Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Capítulo 1 – Parte 6 – A expressão artística dos alienados


Continua o texto...

A arte na criança apresenta o mesmo caráter simbólico e representativo da arte do primitivo. Ela é simples e desprovida em grande parte de fantasia.
A imaginação da criança, como a do primitivo, é realista em extremo. Os seus desenhos se limitam em arremedar a natureza com representações de cenas da vida diária.
De 3 a 7 anos os desenhos desses pequenos observadores se resumem em rabiscos com aparências de animais e na maioria com forma humana. Em grande parte são desenhos muito simples e despidos de decoração.
Após os 10 anos é que se verificam, principalmente nos meninos, desenhos de flores e frutos, bem cuidados e com esmero decorativo. Assemelham-se muito os desenhos de crianças com os das raças primitivas e com os desenhos dos alienados, principalmente os dos dementes precoces.
“Na primeira e na segunda infância”, diz Spencer (1), “verifica-se uma absorção de sensações semelhantes à que caracteriza o selvagem”.
“A criança que destrói os seus brinquedos, que fabrica figurinhas com terras, que dirige seus olhos para todas as coisas e pessoas, dá provas de muita perceptividade e de uma reflexão relativamente débil. A mesma analogia existe na tendência à imitação. As crianças repetem em seus brinquedos cenas da vida dos adultos e dos selvagens e, entre outros atos de imitação, repetem as ações de seus hóspedes civilizados.”
“O espírito da criança carece da faculdade de distinguir entre os fatos inúteis e úteis; o mesmo acontece ao selvagem”.
Mais adiante continua Spencer: “A criança de nossa raça é como o selvagem, incapaz de concentrar sua atenção em algo complexo ou abstrato. O espírito da criança, como o do selvagem, não tarda em divagar por puro esgotamento, quando tem que se ocupar de generalidades e de proposições complicadas. Tanto num como noutro, são débeis as faculdades intelectuais superiores; é claro que precisam ideias que se não compreendem senão mediante concurso dessas faculdades, e se possuem algumas são muito poucas. As crianças, como os selvagens, têm em suas línguas algumas palavras de abstração menos elevadas e não têm nenhuma das mais elevadas. Desde cedo a criança sabe muito bem o que é cachorro, gato, cavalo, boi; mas não possui nenhuma ideia do animal, independentemente da espécie; passam-se anos sem que o abstrato entre em seu vocabulário. Assim, tanto na criança como no selvagem, faltam os mesmos instrumentos de um pensamento desenvolvido”.
Nos primeiros meses de idade, o que mais impressiona a sensibilidade da criança é o barulho, são os objetos brilhantes e as cores muito vivas (o vermelho, por exemplo). É a primeira manifestação de arte que a criança experimenta. Depois de um ano, mais ou menos, é que começa a aparecer uma certa afinidade pela música e sobretudo pelo desenho. Este tem agora a sua primeira manifestação caracterizada por rabiscos, garatujas com significação simbólica, constituindo para a criança divertimento precioso encher folhas e mais folhas de papel do que lhe dita o inconsciente. Dos dois anos e meio para cima, são as representações humanas e de animais domésticos que fazem o seu grande prazer gráfico. É neste período que ela mais se assemelha aos selvagens atuais. Seu desenho é sintético; constitui apenas uma tosca caricatura dos objetos que lhe rodeiam. Depois vem o período imitativo, dos 10 anos em diante, no qual as reproduções gráficas são mais cuidadas, estilizadas e já ornamentadas com objetos do mundo vegetal (folhas, flores, etc.). As tendências artísticas nas crianças desta idade são infelizmente ainda hoje, principalmente entre nós, sacrificadas, em virtude da má orientação dessas disciplinas nas escolas. A criança não tem liberdade artística nenhuma. Limita-se a copiar servilmente a natureza, reproduzindo os modelos que os mestres lhes dão. O resultado disto é que elas sempre fazem coisas semelhantes, sem originalidade e despedidas do cunho pessoal, o que não deveria ser. O ensino do desenho precisaria ser completamente livre. Nada de modelo. A criança espontaneamente reproduziria as imagens com ela sentisse realmente, sem a preocupação de linhas, proporções e nem perspectiva. Só assim veríamos surgir a arte sã, independente e subjetiva. Isto que acabamos de dizer não constitui uma novidade. No México, o ensino do desenho nas escolas públicas segue este princípio. A figura 11 é um desenho livre de um escolar do México. Representa um Cristo crucificado. Encontram-se nele individualidade e originalidade. À primeira vista parece tratar-se de um desenho hindu, tal é a delicadeza e o rendilhado da estilização que ele representa. A figura do Cristo é muito original. A cabeça contorcida mostra somente o perfil. Os cabelos anelados caem sobre o pescoço. Braços muito longos pregados à cruz. Uma tanga, espécie de toalha bordada, prende-se à cintura. A liberdade que o pequeno artista mexicano teve para exprimir o seu sentimento de beleza foi tanta que a sua imaginação criou uma inédita figura de Cristo, tão interessante como a dos artistas da Renascença.
