Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Capítulo 6 – Parte 1 – A Expressão Artística nos Alienados


Devemos lembrar que esta obra de Osório César é dos anos 1920. Desse modo, retrata conceitos da psiquiatria desse período, com uma linguagem que eventualmente pode soar estranha aos dias atuais. O que mais nos interessa é frisar o enfoque do autor a respeito da arte produzida pelos pacientes psiquiátricos, trazendo uma vertente humana desses indivíduos.
Osório César inicia o capítulo com frases que resumem o conteúdo do capítulo:
O “mattoide” de Lombroso. Conceito médico-psicológico da paranoia. Definição de H.  Roxo, Tanzi e Lugaro. Opinião de Freud. O “Antropotérico”, divagações filosóficas de um paranoico. Um literato excêntrico do Hospital do Juquery. Arthur Rimbaud precursor do “futurismo”. Desenhos de um louco moral do Hospital do Juquery.

...continuação do texto...

Lombroso criou a palavra “mattoide” (1) para designar os indivíduos comuns que apresentam semelhanças com os homens de gênio e para firmar uma transição gradual e imperceptível entre os loucos possuídos de gênio, os homens normais e os loucos propriamente ditos.
Esta variedade constitui na psiquiatria, como diz Lombroso (2), uma espécie particular de um gênero assinalado primeiramente por Maudsley, com o título de homens com temperamento vizinho da loucura; por Morel, por Legrand du Salle e por Schüle como nevrósicos hereditários; por Régis como nevropatas e ainda por muitos autores, como paranoicos.
“A paranoia, que significa pensar errado, pensar de viés", diz o prof. Roxo (3), "consiste em um delírio sistematizado, bem encaixado, lógico, sem alucinações como elemento essencial e antes como verdadeira exceção, em que de uma ideia falsa tira o indivíduo uma série de conclusões razoáveis e em que há, como vício fundamental, primitiva e originária autofilia, egocentria resultante, inadaptabilidade ao meio e reação consequente a este”.
A psicologia do paranoico (4) é vária, mas característica. A paranoia poucas vezes se encontra nos manicômios. São doentes que por aqui vivem cuja vida é um romance – muitas vezes trágico – que desgraçam famílias e esbanjam fortunas, mas que raramente caem entre as grades de um hospício. Defendem-se. Tornam-se perigosos. Apresentam-se como vítimas de ignóbeis perseguições. Discutem, argumentam, sofismam. Tão habilmente que a todos iludem. E conseguem impor-se às multidões. Passam por santos, por super-homens. Adquirem devotos. Admiradores incondicionais. São os casos de loucura coletiva – tão conhecidos – nos quais sempre uma personalidade mais forte age como indutora, como fonte fanatizante. Em todas as reformas sociais ou religiosas, não é sempre um homem que se impõe e domina os demais?
Mas na paranoia, existem várias formas. Distintas umas das outras. Que diferentemente provocam reações várias e aparentemente diversas. O fundo porém é único...
Alguns, de temperamento contemplativo, tornam-se santos, beatos. (Como os cristãos antigos, que fugiam para os desertos ou enterravam-se vivos em mosteiros). Outros, ativamente lutam, combatem em prol da verdade. E aí estão as lutas religiosas da história.
Em tudo por tudo a mesma feição delirante: nuns, delírio de reforma política, social ou religiosa; noutros apenas um singelo delírio religioso.
Contudo, são igualmente nocivos. Com suas reações antissociais, tudo ameaçam, tudo subvertem. (Os anarquistas militantes, em sua maioria, são meros paranoicos, afirma Lombroso).
À maneira dos cavaleiros andantes, mostram-se generosos, desinteressados. Novos Lancelotes du Lac, são capazes de gestos nobres, que mais os impõe à admiração do populacho.
