Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

domingo, 28 de março de 2021

A Expressão Artística nos Alienados – Capítulo 7 – Parte 5

  

Continua o texto de Osório César...

Lembremos que o texto é da década de 20 do século XX...

 

     É no período inicial da paralisia geral que a fecundidade intelectual se mostra mais intensa.

     A paralisia geral é uma terrível moléstia mental de origem sifilítica. Atualmente é a moléstia mental melhor conhecida sob o ponto de vista anátomo-clínico. Foi admiravelmente estudada por Bayle em 1822, em sua tese Arachnitis chronica.

     A sintomatologia da paralisia geral é bem característica. A moléstia tem uma evolução longa. No começo ela passa quase que desapercebida. O indivíduo apresenta ligeira mudança de caráter; humor alegre e prazenteiro. A autocrítica vai pouco a pouco desaparecendo e o doente começa a praticar coisas desconcertantes com o seu meio de vida. Assim, se o indivíduo é pobre, se é um pai de família honesto e respeitador, começa a gastar desabridamente, sem pensar nos filhos e, ao mesmo tempo, a apregoar fortuna que não existe. A sua moral decai completamente. É o delírio de grandeza, é o delírio erótico que dão o toque de alarme à terrível moléstia. Muito antes desses fenômenos se acentuarem, o paralítico geral vai passando na sociedade muitas vezes como um homem espirituoso, inteligente e realizador de ótimos negócios. Esse período pode durar muito tempo. É o período chamado pelos psiquiatras de “pré-paralítico”, “pré-delirante” (Christian), período médico-legal de Legrand de Saulle. Depois, pouco a pouco, esses fenômenos vão se acentuando de uma maneira assustadora ao lado de outros sintomas característicos da moléstia, como a disartria[1], a desigualdade pupilar, etc, sobrevindo logo as crises epileptiformes que denunciam a marcha fatal da moléstia.  

     O delírio de grandeza, que constitui um dos sintomas capitais para o diagnóstico da paralisia geral, é geralmente de forma expansiva. Esse delírio, por vezes, toma colorido especial e o seu conteúdo é tirado diretamente da profissão do indivíduo. Destarte, se o doente é escritor, os seus livros são os melhores do mundo; a suas edições são de trezentos milhões de exemplares; os seus livros foram traduzidos em todas as línguas da terra. Se é comerciante, ele diz que tem relações com todas as casas bancárias do mundo, que a sua riqueza não tem conta e fala somente em trilhões de moedas de ouro. É o delírio megalômano dos paralíticos que não possui limites.

     Conheci um doente paralítico geral no Hospital do Juquery, que tinha curioso delírio erótico de grandeza. Quando conversávamos, ele sempre me dizia: “Dr., eu tenho trezentas mil mulheres, todas novas e lindas sem par. O senhor pode escolher as que o senhor desejar, eu as faço presente. O meu membro é maior do que o Himalaia. Eu sou capaz de estar numa só noite com todas as mulheres do mundo”. No entanto, esse pobre doente se achava numa miséria física lastimável, em estado caquético.

     Por aí podemos ver o absurdo do seu delírio expansivo.

     “Todos os médicos sabem”, diz Moreau de Tours, “que é precisamente numa época onde tal indivíduo mostrou disposições intelectuais sem ninguém as haver suspeitado anteriormente, que a moléstia o surpreendeu: se é um homem de estudo, mais facilidade no trabalho intelectual, espontaneidade, imprevisto, originalidade nas ideias, nas concepções, esplendor na imaginação; se é um homem de negócios, mais capacidade, mais resolução nas especulações, mais segurança desta vez nos sucessos tão necessários para conduzir o bem das empresas difíceis... Tais são, comumente, os fenômenos psíquicos que, entre a maior parte dos paralíticos gerais, denunciam o prelúdio da moléstia”.

     Falando sobre a poesia e os paralíticos gerais, diz Régis[2]: “No começo desta terrível afecção, a inteligência, antes de soçobrar, arremessa frequentemente um último e vivo clarão. Nessa fase prodrômica de ‘dinamia funcional’, os doentes, possuídos por uma estimulação irresistível, produzem, com uma abundância e um calor incríveis, obras de toda espécie. Muitos desses trabalhos sentem já a demência iminente; a maior parte, entretanto, possui algum valor e, seja na escolha do motivo, seja no caráter ultra expansivo dos sentimentos, seja na vivacidade da forma e da expressão, trazem nitidamente a marca da exaltação mórbida que lhe deu nascença”.

 

 



[Referências colocadas por Osório César]

[1] Na disartria há dois tipos: o trêmulo e atáxico, o parético e espasmódico. No primeiro há incoordenação da palavra e grande tremor, sendo ela entrecortada, hesitante e incerta. No segundo, é ela mais vagarosa, mais soletrada, mais cantada e mais firme (Roxo).

[2] Poésie et Paralysie Générale – L’Encéphale, pag. 175. Março – Abril, 1906.

quinta-feira, 4 de março de 2021

A Expressão Artística nos Alienados – Capítulo 7 – Parte 4

  

A tradução não faz parte do texto original.

...continua Osório César...

 

      A melancolia também empresta à arte alguns momentos de atenção. Sob o nome de melancolia designou Pinel todo o delírio parcial, qualquer que fosse a sua natureza, alegre ou triste, expansivo ou depressivo. O termo tem hoje [em 1929] uma significação diversa. Segundo a escola de Kraepelin, como vimos atrás, a melancolia não é mais aceita como entidade mórbida independente, sendo encaixada na psicose maníaco-depressiva, de que constitui a forma melancólica, assim como a mania representa a forma maníaca. Naturalmente não queremos falar aqui dos doentes deprimidos, acompanhados de relaxamento profundo de todas as faculdades intelectuais, onde só se encontra absoluta esterilidade de imaginação artística.

      A esses muito bem podem ser aqui encaixadas as palavras do rei D. Duarte[1] no “Leal Conselheiro”, sobre a “melancolia-temperamento”: os doentes “só cuidam das coisas tristes, do aborrecimento de si, de outrem, com desesperança de todo o bem e grande suspeita dos males não requeridos, semelhando por sua frialdade e secura a terra seca de águas, que fruto bom e proveitoso não pode gerar”.

     É justamente entre os casos atenuados de melancolia, nos estados crepusculares, onde existe vislumbre de ideação, que vamos encontrar, algumas vezes, manifestações de arte.

     Como exemplo, escutemos estes harmoniosos versos intitulados “Pluie” [Chuva]:

Le ciel gris s’ennuie:

Une fine pluie

Pénètré mes os,

Et ma chair frissone.

La cloche qui sonne

L’enroue sous les eaux.

La pluie fine verse

Son onde. Et l’averse

Impassiblement

Mouille toute chose,

L’insecte et la rose.

Je vois vaguement…

Mon âme transie

Par l’humidité

Erre d’aventure,

Frémissante et pure

Dans l’air hébété.[2]

[Tradução livre:

“O céu cinza se entedia

Uma fina chuva

Penetra meus ossos

E minha carne treme.

O sino que soa

Se entedia sob as águas.

A chuva fina dirige

Sua onda. E o aguaceiro

Impassivelmente

Molha todas as coisas,

O inseto e a rosa

Eu vejo vagamente

Minha alma transida

Pela umidade

Vagueia em aventura

Tremente e pura

No ar atordoado”]

 

   



Referências originais de Osório César:

[1] Obra citada na página 129.

[2] Coleção do Asilo de Marselha. Citado por Antheaume et Dromard. Obra citada na página 268.