Victor Mercante (1*), nas suas investigações experimentais sobre os sentimentos estéticos da criança, chegou a um resultado bem curioso. Em 280 crianças ele tirou as seguintes conclusões, que resumimos aqui:
1 – Os sentimentos estéticos nas crianças são manifestações instintivas e não produtos de análises mentais.
2 – Há um pequeno grupo de indiferentes (classificação Binet), em sua maior parte retardados.
3 – nos adolescentes (classificação Baldwin) não existem senão sentimentos estéticos inferiores.
4 – A idade e o estudo, dentro do círculo primário, são fatores que não orientam tendências estéticas elementares nem estabelecem nas variações do afeto a ordem progressiva notada no desenvolvimento das demais aptidões.
5 – O sexo, pelo contrário, inclui diferenças notáveis. O sentimento estético da mulher é flutuante e dispersivo, enquanto o do homem é fixo e reconcentrado.
6 – o significado dos gráficos indica que as cores orientam melhor a afetividade do que o tamanho e a posição.
7 – Tratando-se de matéria inerte e formas simples, parece lógico o supor-se que a simetria arrasta e centraliza os gostos. Mas esta centralização não é absoluta e os sentimentos afetivos sofrem desagregações importantes que se deve ter em conta uma classificação distributiva de alunos. A evocação é, em geral, o elemento mais poderoso na orientação dos afetos.
8 – No tocante a tamanhos, as crianças preferem o pequeno ao grande, sem que a instrução e nem a idade determinem um princípio de variabilidade nos juízes.
9 – No tocante às cores, os homens preferem o verde e as mulheres o vermelho. O amarelo apresenta uma percentagem de gostos mais acentuados nas mulheres do que nos homens.
As conclusões de Mercante estão bem observadas.
Também Reja (1**) estudando a evolução do desenho na criança, observou que ela apresenta três fases distintas:
A primeira fase se limita a garatujas informes, a confusões e linhas, onde a criança acredita ver os elementos do objeto que deseja representar; a segunda fase, que constitui o estilo pueril propriamente dito, se distingue por toscos esquemas, balbucios de um simbolismo incipiente; a terceira fase de transição para um novo período mental, onde se inicia uma nova direção: a da cópia realista da natureza.
“Existe nas crianças (2) uma certa lei natural, um ‘canon’ podemos dizer, quanto à representação das formas mais comuns. Em milhares delas, as interpretações coincidem num mesmo sistema de estilização. A figura humana, por exemplo, envolvendo da síntese dos palitos é assim representada: a cabeça por um círculo, o tronco por uma elipse, dois palitos para as pernas, com extremidades quadradas representando os pés, ordinariamente em sentidos opostos, dois para os braços com ramificações nos extremos para os dedos, isso em número indeterminado... à vontade do artista... Alguns, observando mais a anatomia, partem as pernas e os braços, atendendo às principais articulações. Outros, cogitando de detalhes, juntam dois pequenos círculos ou simplesmente pontos para os olhos, um traço vertical para o nariz e um horizontal para a boca. Ainda outros cogitam das orelhas, dos cabelos e dos dentes, dependendo essas diferenciações da idade, do adiantamento e principalmente da tendência artística seguida... Quando executam composição onde haja superposição de planos, não admitem corpos opacos. Absolutamente. Numa figura de chapéu, a cabeça deve ser vista em transparência: é lei inflexível”.   

No rodapé constam:
1 – Los dados de la Sociologia. Trad. Hesp. Tomo I. pág. 137.
1* - Sentimientos estéticos del Nino. Arquivos de Psiquiatria y Criminologia. Ano V, janeiro-fevereiro, 1906. Buenos Aires.
1** - Reja – L’Art dês fous – cit. Por Nombela – Arquivos de Psiquiatria y Criminologia. Maio – Junho de 1909, pág.311.
2 – Porciúncula Moraes – O ‘canon’ universal das crianças e a sua tendência futurista. “O Jornal”, Maio, 1928.

Comentários sobre o texto:
Ao mesmo tempo em que o autor repete tendência da época na interpretação entre aspectos cognitivos e psíquicos em diferenças entre masculino e feminino, conforme já notamos anteriormente, ele aponta para fatores limitantes da criatividade no ensino de então e cogita a respeito de outras possíveis formas pedagógicas que pudessem ser mais estimuladoras da arte espontânea.