Os paranoicos reformadores são sempre lúcidos, conscientes: não só não renegam suas ações, mas delas se vangloriam. Verdadeiramente apresentam um estado d’alma, que se não afasta muito do de um indivíduo normal, sob o estímulo de uma paixão, entusiasmado por um ideal nobre e alevantado. E por isto, fascinam, empolgam, dominam. Admirados, endeusados, consagrados, por sua vez sofrem a influência do meio, do ardor dos que os acompanham. Progressivamente, mais e mais se cristaliza a ideia de que são realmente super-homens, que tudo lhes é permitido. Que têm uma missão de bem e de justiça a cumprir na terra. Como bem diz o grande Euclides, estudando as etapas sucessivas do Profeta de Canudos.
Entre ignorantes, supersticiosos e broncos, passam como rastilho de pólvora as ideias incandescentes desses iluminados. Todos os anômalos crédulos e sugestionáveis, prontos a inflamarem-se por ideais heroicos e móveis transcendentes, são presa fácil de tais homens. Dizem-no os tratados de psiquiatria, dizem-nos os fatos.
O paranoico é, regra geral, um “assoiffé” de justiça. Suas palavras despertam eco, no fundo vago das aspirações latentes, de todo um povo. E os discípulos aparecem, e os sectários pululam, prontos para a luta, dispostos a derramar a última gota de sangue, por quem os hipnotizou. E tem-se Canudos... Perigo formidável e sempre iminente.
Tanzi e Lugaro (5) descrevem deste modo o paranoico: “I paranoici sono formalmente altrettanto mistici del volgo e dei selvaggi; in realtá sono piu mistici di essi e di tutti, perché il loro misticismo nasce, si svolge e persiste a dispetto dell’ambiente. Del resto, le manifestazioni del misticismo paranoico sono qualitativamente simili a quelle del misticismo primitivo: única differenza e appunto l’ambiente storico da cui scaturiscono. I primitivi sono figli del loro tempo; il paranoici sono anacronismi viventi. Il misticismo dei primitivi é la manifestazioni modesta, tranquilla e collectiva d’un pensiero imperfetto che si sviluppa; il misticismo dei paranoici é l’esplosione audace, violenta e individuale d’um pensiero in regressed anticivile”.
“Na paranoia Freud tem encontrado”, diz Franco da Rocha (6), “recalcadas, tendências sexuais diversas, e a principal força do recalcamento seria nesses casos o desgosto, a repugnância, o que quer dizer que o paranoico é em suma, autoacusador. Isso se torna possível pelo mecanismo que ele denomina de projeção, isto é, o paciente projeta sobre as pessoas de sua convivência os sentimentos de ódio que lhe surgem dos recalcados sentimentos de amor (homossexual). O paranoico acusa outras pessoas de estarem a dizer dele coisas que, na realidade, existem no seu próprio inconsciente. Sem a compreensão exata da ambivalência afetiva, será também impossível compreender o mecanismo da projeção. É indispensável admitir a existência de um sentimento consciente e de um oposto inconsciente, que é o que se projeta no exterior ou é atribuído a outras pessoas”.
Um dos fatos mais característicos que se nota na observação dos paranoicos é principalmente a convicção exagerada de seus méritos pessoais, de seu próprio valor perante a humanidade. E esta convencida opinião que eles têm de si próprios, não se cansam eles de demonstrá-la, tanto nos seus escritos, associações absurdas de ideias com contradições frequentes e prolixidade, como nos atos e conversações da vida diária.
Curiosa é também a preocupação que os paranoicos têm de quererem renovar as ideias dos homens políticos e dos grandes pensadores. E para isto eles empregam, nas suas discussões, uma maneira tão extravagante e inqualificavelmente exagerada nas ideias, que lhes emprestam, por vezes, um cunho original. Estes indivíduos, absolutamente convencidos de suas opiniões, não as modificam quaisquer que sejam os argumentos que lhes sejam apresentados.
É da lavra de um paranoico este trabalho filosófico:

