Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

A Expressão Artística nos Alienados Capítulo 7 – Parte 2


     Devemos assinalar que a linguagem psiquiátrica usada por Osório César nesta obra é da década de 20 do século XX.
     As notas de rodapé são do autor.

...continuamos com o texto de Osório Cesar...

     Moreau de Tours[1] conta-nos ter observado durante quase dois anos “um jovem pertencente a uma família na qual eram comuns os homens de inteligência, que caiu bruscamente, sem causa apreciável, em exaltação maníaca. Vários dias, antes e depois do acesso, ele passou uma grande parte do tempo a escrever e a compor versos. Todos os assuntos lhe serviam e fora difícil encontrar nas suas composições vestígios da moléstia que acabara de sarar e que o havia de acometer alguns dias mais tarde”.
     Vamos ver a história de um interessante poeta hipomaníaco e os seus mais curiosos poemas:

      A.[2], branco, brasileiro, 52 anos, casado, entrado em 25 de maio de 1918.
     Pai nervoso e melancólico. Teve um tio deprimido. Tem vários filhos, alguns dos quais psicopatas (débil um, quase idiota outro). O observado foi quase sempre um psicopata, tímido, desconfiado. Há 12 anos teve uma infecção venérea que diz ter sido sifilítica. Há 8 anos, esteve durante 8 meses internado no Instituto Paulista, de onde saiu bom. Somaticamente apresenta-se muito magro, com insônia rebelde; come pouco. Seu estado mental reveste o caráter de profunda depressão psíquica. É completamente alheio ao que se passa em torno de si, só se preocupando com a sua pessoa, e lastima-se constantemente. Com o sobrolho franzido, fácies melancólico, queixa-se de que está muito doente, de que é um desgraçado, arruinado e perseguido.
     Em 1919 foi novamente observado o paciente, achando-se em estado de grande prostração física e psíquica, grande depressão, ideias hipocondríacas, arrastando-se pelo chão, “a fim de penitenciar-se dos malefícios que praticara”, pois, por “sua causa a família toda havia sido lançada na miséria e todas as desgraças advindas ultimamente aos Taubateanos tinham emanado dele, paciente”. Teve crises de pranto, punha-se em atitude mística a implorar aos céus a remissão de seus pecados e negava-se a estender a mão a quem quer que fosse, certo de que isso lhe iria (não ao doente) causar males. Vivia deitado nos centros do pátio, isolado dos companheiros, descuidado de sua toilette e de suas funções fisiológicas.
Hoje o paciente acha-se em estado de hipomania; muito loquaz, amável em extremo, contador de anedotas, a criticar os enfermeiros, veste-se bizarramente, usa adornos extravagantes, como sejam uma grande medalha de papelão, pendente a uma grosseira corrente de arame (comenda da legião de Thoma, diz o doente); uma cartola de papelão, gravata vermelha, das mais carnavalescas, anel de chumbo, com mancha vermelha à guisa de pedra preciosa. Tagarela o mais que pode, contando com espírito fatos de sua vida passada; “namora” o dia todo o lado em que fica o pavilhão das mulheres e dirige, a uma das doentes, cantigas e trovas amorosas. Escreve o que dá o dia e não há papel que lhe chegue; qualquer ocorrência, por banal que seja, constitui motivo para seus versos. Faz discursos eloquentes às vezes e levantou, de uma feita, a candidatura de um dos nossos políticos à presidência da República[3].

     Esta observação feita pelo Dr. Francisco Marcondes, psiquiatra do Hospital do Juquery, data de 1924. Hoje o doente se apresenta calmo, porém a sua excitação intelectual ainda persiste. A inspiração poética neste doente tornou-se uma fonte inesgotável. Qualquer acontecimento, por mais banal que seja e de que ele ciente esteja, tanto basta para despertar o seu estro poético. Surge então uma dezena de sonetos e quadrinhas alusivas ao fato; muitas delas são até interessantes por trazerem um tom picante e jocoso que é peculiar ao seu estilo. Entretanto, na maioria das coisas que escreve, sente-se um lirismo com base erótica bem acentuada.
     Apreciemos esta sua composição:

               Mão quente, mão fria
                                                        (a alguém)
     Mão quente quer dizer coração frio...
     mão fria quer dizer coração quente...
ora, um dia, me abraso, de repente,
quando o meu braço no teu braço enfio.

Se, nesse tempo, as nossas mãos trançadas,
eram as tuas cálidas, ardentes,
só tuas mãos cada vez mais quentes...
eram as minhas gélidas, geladas...

Somos os mesmo após largos dias:
só tuas mãos cada vez mais quentes...
só minhas mãos cada vez mais frias...

     Os versos são bem cadenciados e a expressão é vivaz. Falta o último terceto que ele não quis fazer propositadamente. O tema não é original. Se não nos falha a memória, parece-nos que existe um soneto em língua portuguesa sobre este mesmo motivo. Em todo caso, não o poderemos afirmar. O que podemos garantir é que em A., desde que veio para Juquery, nunca vimos entre suas mãos produções literárias de nenhum poeta. Poesias iguais a essa ele as escreve aos milhares.
     “Mão quente, mão fria” foi dedicada a uma enfermeira do Hospital. A. é um namorador infatigável. A cada namorada que ele arranje, uma dezenas de poesias ele compõe. Nos versos que acabamos de citar, oferecidos a uma de suas namoradas, sentimos transparecer um sensualismo palpitante através de uma alma de velho.
     Escutemo-lo em

                                  Leviana

Leviana, ama o cocktail, adora o chá,
é inteligente, porém inútil; por que será?
Não tem alma, não faz o bem, porém é tão formosa,
é bem uma princesa, e tem perfume de rosa...

Todas as tardes ela passa... vai à Estação,
vai ver o seu caro Amor, o seu coração...
sua boca perfumada sabe rir, sabe enganar,
faceira, na sua toilette sabe bem se apurar...

Pobre de mim, para amá-la e compreendê-la,
eu tive um meio: encrustrei-a como estrela
cintilante no azul mais límpido do céu,
pois eu a adoro com egoísmo e seu véu...

     Leviana foi também oferecida a uma outra sua namorada. Realmente, não sabemos o que mais admirar aqui. Se a composição singela, ingênua de inspiração, ou se a harmonia, o ritmo dos versos. Que os versos tenham defeitos técnicos isso é lá com os mestres. Mas ninguém poderá negar que eles revelam um estado d’alma expressionista. E é quanto basta. “A poesia”, diz Grosse[4], “é a expressão pela linguagem de fenômenos exteriores sob uma forma estética e com o fim estético. Esta definição compreende tanto a poesia subjetiva, a poesia lírica, que empresta uma expressão aos fenômenos do mundo interior, aos pensamentos e aos sentimentos do eu, quanto a poesia objetiva, que descreve, sob a forma épica ou dramática, os fenômenos do mundo exterior, dos fatos e dos acontecimentos objetivos. Nos dois casos, a expressão serve de intuito estético; o poeta quer excitar os sentimentos, unicamente os sentimentos. Desta maneira, nossa definição separa de um lado a poesia épica e dramática, da descrição didática e enfática. Toda poesia vem do sentimento e vai para o sentimento. Está nisto o segredo de sua influência”.
     Tal é o que acontece com o nosso poeta.  


     


[1] La Psicologie morbide, pg. 423.
[2] Observações Psychiatricas do Hospital do Juquery.
[3] Candidatura esta que se realizou.
[4] E. Grosse – Les Débuts de L’Art. Felix Lacan. Paris, 1902, pag. 177.