melhores informações do seu passado, além das que já vimos. O meio em que ele viveu, certamente não o ambientou nessas tendências escultóricas, pois foi soldado de polícia durante muito tempo.
Na escultura da figura 51, muito mais extravagante, nos mostra a sua arte. Ela apresenta todos os caracteres da arte cubista (3). Sentimos dentro dela palpitar a mentalidade primitiva representando uma ideia religiosa sob uma forma plástica de beleza. Não se assustem os leitores se classificamos de beleza a obra deste artista alienado. Hoje em dia a concepção de beleza tem sentido muito diferente do que há anos atrás.

(seguem abaixo as notas de rodapé de Osório Cesar)

1 – Feiticismo e não Fetichismo como erradamente se costuma escrever. Este vocábulo é de origem portuguesa e não francesa, como muita gente ainda pensa. Vem de feitiço e foi empregado pela primeira vez, muito antes dos franceses, pelos primeiros exploradores de Guiné, como diz muito bem Fernando Ortiz no seu interessante livro “Glossário de Afronegrismos”, às páginas 204 e 205, que passamos a transcrever:
“Fetiche.m. – Cada uno de los ídolos de culte supersticioso em tierra de negros”.
“Asi disse la R. Academia, y dando por aceptable esta definicion, sin entrar em analisis, muy posibles a la altura de los actuales estúdios comparativos de las religiones, passemos a la etimologia”.
“Esta palavra no es um afronegrismo, aunque se refiera a cosas de los negros africanos, al igual que sucede com otros vocábulos forjados por los europeus, como ‘etiopia’, o por los árabes, como ‘cafre’, etc.”
“La R. Academia supone que etimologicamente la palavra proviene del francés, fétiche, y este del latin, factitius, de facere, hacer”.
“Sin embargo, la opinion mas generalizada, y la mas verossímil, es que fétiche procede del portugués feitiço ‘hechizo’, aplicado por los primeiros exploradores de Guiné, muy anteriores a los francezes, a los objetos proprios de las supersticiones y rito de los africanos”.
“Sabido es que la voz fétiche, asi como las derivadas fetichismo, fetichero y fetichista fueron lanzadas a la circulacion del lenguage cientifico por la famosa obra de Ch. De Brosses – Du culte des Dieux fetiches ou Parallele de l’ancienne Religion de l’Egypte avec la Religion actuelle de Nigritie (1760). Y em la seccion primera de este libro (pag. 18) se hace constar claramente que el vocablo fetiche procede del portuguéz antiguo fetisso, de la raiz latina fatum”.
“Pero antes el holandês Bosman (A New and Acurate Description of the Coast of Guinea, Londres, 1721, pags. 121 e sigts) ya usó ampliamente el vocablo y explicó sus varios sentidos, como bien disse The Encyclopedia Britannica (1914)”.
“Todavia pudiera añadirsele a tan autorizada enciclopédia, em el siglo XVII, em 1665, encuentrase y ala voz portuguesa fetisso, y algunas veces, por error, fetisto y fetistoes, usadas por ingleses para significar lo que hoy desimos fetiche. Como se ve, el origen portugués del vocablo es evidente, y la etimologia franceza, que nos propone la R. Academia Española, es rectificable”.
1* - John Ruskin – Les Pierres de Venise. Trad. Francesa, pag. 244.
2 – Les disformes et les Malades dans L’Art. Pag. 3, Babé. Edit. Paris, 1889.
3 – A arte cubista e a expressionista representam o cume da arte subjetiva e individualista, pois nelas o artista proclama inteira liberdade absoluta de expressão, de técnica e de seleção de motivos não sensoriais. É a arte cerebral por excelência, porém nesta cerebração o fundamental ou o inicial é de inferior categoria psíquica, é um esforço para a vida primitiva, e o superior, psiquicamente considerado, é a elaboração ornamental que a consciência acrescenta logo para revestir inteligentemente os símbolos e complexos subconscientes da criação artística (Lafora, obra cit.).