                                            O Antropotérico (7)
“A Etiologia do Homem constitui hoje mais do que nunca um conglomerado de caracteres e fenômenos tais que só a Fisiologia e a Anatomia comparada de concerto com a Antroposomatologia e a História Natural é que podem estabelecer propriamente todas as analogias, antagonismos e ambiguidades concernentes ao curso da descendência correlativa ou árvore genealógica do tipo-homem. Considerados logicamente por um sistema de prismas eticopaleoontológico-antropogenético esses mesmíssimos dados etiológicos formarão ângulos de refringência no mesmo plano de arestas da Ontogenia e da Zoologia. Foi na segunda metade do século das luzes que floresceram os mais festejados cientistas e pensadores e ainda hoje em pleno século vintésimo cognominado do Pensamento, assiste-se predomínio absoluto daquelas doutrinas que tanto se imortalizaram no espírito da Humanidade e encontram ainda as mais francas e entusiásticas celebrações nos foyers da Atualidade. Como pioneiros do Evolucionismo (Cuvier do Atavismo do Globo). Lammarke, Linneu, Darvin, Huxley e Haeckel atestaram com a maior clarividência de testemunhos irrefutáveis, os pontos de contato e derivações consecutivas entre o tríplice reinado da História Natural”.
“Surgiu posteriormente o Positivismo cujos enciclopedistas apostolando (apostatando simultaneamente os mais transcendentes) todos os princípios da Filosofia rejeitaram perfunctoriamente a doutrina do Espiritualismo pretextando os seus preconceitos de verdadeira ‘res incognoscibilis’”.
“Mas a etiologia do homem nada sofreu perante qualquer seita até pelo contrário pelo papel que ela representa no cenário do modernismo filosófico pode-se considerar como a obra mais gigantesca do Espírito Humano e da qual só se pode cristalizar um transumpto monográfico ou epítome”.
“A Filogenia do Homem Pensante faz parte além da matemática e da astronomia porquanto só o homem pré-histórico é calculado aproximativamente em meio milhão de anos outros concursos igualmente poderosos como o da Biologia e da Arquimia vem completar o ciclo formidável dessa grandiosa disciplina”.
“Não obstante por assim dizer, tamanhas etapas do pitequismo ou macacos humanos, não obstante ainda os graus de civilização que o homem tem atingido durante tão longo transcurso histórico-biológico um enorme ou melhor avultado número de caracteres somáticos, fenômenos e idiossincrasias o têm conservado ainda no terreno dos quadrúpedes propriamente ditos. Se não fosse propriamente as articulações em diagonais dos membros apreensores e locomotores a prova mais autêntica da sua reversibilidade a um tipo inferior da escala zoológica haveria ainda outras características hierárquicas ou anatômicas quimiotóxicas e analíticas que militam rigorosamente contra o chamado Ortoestantismo”.
“Os braços que eram dotados de faculdades locomotrizes conservam-se por assim dizer dependurados no tronco e pelo menos uma modificação se patenteia aos nossos olhos por influxo talvez das adaptações mesológicas que foram inquestionavelmente progressivas; essa modificação é a flexibilidade invertida: flexão do cotovelo”.
“Nos membros inferiores se registram analogamente o mesmo fenômeno: flexão diametralmente opositória”.
“Ora essas modificações anatômicas são imanentes a todos os indivíduos logo é uma consequência congênita da estação ou melhor degenerescência congênita de Verticalismo que tende a desaparecer ulteriormente desde o momento em que a nossa Espécie adquira os seus primitivos caracteres morfogênicos e cujo computo cronológico é enigmático”.
“Pode-se fazer uma estimativa mais ou menos categórica da época de restauração do Homem em um tipo específico inferior muitíssimo inferior e cuja inferioridade na escala zoológica pode ir até os marsupiais; a classe básica dos animais por excelência, a classe que deu origem a tantíssimos representantes atávicos na época terciária se não nos falha a memória...”

E por aí vai, neste teor, empregando termos pomposos, neologismos, enchendo laudas de papel para chegar à conclusão de que o homem tende a voltar para a estação horizontal.
Espírito vivo, inteligente, de uma cultura mediana, este doente é dotado de uma memória prodigiosa.
Em quase todos os paranoicos grafômanos são dessa maneira tenazmente defendidas e sustentadas as suas convicções; entretanto, no meio desses escritos cheios de absurdos vamos encontrar, às vezes, ideias e pensamentos geniais.
“Quando comparamos”, diz Lombroso (8), "esses estúpidos abortos com as pinturas nascidas sob a inspiração da loucura (não falo aqui dos pintores que se tornam loucos, nos quais, como nos poetas e músicos, o talento antes se enfraqueceu, sobretudo pelas tendências viciosas e falta de harmonia nos tons), que diferença! Achar-se-á muitas vezes nos verdadeiros loucos, o absurdo, o desproporcionado, mas também encontrar-se-á o verdadeiro e a excessiva originalidade unidas a uma beleza selvagem e sui generis, que lembra em certos pontos as obras de arte da Idade Média e sobretudo dos Chineses e Japoneses, tão ricas, tão extraordinariamente ricas em símbolos; ver-se-á, em suma, que a arte sofre não da falta, mas do excesso de gênio que acaba por se abafar nele próprio”.

