Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sábado, 31 de janeiro de 2015

Capítulo 5 – Parte 1 – A Expressão Artística nos Alienados

Osório César inicia o capítulo com um texto com breves citações do que será apresentado.

Como os antigos consideravam a inspiração poética. Os delírios de origem celeste. “Nulium magnum ingenium, sine mixtura dementiae”. Classificação da arte nos alienados por vários autores: a classificação de M. Pailhas (d’Albi) e a de M. Réja. Poesias de um demente precoce paranoide do Hospital do Juquery. Neologismos, incoerências, salada de palavras na literatura dos “loucos” (estudo comparativo com a literatura futurista).

A inspiração poética foi considerada na Antiguidade como o efeito de uma possessão temporária do ser humano pela divindade. Platão enumerou os delírios de origem celeste, assim distribuídos: o delírio dos profetas, inspirado por Apolo; o delírio dos poetas, inspirado pelas Musas; o delírio dos bacantes, inspirados por Baco; o delírio dos amantes, inspirado por Eros. Daí a origem dessa inspiração na antiguidade, considerada como uma possessão temporária dos deuses. Os loucos e os gênios se confundiam num mesmo “furor”, num mesmo “delírio”, inspirados pelos poderes divinos, sendo igualmente respeitados e adorados. Sócrates já havia notado que os poetas “compunham por instinto, da mesma maneira que os oráculos, sem consciência daquilo que eles diziam”. E Platão: “O poeta é coisa sutil, instável e sagrada; ele jamais cantará sem a intervenção de um transporte divino, sem um doce furor”.
Aristóteles dizia que sob os acessos das congestões cerebrais “diversas pessoas tornavam-se poetas, profetas e sibilas; que Marcos de Siracusa fazia versos muito bem quando sua razão se perturbava, enquanto que era incapaz de fazê-los uma vez curado” (1).
Em Fédon, Platão diz (pag. 224) que o delírio não é bem um mal, é antes um bem, e mesmo um dos maiores, quando são os deuses que o enviam, pois foi no delírio que as profetisas de Delfos e de Dódona renderam mil serviços aos cidadãos da Grécia, ao passo que de sangue frio elas não lhes serviram senão bem pouco ou mesmo nada.
Aristóteles tinha observado que os homens ilustres – filósofos, sábios e poetas – eram “biliosos”, isto é, neuropatas, hipocondríacos, melancólicos. Para esses homens, ele dizia significativamente: “Nullum Magnum ingenium, sine mixtura dementiae”. E essa verdade de Aristóteles foi tão bem observada, que no século XVII Boerhaave escreveu também quase com os mesmos termos estas palavras: “Est aliquid delirii in omni magno ingenio”.
Até mesmo Molière, em Le Médecin malgré lui, põe na boca de um de seus personagens a sentença de Aristóteles: “C’est une chose admirable que tous les grands hommes ont toujours du capriche, quelque petit grain de folie mêlé à Science”.
“A poesia”, disse Shelley, “atua de uma maneira divina e desconhecida mais além e por cima da consciência”.
“A função poética é um gênero de processo psíquico que possui grandes analogias com os sonhos e com os outros atos psicológicos de origem subconsciente, tais como êxtase místico, visões e alucinações hipnagógicas que precedem ao sonho e ao período de fulguração imaginativa que inicia a intoxicação alcoólica ou que produz a febre” (2).
“La poésie est l’empire de l’inquietude, dit Max Jacob, vers um puissant realisme visionaire: ‘La poesie est l’enfance retrouvée... le génie n’est que l’enfance nettement formulée... je finis pour trouver sacré le désordre de mon esprit (3)”.
Assim, desde a mais remota antiguidade, o conceito de que os alienados possuíam uma sobrenatural inteligência foi admitido como uma verdade irrefutável. Mesmo entre os psiquiatras antigos, a exaltação da mentalidade nos loucos constituiu objeto de acuradas observações. Areteu da Capadócia (4), que viveu no ano 70, antes de Jesus Cristo, dá disto cabal prova nas suas descrições, cujo espírito crítico é de uma experiência digna de admiração quando se referia aos alienados. “Alguns maníacos”, diz ele, “adquirem uma facilidade e uma concentração de espírito tal, que recordações que não estão senão imperfeitas neles, se revelam imediatamente com a maior facilidade; conhecem a filosofia sem a ter apreendido e a poesia como se eles tivessem estado em comunicação com as Musas”.
No século XVIII, Van Swieten (5) recolhe a observação de uma mulher que compunha versos durante seus acessos de mania com uma admirável facilidade, se bem que ela nunca mostrasse o menor talento poético no estado de saúde.
Hoje em dia, os documentos literários e artísticos dos loucos são bem numerosos, melhores observados, reunindo repositório de estudos psiquiátricos apreciáveis.
“J’ose dire que s’il y a encore un livre curieux à faire au monde” – disse Nodier – “c’est la bibliographie des fous, et que, s’il y a encore une bibliothèque piquante, curieuse et instrutive à composer, c’est celle de leurs ouvrages”.

Notas de Osório César:

1 – De Pronost. – Citado por Lombroso – L’homme de génie, pag. 2, Felix Alcan, Paris, 1909.
2 – Lafora. Don Juan, los milagres y otros ensayos. Madrid, 1927.
3 – René Lalece. Défense de l’homme, pag. 83.  
4 – De causis et signis morborum. Trad. Renaud, liv. I, Chap. VII. Citado por Antheaume et Dromard. “Poésie et Folie”. Paris Doin, 1908, pag. 166.
5 – Citado por Antheaume et Dromard, pag. 167.