Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Capítulo 6 – Parte 1 – A Expressão Artística nos Alienados


Devemos lembrar que esta obra de Osório César é dos anos 1920. Desse modo, retrata conceitos da psiquiatria desse período, com uma linguagem que eventualmente pode soar estranha aos dias atuais. O que mais nos interessa é frisar o enfoque do autor a respeito da arte produzida pelos pacientes psiquiátricos, trazendo uma vertente humana desses indivíduos.
Osório César inicia o capítulo com frases que resumem o conteúdo do capítulo:
O “mattoide” de Lombroso. Conceito médico-psicológico da paranoia. Definição de H.  Roxo, Tanzi e Lugaro. Opinião de Freud. O “Antropotérico”, divagações filosóficas de um paranoico. Um literato excêntrico do Hospital do Juquery. Arthur Rimbaud precursor do “futurismo”. Desenhos de um louco moral do Hospital do Juquery.

...continuação do texto...

Lombroso criou a palavra “mattoide” (1) para designar os indivíduos comuns que apresentam semelhanças com os homens de gênio e para firmar uma transição gradual e imperceptível entre os loucos possuídos de gênio, os homens normais e os loucos propriamente ditos.
Esta variedade constitui na psiquiatria, como diz Lombroso (2), uma espécie particular de um gênero assinalado primeiramente por Maudsley, com o título de homens com temperamento vizinho da loucura; por Morel, por Legrand du Salle e por Schüle como nevrósicos hereditários; por Régis como nevropatas e ainda por muitos autores, como paranoicos.
“A paranoia, que significa pensar errado, pensar de viés", diz o prof. Roxo (3), "consiste em um delírio sistematizado, bem encaixado, lógico, sem alucinações como elemento essencial e antes como verdadeira exceção, em que de uma ideia falsa tira o indivíduo uma série de conclusões razoáveis e em que há, como vício fundamental, primitiva e originária autofilia, egocentria resultante, inadaptabilidade ao meio e reação consequente a este”.
A psicologia do paranoico (4) é vária, mas característica. A paranoia poucas vezes se encontra nos manicômios. São doentes que por aqui vivem cuja vida é um romance – muitas vezes trágico – que desgraçam famílias e esbanjam fortunas, mas que raramente caem entre as grades de um hospício. Defendem-se. Tornam-se perigosos. Apresentam-se como vítimas de ignóbeis perseguições. Discutem, argumentam, sofismam. Tão habilmente que a todos iludem. E conseguem impor-se às multidões. Passam por santos, por super-homens. Adquirem devotos. Admiradores incondicionais. São os casos de loucura coletiva – tão conhecidos – nos quais sempre uma personalidade mais forte age como indutora, como fonte fanatizante. Em todas as reformas sociais ou religiosas, não é sempre um homem que se impõe e domina os demais?
Mas na paranoia, existem várias formas. Distintas umas das outras. Que diferentemente provocam reações várias e aparentemente diversas. O fundo porém é único...
Alguns, de temperamento contemplativo, tornam-se santos, beatos. (Como os cristãos antigos, que fugiam para os desertos ou enterravam-se vivos em mosteiros). Outros, ativamente lutam, combatem em prol da verdade. E aí estão as lutas religiosas da história.
Em tudo por tudo a mesma feição delirante: nuns, delírio de reforma política, social ou religiosa; noutros apenas um singelo delírio religioso.
Contudo, são igualmente nocivos. Com suas reações antissociais, tudo ameaçam, tudo subvertem. (Os anarquistas militantes, em sua maioria, são meros paranoicos, afirma Lombroso).
À maneira dos cavaleiros andantes, mostram-se generosos, desinteressados. Novos Lancelotes du Lac, são capazes de gestos nobres, que mais os impõe à admiração do populacho.
Os paranoicos reformadores são sempre lúcidos, conscientes: não só não renegam suas ações, mas delas se vangloriam. Verdadeiramente apresentam um estado d’alma, que se não afasta muito do de um indivíduo normal, sob o estímulo de uma paixão, entusiasmado por um ideal nobre e alevantado. E por isto, fascinam, empolgam, dominam. Admirados, endeusados, consagrados, por sua vez sofrem a influência do meio, do ardor dos que os acompanham. Progressivamente, mais e mais se cristaliza a ideia de que são realmente super-homens, que tudo lhes é permitido. Que têm uma missão de bem e de justiça a cumprir na terra. Como bem diz o grande Euclides, estudando as etapas sucessivas do Profeta de Canudos.
Entre ignorantes, supersticiosos e broncos, passam como rastilho de pólvora as ideias incandescentes desses iluminados. Todos os anômalos crédulos e sugestionáveis, prontos a inflamarem-se por ideais heroicos e móveis transcendentes, são presa fácil de tais homens. Dizem-no os tratados de psiquiatria, dizem-nos os fatos.
O paranoico é, regra geral, um “assoiffé” de justiça. Suas palavras despertam eco, no fundo vago das aspirações latentes, de todo um povo. E os discípulos aparecem, e os sectários pululam, prontos para a luta, dispostos a derramar a última gota de sangue, por quem os hipnotizou. E tem-se Canudos... Perigo formidável e sempre iminente.
Tanzi e Lugaro (5) descrevem deste modo o paranoico: “I paranoici sono formalmente altrettanto mistici del volgo e dei selvaggi; in realtá sono piu mistici di essi e di tutti, perché il loro misticismo nasce, si svolge e persiste a dispetto dell’ambiente. Del resto, le manifestazioni del misticismo paranoico sono qualitativamente simili a quelle del misticismo primitivo: única differenza e appunto l’ambiente storico da cui scaturiscono. I primitivi sono figli del loro tempo; il paranoici sono anacronismi viventi. Il misticismo dei primitivi é la manifestazioni modesta, tranquilla e collectiva d’un pensiero imperfetto che si sviluppa; il misticismo dei paranoici é l’esplosione audace, violenta e individuale d’um pensiero in regressed anticivile”.
“Na paranoia Freud tem encontrado”, diz Franco da Rocha (6), “recalcadas, tendências sexuais diversas, e a principal força do recalcamento seria nesses casos o desgosto, a repugnância, o que quer dizer que o paranoico é em suma, autoacusador. Isso se torna possível pelo mecanismo que ele denomina de projeção, isto é, o paciente projeta sobre as pessoas de sua convivência os sentimentos de ódio que lhe surgem dos recalcados sentimentos de amor (homossexual). O paranoico acusa outras pessoas de estarem a dizer dele coisas que, na realidade, existem no seu próprio inconsciente. Sem a compreensão exata da ambivalência afetiva, será também impossível compreender o mecanismo da projeção. É indispensável admitir a existência de um sentimento consciente e de um oposto inconsciente, que é o que se projeta no exterior ou é atribuído a outras pessoas”.
Um dos fatos mais característicos que se nota na observação dos paranoicos é principalmente a convicção exagerada de seus méritos pessoais, de seu próprio valor perante a humanidade. E esta convencida opinião que eles têm de si próprios, não se cansam eles de demonstrá-la, tanto nos seus escritos, associações absurdas de ideias com contradições frequentes e prolixidade, como nos atos e conversações da vida diária.
Curiosa é também a preocupação que os paranoicos têm de quererem renovar as ideias dos homens políticos e dos grandes pensadores. E para isto eles empregam, nas suas discussões, uma maneira tão extravagante e inqualificavelmente exagerada nas ideias, que lhes emprestam, por vezes, um cunho original. Estes indivíduos, absolutamente convencidos de suas opiniões, não as modificam quaisquer que sejam os argumentos que lhes sejam apresentados.
É da lavra de um paranoico este trabalho filosófico:

                                            O Antropotérico (7)
“A Etiologia do Homem constitui hoje mais do que nunca um conglomerado de caracteres e fenômenos tais que só a Fisiologia e a Anatomia comparada de concerto com a Antroposomatologia e a História Natural é que podem estabelecer propriamente todas as analogias, antagonismos e ambiguidades concernentes ao curso da descendência correlativa ou árvore genealógica do tipo-homem. Considerados logicamente por um sistema de prismas eticopaleoontológico-antropogenético esses mesmíssimos dados etiológicos formarão ângulos de refringência no mesmo plano de arestas da Ontogenia e da Zoologia. Foi na segunda metade do século das luzes que floresceram os mais festejados cientistas e pensadores e ainda hoje em pleno século vintésimo cognominado do Pensamento, assiste-se predomínio absoluto daquelas doutrinas que tanto se imortalizaram no espírito da Humanidade e encontram ainda as mais francas e entusiásticas celebrações nos foyers da Atualidade. Como pioneiros do Evolucionismo (Cuvier do Atavismo do Globo). Lammarke, Linneu, Darvin, Huxley e Haeckel atestaram com a maior clarividência de testemunhos irrefutáveis, os pontos de contato e derivações consecutivas entre o tríplice reinado da História Natural”.
“Surgiu posteriormente o Positivismo cujos enciclopedistas apostolando (apostatando simultaneamente os mais transcendentes) todos os princípios da Filosofia rejeitaram perfunctoriamente a doutrina do Espiritualismo pretextando os seus preconceitos de verdadeira ‘res incognoscibilis’”.
“Mas a etiologia do homem nada sofreu perante qualquer seita até pelo contrário pelo papel que ela representa no cenário do modernismo filosófico pode-se considerar como a obra mais gigantesca do Espírito Humano e da qual só se pode cristalizar um transumpto monográfico ou epítome”.
“A Filogenia do Homem Pensante faz parte além da matemática e da astronomia porquanto só o homem pré-histórico é calculado aproximativamente em meio milhão de anos outros concursos igualmente poderosos como o da Biologia e da Arquimia vem completar o ciclo formidável dessa grandiosa disciplina”.
“Não obstante por assim dizer, tamanhas etapas do pitequismo ou macacos humanos, não obstante ainda os graus de civilização que o homem tem atingido durante tão longo transcurso histórico-biológico um enorme ou melhor avultado número de caracteres somáticos, fenômenos e idiossincrasias o têm conservado ainda no terreno dos quadrúpedes propriamente ditos. Se não fosse propriamente as articulações em diagonais dos membros apreensores e locomotores a prova mais autêntica da sua reversibilidade a um tipo inferior da escala zoológica haveria ainda outras características hierárquicas ou anatômicas quimiotóxicas e analíticas que militam rigorosamente contra o chamado Ortoestantismo”.
“Os braços que eram dotados de faculdades locomotrizes conservam-se por assim dizer dependurados no tronco e pelo menos uma modificação se patenteia aos nossos olhos por influxo talvez das adaptações mesológicas que foram inquestionavelmente progressivas; essa modificação é a flexibilidade invertida: flexão do cotovelo”.
“Nos membros inferiores se registram analogamente o mesmo fenômeno: flexão diametralmente opositória”.
“Ora essas modificações anatômicas são imanentes a todos os indivíduos logo é uma consequência congênita da estação ou melhor degenerescência congênita de Verticalismo que tende a desaparecer ulteriormente desde o momento em que a nossa Espécie adquira os seus primitivos caracteres morfogênicos e cujo computo cronológico é enigmático”.
“Pode-se fazer uma estimativa mais ou menos categórica da época de restauração do Homem em um tipo específico inferior muitíssimo inferior e cuja inferioridade na escala zoológica pode ir até os marsupiais; a classe básica dos animais por excelência, a classe que deu origem a tantíssimos representantes atávicos na época terciária se não nos falha a memória...”

