Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

domingo, 18 de maio de 2014

Capítulo 4 – Parte 2 – A Expressão Artística nos Alienados

Como usualmente frisamos, devemos estar atentos a que este texto de Osório César foi escrito na década de 1920, portanto com as características dos conceitos e da linguagem da Ciência Psiquiátrica de então. Acentuamos a singularidade de o autor focar as produções artísticas dos pacientes nesse momento.

...continuação do texto...

Os poetas parafrênicos são comuns nos Hospícios. Há os de todo gênero: satíricos, parnasianos, românticos, bucólicos e futuristas. As suas produções são pejadas de prolixidade. São todos grafômanos. Vivem continuamente inspirados. Qualquer coisa desperta neles uma poesia. Tudo o que escrevem distribuem entre os médicos e enfermeiros. São desconfiados. Quando percebem que alguém troça deles, magoam-se e escrevem versos satíricos, alusivos ao indivíduo. São orgulhosos. Muitos deles escrevem os seus poemas numa linguagem simbólica e cheia de misticismo.
Vejamos a observação de um poeta romântico parafrênico do Hospital do Juquery:

M... (1), 43 anos de idade, branco, casado, católico, brasileiro, procedente da Capital, internado a 19 de Abril de 1925.
Histórico: É o único caso, o presente, que existe na família do observando. Não há referência sobre o passado da família. O que sabemos, por intermédio do próprio doente, é que o estado de saúde de todos os seus parentes é o mais lisonjeiro possível. É provável que o observando, consciente como é, oculte qualquer pormenor em que se possam basear para a justificação da “sua loucura”. “Aliás”, diz ele, “eu não sou louco! Raciocino com toda a lógica imaginável; sou funcionário público e sempre desempenhei com a maior probidade o meu dever; minha família não tem a mim a menor queixa, como chefe zeloso e bom que tenho sido. Não sei, portanto, e isso é que talvez me faça ficar louco, porque essa prisão injusta, fonte exclusiva da perseguição que movem contra mim os meus inimigos, a famosa camorra do Forte de Itaipu!” E o doente discorre, delirando já, sobre a “poderosa quadrilha” que, tendo assentado no Forte de Itaipu um possante aparelho de rádio-telefonia ou rádio-telegrafia, “sincroniza as ondas artesianas sobre o fone que cada um de nós traz invisível em nosso corpo e nos faz então, para perseguir-nos, cometer certos atos de indelicadeza contra a nossa família ou então responder por gestos ou palavras às vezes que nos são transmitidas”. “E veja o senhor”, continua o doente, “dizem que sou louco porque falo sozinho! Quererão levar a perseguição ao ponto de me proibirem até de responder ao que escuto no telégrafo sem fio?! É uma ignomínia! Mas hei de me vingar! À primeira oportunidade que se apresente, farei a minha representação junto ao senhor Dr. Delegado Fiscal do Tesouro Federal, afim de desmascarar esse infame que, não só a mim, mas também à Fazenda Federal, quer prejudicar. O senhor há de ver! Não considero loucos os companheiros; são vítimas, como eu, da camorra. Olhe aquele” – e mostrava um doente que, preso de grandes alucinações, saltava de um lado para outro, com grandes gestos de quem se defende – “está neste momento sob o efeito da irradiação do telégrafo sem fio”. E por aí vai; seria longo descrever tudo quanto o doente diz, logicamente, com sólida argumentação, para provar a injustiça de sua reclusão e os malefícios que poderão advir do serviço público da perseguição que se lhe move. Os autógrafos que juntamos à observação são bem elucidativos quanto à forma de delírio persecutório de que o paciente é vítima. Aqui no Hospício, “se bem que atenuadamente, tem ainda sofrido os efeitos das irradiações da Camorra”. Inquirido sobre se usava bebidas alcoólicas, tentou negar o seu vício, mas depois confirmou que, de 6 anos a esta data, se entregava ao vício da embriaguez. Tem, de fato, alguns sinais físicos de intoxicação etílica: tremores das mãos; língua saburrosa e trêmula; exagero dos reflexos tendinosos e cutâneos. Nada de particular no reflexo pupilar e nas sensibilidades. O estado geral de saúde física é bom. O paciente alimenta-se bem e tem, dizem os enfermeiros, sono tranquilo.
Diagnóstico: Delírio de perseguição. Falsa interpretação. Conservação das faculdades psíquicas. Parafrenia.

Apreciemos agora os seus versos:

Na mesma Fé

O meu samburá
Carrego frutinhas;
Às moças, Sinhá –
Pai Chico às Quindinhas.

Quero-as muito bem...
São pombas, são garças...
Flores do Lychen,
Roseiras esparsas.

Bem nos entendemos,
No mútuo respeito.
Sempre que nos vemos
Peito bate em peito.

Sou velho, são moças,
Trilhando um só fato;
Cancelas de força
Do mesmo riscado.

- Coitado! – elas dizem,
- Coitadas! – digo eu...
E somos felizes
No afan que Deus deu!

Louco velho

Lá detrás daquele morro,
Na escarpada do Fandango?
Sacisinha anda de gorro,
Plantando mato-ximango.  

Erva amarga ou Capitão,
Pra curar dor de barriga;
É melhor que a herva-tostão
Dos passeios do Bexiga.
Masserado có a raiz,
Pondo álcool é fernet-branca;
Com a marca “Flor de Liz”,
Égua velha de retranca.