Notas de Osório César:
1 – Matto em italiano quer dizer louco.
2 – L’homme de Genie. Tradução francesa, pag. 344. Felix Alcan. Paris, 1909.
3 – Manual de Psiquiatria, 2ª ed., 1925.
4 – J. Penido Monteiro e Osório César. Do mórbido na literatura nacional. (Os Cangaceiros) de Carlos D. Fernandes. Imprensa Medica, nº 14, Dezembro, 1928.
5 – Tratatto dele Malattie Mentali. Milano, 1923.
6 – Obra citada.
7 – A ortografia, os neologismos e a pontuação estão aqui reproduzidos de acordo com os originais do autor (palavras estas do texto de Osório César).
8 – obra citada, página 380.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Capítulo 5 – Parte 5 – A Expressão Artística nos Alienados


...continuação do texto...

As obras do 3º grupo da classificação de Réja, onde se encontra contida uma emoção ou uma ideia, com uma fonte de perquirição literária, não são muito comuns nos nossos Hospícios.
Como exemplo deste gênero de literatura este autor cita a seguinte poesia:

L’encrier brisé (1)

Dans mês longues heures d’exil, chère Marie,
N’ayant pour me distraire, et pour te parler,
N’ayant plus que cela pour causer à ma mie
Que du papier, ma plume et mon encrier.

Je façonne des dessins. Pour toi chère Marie
J’écris mês chères pensées. Je cherche à proser
Des vers sur ce papier, et cela est mon envie
Pour te plaire, avec ma plume et mon encrier.

Cette encrier et cette plume, bonne Marie
C’est le seul passé-temps que hélas! m’est accordé,
Mais j’ai toujours peur, et cela est mon ennui,
Que l’on vienne me prendre ma plume et mon encrier.

Je te garde dans ma poche, petite Marie,
Jalousement. Car j’em tremble rien que d’y penser;
Car je vois qu’à tout le monde il fait envie
Car tout  le monde est jaloux de mon encrier.

Car cela fait rager les jaloux, bonne Marie,
Que par la plume, je te puisse encore charmer,
Aussi voilá pourquoi leur cruelle jalousie
Fait que de rage, ils ont brisé mon encrier.

Além de tudo isso que acabamos de ver, encontramos também na literatura dos alienados símbolos, metáforas, alegorias, sátiras, que enriquecem as suas inúmeras composições. Mas, as tendências mais frequentes encontradas nas poesias desses insanos artistas são: assonâncias, anfibiologia, sentidos duplos, estereotipias e o amaneirado enfático das palavras.
Exemplo:

J’aime le feu de la Fougère
Ne durant pas, mais pétillant;
La fumée est âcre de goût,
Mais des cendres de la Fougère
On peut tirer em s’amusant
Deux sous d’um sel qui lave tout
E soude, un sel qui lave tout. (2)
                                          Mic-Mac.


Notas de Osório César:
1 – Citado por Réja, pag. 145. Obra citada.
2 – Régis – La poésie dans les maladies mentales. Encéphale, tome I, 1906.  

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Capítulo 5 – Parte 4 – A Expressão Artística nos Alienados


...continuação do texto...

Para avaliarmos melhor os escritos literários dos alienados desse grupo, primeiro da classificação de Réja, apresentamos mais estes versos originais, cuja incoerência nas ideias é flagrante, saltando aos nossos olhos um palavrório puramente intelectual, salpicado de vez em quando de grosseira expressão, entre ideias e imagens confusas:

Apologia de Napoléon (1)

Onze minutes, criant, horizon.
Canons, lueurs, secondes, dètonation.
Nous calculâmes qu’Apollon
Fasse cent dix lieues en phaeton;

Dix-huit-cent, observe Colonel,
Qu’Icare se perdit au soleil,
Don Louis ne mourut pas, Napoléon,
Craignit d’Espagne l’Inquisition,
Le duc d’Enghien ne devait pas suffrire
Pour tuer souffrir, il guillotine.