E por aí vai, neste teor, empregando termos pomposos, neologismos, enchendo laudas de papel para chegar à conclusão de que o homem tende a voltar para a estação horizontal.
Espírito vivo, inteligente, de uma cultura mediana, este doente é dotado de uma memória prodigiosa.
Em quase todos os paranoicos grafômanos são dessa maneira tenazmente defendidas e sustentadas as suas convicções; entretanto, no meio desses escritos cheios de absurdos vamos encontrar, às vezes, ideias e pensamentos geniais.
“Quando comparamos”, diz Lombroso (8), "esses estúpidos abortos com as pinturas nascidas sob a inspiração da loucura (não falo aqui dos pintores que se tornam loucos, nos quais, como nos poetas e músicos, o talento antes se enfraqueceu, sobretudo pelas tendências viciosas e falta de harmonia nos tons), que diferença! Achar-se-á muitas vezes nos verdadeiros loucos, o absurdo, o desproporcionado, mas também encontrar-se-á o verdadeiro e a excessiva originalidade unidas a uma beleza selvagem e sui generis, que lembra em certos pontos as obras de arte da Idade Média e sobretudo dos Chineses e Japoneses, tão ricas, tão extraordinariamente ricas em símbolos; ver-se-á, em suma, que a arte sofre não da falta, mas do excesso de gênio que acaba por se abafar nele próprio”.

Notas de Osório César:
1 – Matto em italiano quer dizer louco.
2 – L’homme de Genie. Tradução francesa, pag. 344. Felix Alcan. Paris, 1909.
3 – Manual de Psiquiatria, 2ª ed., 1925.
4 – J. Penido Monteiro e Osório César. Do mórbido na literatura nacional. (Os Cangaceiros) de Carlos D. Fernandes. Imprensa Medica, nº 14, Dezembro, 1928.
5 – Tratatto dele Malattie Mentali. Milano, 1923.
6 – Obra citada.
7 – A ortografia, os neologismos e a pontuação estão aqui reproduzidos de acordo com os originais do autor (palavras estas do texto de Osório César).
8 – obra citada, página 380.