Gente louca dá trabalho,
Muito mais que um burro chucro;
Ferro frio bate o malho,
Porco não sai do tijuco!

Come fruta verde ao lume,
Bebe estanho derretido;
Não mais peca, não faz crime,
Louco velho aborrecido.

Louco velho
Degadelhos;
Enxovido,
Carcomido!

As carapucinhas

 Adoro o seio da virgem,
No casto amor de donzela.
Meu peito bate em vertigem
De amor em chamas por ela.

Seus lábios são rosa-flores,
Na haste pênsil do jardim;
Sorrindo em francos humores,
Ao rescenso do alecrim.

Na face a pétala arfante,
Olhos me matem de amor;
Entre os rios flamejante
Do orvalho fresco da flor.

Adoro a branca, a morena,
Também a pardinha esgueira
E as roxinhas... Rosa... Helena...
Maria... Ismenia faceira...

No alvrar sacudindo as ancas,
Ponta a ponta, sempre a andar;
De carapucinha branca,
Da insana aflita a cuidar.

É tão grande o número das produções literárias desse doente que as suas poesias são para encher alguns volumes de duzentas páginas cada um.
Todos os dias ele compõe versos. Qualquer acontecimento, por mais banal que seja, é motivo para uma série de quadrinhas. A cadência dos versos lembra a dos versos de Gonçalves Dias.

Notas de Osório César:

1 – Dos Archivos Psychiatricos do Hospital do Juquery. 

sábado, 17 de maio de 2014

Capítulo 4 – Parte 1 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

Conceito das parafrenias. Poetas parafrênicos. A poesia mística. História psiquiátrica de um doente com delírio místico. Poemas parabólicos com interpretação do autor.

As parafrenias constituem hoje em dia um grupo clínico bem definido que Kraepelin separou da demência precoce. Assim o fez em virtude de certos doentes não apresentarem modificações da personalidade, perda da afetividade e da iniciativa.
Kraepelin admitiu quatro variedades de parafrenias: a sistemática, a expansiva, a confabulatória e a fantástica.
A parafrenia sistemática é caracterizada, diz Kraepelin, pelo “desenvolvimento extremamente vagaroso de um delírio de perseguição, continuamente progressivo, com ideias de grandeza mais tarde a ele associadas, sem destruição de personalidade”.
As alucinações do ouvido e da vista são tremendas, apavorantes. O indivíduo vê pessoas de sua família supliciadas, mortas; vê esqueletos. Ouve vozes de pessoas conhecidas que lhe pedem socorro; escuta injúrias e ameaças que não o deixam tranquilo noite e dia. Desse modo se implanta o delírio de perseguição que atenaza o doente atrozmente durante anos.
“O parafrênico sistemático”, diz o prof. Roxo, “vive numa eterna desconfiança e na rua não há frase que lhe não seja alusiva, ou olhar que o não vise”.
“Anos depois, em geral, ou muito pouco tempo depois, em muitos, vem o delírio das grandezas”.
“Muitas vezes é ele chave de tudo quanto ocorreu antes. Era a inveja que o fazia odiado, por ser um milionário, por ser filho do rei, por ser o apaixonado de uma princesa”.
E assim vive o pobre alienado dentro do círculo de sua moléstia, cuja evolução é longa e penosa.
A parafrenia expansiva se caracteriza pelo delírio de grandezas, pela euforia com ligeira excitação, fazendo lembrar por vezes a excitação maníaca.
As ideias eróticas são frequentes, chegando mesmo, em certos casos, a dominar o quadro. Não são comuns os delírios de perseguição; quando eles aparecem, conservam-se sempre em plano secundário e não preocupam o doente.
A parafrenia confabulatória é constituída pelo abaixamento adquirido do nível intelectual e por um delírio em que se notam essencialmente muitas ilusões da memória e alucinações (Roxo).
É forma rara. Kraepelin, em 35 anos, apenas viu 12 casos.
A parafrenia fantástica se caracteriza pela existência de um delírio florescente, cheio de alucinações extravagantes absurdas, desconexas e mutáveis. É a forma clínica em que o doente diz frequentemente que os cachorros conversaram com ele, que os passarinhos lhe dirigiram a palavra, ou que o demônio se lhe apresentou, a discutir com ele (Roxo).
O delírio de perseguição é comum. O doente é desconfiado de tudo e de todos. As perturbações cenestésicas são intensas. Sente cheiro de clorofórmio, de éter. As alucinações auditivas são frequentes: vozes ameaçadoras são percebidas.
Telefones misteriosos, irradiações de toda natureza o perseguem constantemente.
Essa forma de parafrenia muito se assemelha com a forma paranoide da demência precoce.
A forma expansiva da parafrenia é a que apresenta mais rico manancial de símbolos para o estudo interpretativo psicanalítico.
Esta psicose, segundo Kraepelin, aparece entre os 30 e os 50 anos. O que a caracteriza, como vimos atrás, é um delírio de grandeza exuberante, com animo alevantado e facilmente irritável. Geralmente, as ideias de grandeza, segundo Kraepelin, na metade dos casos, e, segundo Bumke, com maior frequência, têm uma tinta erótica; em outras ocasiões adquirem elas uma tonalidade religiosa acompanhada de ideias de perseguição.
“Frequentemente”, diz Bumke, “tais ideias religiosas se confundem com as eróticas e dão lugar à fabulação que produzem uma impressão de onirismo ou de fantasia extraordinária”.