As obras do segundo grupo – onde se encontra contida uma emoção ou uma ideia – são numerosas.
O mecanismo psíquico nesses doentes acha-se fortemente excitado; o fenômeno mórbido da obsessão impulsiva cria então, na imaginação deles, ideias artísticas e literárias surpreendentes.
“A imaginação superexcitada faz conhecer ideias artísticas e literárias, diz Régis, que surgem em multidão e nada têm nelas mesmas de absurdo e se conservam nos limites da coerência. Muitas vezes mesmo, em razão do estado de exaltação extrema das faculdades intelectuais, elas oferecem um caráter de originalidade, de novidade, de distinção e de superioridade, que as tornam verdadeiramente admiráveis”.
Escutemos:

Rayon d’amour (2)

Quand je te vois, mon bel ange adore
L’amour fait tressaillir mon âme,
Ma lèvre alors sur ton sein enfievré
Dépose un doux baiser de flame.

A moi seul appartient ton coeur;
Je l’aimer, ai la vie entière,
Rayon d’amour, douce lumière,
Apporte-moi, le vrai bonheur.

Esses versos, de simplicidade encantadora e bela sonoridade, são de um histérico, com provas de sadismo.
Eis um soneto muito curioso da lavra de um doente de psicose maníaco-depressiva:

Buraco (3)

Buraco que não é de formiga
Que é um fundinho mui gostoso,
a uns beatos causa intriga
por motivo religioso...

Perdoê-nos a Santa Religião
Tão severa em seus mandamentos,
gozemos o Amor e a paixão
nos seus psicológicos momentos.

Oh! O amor nasceu com o homem,
É o seu eterno companheiro,
nem a dor nem o tempo consomem
as  veemências do deus brejeiro...

O homem foi feito de barro
Como diz a Santa Escritura,
mas é um vivente mui bizarro
obediente às leis da Natura.

O nosso caríssimo pai Adão
Que feliz viveu no Paraíso,
por sua Eva teve forte paixão
pecou, gozou, não teve juízo...

Sigamos o nosso primeiro pai
que sentindo Amor gozou a flor...
Amai, humanidade, Amai!

Apreciemos agora uma das produções mais originais que temos visto na literatura dos alienados, como concepção, vida movimento e malabarismo desenfreado:

Dédié à ma brue (4)
Études astronomiques – Littèrature française
Himne á la terre

Em ta révolution, marche, marche Terre que me reçus, me donna assistence, la vie.2
Toi que mes pieds ont foulé et foulent encore. 3
Toi, qui fus dans ma jeunesse l’object de mes ètudes et que j’étudie toujours.
Toi, dont j’admire la légèreté, la vitesse,4 la régularité: 4 bis Quelle Loi te contraint depuis des siécles des siécles!
Soecula Soeculorum! 5
Dans ta course... sensèe, toujours tu évites un choc que pour des Humains serait leur perte.
Mais Celui 6 qui fit le monde, voulut malgré ta rotation 7, qu’ils restassent debout et qu’ils n’ignorent point que Tu parcours, dans l’imensité pendant une année accompagnée de ton Atmosphére e de ton Satellite. Lune – une étendue au minimum, de Deux cent trente millions de lieuses!
                           230.000.000 !
Matin! Notes
1.      En 365 jours, 6 heures.
2.      Allusions au domaine de VE
3.      69 ans.
4.      550.000 lieues en 24 heures.
5.      Indè finiment.
6.      Le Créateur.
7.      En 24 heures, chont
                          4 bis se rend toujours à son point de départ.

Essa composição literária, de uma formidável engenhosidade cabalística de palavras, escritas por um louco, não deixa de apresentar uma certa emoção aos leitores, sobretudo quando se conhecem as produções da arte ultramoderna.
Como exemplo, citemos o Poema Abúlico, de Mário de Andrade, que é um dos mais interessantes trabalhos do apreciado e querido escritor da nova geração dos artistas paulistanos:

Poema Abúlico (5)
                              A Graça Aranha

Imobilidade aos solavancos.
Mário, paga os 200 reis!
Ondas de automóveis
                  árvores
                  jardins...
As maretas das calçadas vêm brincar a meus pés.
E os vagalhões dos edifícios do largo.
Viajo no sulco das ondas
                                              Ondulantemente...
Sinto-me entre mim e a terra exterior.
                     Terra subconsciente de ninguém
Mas não passa ano sem guerra!
Nem mês sem revoluções!
Os jornaleiros fascistas invadem o bonde, impondo-me a leitura
dos jornais...
                     Mussolini falou.
Os delegados internacionais chegaram a Lausanne.
                     Ironias involuntárias!
Esta mulher terá sorrisos talvez...
                     Pouca atração das mulheres sérias!
                     Sei duma criança que é um Politeama de convites
                     de atrações...
As brisas cobrem-me os lábios com as rosas do Anhangabaú. Sol
pálido chauffeur japonês atarracado como um boxista.
                                         Luz e força!
                                Light & Power
Eu sou o poeta das viagens de bonde!
Explorador em busca de aventuras urbanas!
Cendrars viajou o universo vendo a dança das paisagens...
Viajei em todos os bondes da Pauliceia!
Mas em vez da dança das paisagens,
Contei uma por uma todas rosas paulistanas
 e penetrei o segredo das casas baixas!
                  O! quartos de dormir!...
                  O! alcovas escuras e saias brancas de morim!
                  Conheço todos os enfeites das salas de visitas!
                  Almofadas de gato preto;
                  lustres floridos em papel de seda...
                 Tenho a erudição das toalhas crespas de crochê, sobre
                 o mármore das mesinhas e no recosto dos sofás!
                 Sei de cor milhares de litografias e oleogravuras!
                 Desdêmona dorme muito branca
                 Otelo de joelhos, junto do leito, põe a mão no coração.
                 Have you prayed tonight, Desdêmona?
                 E os bibelôs gêmeos sobre os pianos!
                 A moça está de azul
                 Ele de cor de rosa...
                 Valsas lânguidas de minha meninice!
Em seguida: Invasão dos Estados Unidos.
Shimmyficação universal!
O foxtrote é a verdadeira música!
Mas Liszt ainda atrai paladares burgueses...
        Polônias interminavelmente escravizadas!
             Paderewski desiludiu-se do patriotismo e voltou aos a-
plausos internacionais...
                   Como D’Annunzio.
                   Como Clemenceau.
                                 Os homens que foram reis hão de sempre a-
cabar fazendo conferências?!...
Mas para mim os mais felizes do mundo
são os que nascem duvidando se são turcos ou gregos...
                                                       franceses ou alemães?
                                  Nem sabe a quem pertence a ilha de Martim
Garcia!...
              História universal em pequenas sensações
                    Terras de Ninguém!...
               ...como as mulheres no regime bolchevista...
No entanto meus braços com desejo de peso de corpos...
Um torso grácil, ágil, musculoso...
Um torso moreno, brasil...
Exalação de seios ardentes...
Nuca roliça, rorada de suor...
Uns lábios uns lábios preguiçosos esquecidos num beijo
de amor...
Crepito:
E uma febre...
Meus braços se agitam.
Meus olhos procuram de amor.
Sensualidade sem motivo...
É o olor óleo das magnólias no ar voluptuosos desta rua.
          Dezembro – 1922.
                                                            Mário de Andrade.

Notas de Osório César:

1 – Citado por Réja, pag. 114, obr. cit.
2 – Viegen – Le talento poétique chez les dégénérés. Thése de Bordeaux, 1904.
3 – Os versos foram feitos quando o doente se achava em estado de excitação maníaca, sendo notável o número de poesias por ele compostas durante essa fase da psicose maníaco-depressiva.  
4 – Citado por Réja, pag. 123. Obra cit.
5 – Klaxon, nº 8-9. São Paulo, 1922-23.  

domingo, 14 de junho de 2015

Capítulo 5 – Parte 3 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

O estado demencial, justificativo de um diagnóstico de “demência precoce paranoide”, se revela nas modificações que observamos nós do tônus afetivo. Já o colega, na sua observação, embora ficasse na síndrome referida, fala no “sentimentalismo doentio pela sua família”, que o meio social só lhe interesse pelo mal que faz, ligando a essa estúpida interpretação o assassinato da mulher que repeliu a sua crapulice; a nossa observação aqui também revela essa perversão dos sentimentos éticos e do pudor.
Lembram ainda a demência precoce, as alucinações, o modo afetado e “maneiroso” quando fala, o modo estereotipado do seu andar, o emprego frequente de neologismos, os impulsos, referidos, aliás, estes, na observação do Dr. Moraes Mello.
A carta escrita ao Dr. Pisa mostra ainda repetições inúteis e lacunas no raciocínio, ideias fragmentadas, terminando mesmo com palavras soltas que absolutamente não se associam.
Ouçamo-lo agora numa das suas curiosas trovas compostas na Penitenciária, sobre a epidemia de gripe de 1918. Elas possuem um tom satírico e a cadência é igual à da poesia popular. Sentimos vivamente que o autor revela nesta poesia, trabalhada com bastante naturalidade, reminiscências de leituras, como muito bem já observou o Dr. Moraes Mello.                    

 (Observação: grafia própria do paciente; optamos pelo itálico em vez de aspas)
1)    
        Jornal se ocupou do cauzo
feis Lembrar a medicina
que devia da combate,
Esta doença malina...
Talvez fosse combatida,
Com Recussio da vacina...

2)      Kilograma de Sufato
foram em agua dissolvidos;
pois bem engarrafado
para atender os pedidos,
cada phamacia ocupava,
deis caxeros decididos;

3)      num Laboratorio chimico
fei-ce muita esperiençia,
Sim ter neum resultado
Já perdiam a esperança
Quando um medico abalizado
achou a Luz da Sçiencia.

4)      Levantou-se A medicina
Esta Brilhante Sçiencia
parece que foi criada
Nos Brassos da providencia
Pois nela se encerra todo
Saber e benevolencia.

5)      Muitos Dotores afamados
tal como Hormeio Barão
pereira, e Hovardo Cruz;...
Dotôr meira Rubião
Creio até foi presidente
Duma Brilhante Seção,

6)      Quina Brava é Bóm Remedio
para febre intermitente
mas para gripe espanhola
É limão com aguardente
Droga dos Irmãos da ôpa
quando estão com dor de dente.

7)      Ouito dias trabalhos
com toda prosperidade
não só au Bem da Sçiencia
mas do Bem humanidade
Atendendo os pedilorias
da vozes da Caridade.

8)      planta que ficou droga
foi levado o presidente
da Sociedade medica...
falou o dotor Sçiente
Eis aqui plonto o Remedio
Com que Saremos os doentes.

9)      Resta somente pedir
A todos meus cidadão
os que foram Lavradôr
que plante também Limão
pois foi esta Bela fructa
que tirou tanta aflrição.

10)  Sabendo o José Caipora
que o Limão era percurado
chamou a Chica timbira
que era Irmã do seu conhado
Colheram uns deis mil fructos
foram vender no mercado.

11)  Tendo ele em seu quintal
Bães Limãoheiros aplando
E estas Benditas arvores
tinha os galhos carregado
de fructas todas maduras
que deu-lhe um Bâm Resultado.

Se os versos não são bons e pecam pelo amaneirado da expressão, nota-se, todavia, espontaneidade e ritmo nos seus compassos. E ainda mais: além dos fatos que a sua memória reproduziu de coisas lidas e aprendidas e da sua péssima ortografia, encontramos, contudo, em A., um poeta interessante e dotado de uma rica imaginação.
Escutemo-lo na

(Observação: grafia própria do paciente; optamos pelo itálico em vez de aspas)

A guerra

1)      As treis crues aliadas
Treis feras Sém piedade
Que vaga de quando em quando
com grande ferocidade
por este vale de Lagrima
atacando a humanidade.

2)      Batalhões marcham pra guerra
pois a malvada chegou
se ençopa de sangue a terra
Os Soldados com valôr
que no Seu peito se encerra
marcham no sôm do tambôr.

3)      Cazados decham as espozas
chorando deicham os filhinhos
Solteiros abandona os paes
Os Seus Paternos carinhos
Decham as amantes chorosas
E segue os duros caminhos!

4)      Dando adeus as namoradas
parte o coitado choroso
levando o peito sangrando
deste punhal venenoso
que fere constantemente
um pobre amante Saudoso.

5)      Eu juro que a guerra é feia
porém digo com Razão
que é covarde e mais feio
um peito ingrato e vilão
que fraqueja um só momento
na defeza da nação.

6)      Fanfarra tocam os clarins
grita avante o capitão
Tenente aperta o talim...
De carabina e facão
marchar galbozo na frente
é dever do cidadão.

7)      Guerra, e um mal medonho
que vém da antiguidade
Açiria e a grande Greçia
Dizem na Remorta idade
Brigaram mais de sém anos
Se cazo os contos é verdade.

8)      Homem como Carlo magno
Guerreiro de profição
também Alechandre grande
e o grande napoleão...
o tal guilherme Segundo
perdeu-se nesta ilusão.

9)      Italia deou Garibalde
um valente capitão
na Greçia foi lianida
que teve honra de Leão
Manuel Luiz osorio
do Brasil foi um Rodão.

10)  Jovens não adorem a guerra
mas se cazo um atrevido
Lançar desaforo a terra
que nela fomos nassido...
aplica-lhe com presteza
o gastigo merecido

11)  Lepe fação é carabina
Não Recuzaes um instante
Açeitaes a disciplina
na voz do teu comandante
Brandindo a espada fina
E gritando; avante avante

12)  Levando a frente a Bandeira
com guardos fies é forte
Infante marcham em filheira
Sim temer a propria morte...
Cavalheria Ligeira
de Lança com Bandeirote

13)  Metralhadôra rugindo
enche de fumo amplidão
As Ballas avôa zunindo
tomba Soldado no chão
abafa o peito um gemido
mas grita; viva a nação

14)  Na frente grita o comando
avante meus camaradas
perpara os Soldados infant
forma um quadlado a vamguarda
Recua a cavalheria
duma inimiga Brigada.

15)  Ordene o chefè, uma calga
de ferro frio, sem demora
os inimigos infraqueçem
fugindo Se vâm embora
o pavilhão theumflante
Reçebe o hinno da gloria.

16)  prepara-se as ambulança
prá recolherçe os feridos...
Sessou o sõm das metralhas
comessa agora os gemidos
É este guardo, o da guerra
Mais triste é mais doloridos.

17)  Quantos ficam ali Sem vida
pelo os campos estendido
seus corpos iram nas valas
ou em gazes embebido
seus membros amado e querido
Vãm em chama dissulvido

18)  Reparam o material
desta Belica operação
com levas de Reculuta
fassem uma concertação
o chefe, ordena os comandos
tomar nova pusição

19)  Sei Bém, queste guardo é triste
E cauza muita afrição
pois decha o mundo abitado
por viuva e por horfão
por cochos é aleijados
uns sem perna, outros sem mão.

Nessa composição sentem-se bem, afora a bagagem literária do autor, lembranças de coisas lidas de livros e revistas e aí reproduzidas, conservando a cadência das nossas antigas poesias populares.
No Hospital, depois de alguns dias de sua chegada da Penitenciária, ele escreveu esta canção:

(Observação: grafia própria do paciente; optamos pelo itálico em vez de aspas)

Sabia teu doce canto
Respira musica divina
nimua vo Agentina
Pode egualhar teu encanto
Faz morrer A cavatina
Sabia teu doçe canto

Ahi quem dera neste estante
nos prados de minha terra
escutando la da Seria
A tua muzica elegante
toda Belleza se emçerra
sabiá teu doçe canto.

Hoje que me acho ozente
de meu alegre cantor
fuzi-me a vos do amor
me resta as lagrimas contante
que é comsollo do amante
prar enitivo da dôr.

Assim, nessa melancólica toada, ele traduz em versos toda a saudade de sua terra numa linguagem fluente, muito embora a métrica horrivelmente castigada e o português barbaramente deturpado. Titante isto, percebemos nesses versos uma expressão afetiva que lhe dá um caráter romântico e rimas sonoras e agradáveis ao ouvido. Estamos convencidos que esses versos, desprendidos do subconsciente de A. são descantes da alma do sertanejo, que se ouvem ao luar, no terreiro das fazendas, onde os violeiros vão dizer em toadas plangentes as saudades que lhes transbordam do coração.
“As canções (1) pelas quais os povos primitivos exprimem suas alegrias e suas tristezas não são, em regra geral, nada mais do que frases simples, expressas sob uma forma estética simples: a repetição e a ordem rítmica”.
É o que acontece com a canção do sabiá. São versos primitivos, singelos, porém cheios de tristezas, exprimindo recordações de sua terra natal.

Notas de Osório César:
1 – E. Grosse – Les Débuts de L’Art.