Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Breve Análise sobre Prefácio de Motta Filho

O Prefácio de Motta Filho ao livro de Osório César sobre a Expressão Artística dos Alienados pode revelar alguns elementos interessantes. 
Um primeiro aspecto corresponde ao prefácio feito por um artista, ou ainda literato, a um livro da área médica.
Isso denota uma correlação própria de Osório César com o mundo artístico ao mesmo tempo em que tem sua atividade médica e mais especificamente psiquiátrica, relação essa que perdurou por toda sua vida.
Um outro fator diz respeito à data desse prefácio: um texto de 1927 que se refere a observações e estudos feitos por Osório César alguns anos antes dessa data.
Esses são dados inovadores a respeito de estudos dessa natureza nesses anos. Os anos que antecederam o fim da Segunda Guerra Mundial e principalmente os anos antes de 1930 são ainda carentes de estudos que possam iluminar o que acontecia por esse tempo. Ainda são poucos os trabalhos que procuram aprofundar noções desse período. A partir de 1930 iniciou-se uma construção "getulista" da história que deixou para o período anterior apenas a marca de "República Velha", ficando o rótulo de "Nova República" para o período getulista e mais ainda o de "Estado Novo" a partir do regime instalado em 1937.
O texto de Motta Filho traz todo um clima em torno e parte do ambiente do Hospital de Juquery, como também o ambiente entre os intelectuais de São Paulo desse período. 
É certo que em 1920 Franco da Rocha já tinha publicado o primeiro livro no Brasil sobre a doutrina de Freud, embora já anos antes disso Freud vinha sendo episodicamente citado por alguns estudiosos. 
O texto de Motta Filho, que tinha participado da Semana de Arte Moderna de 1922, dá indícios de que ideias sobre psicologia corriam entre discussões e informativos populares e já outras seriam mais objeto de debate entre estudiosos. 
Além disso, ao falar em "cientificismo" Motta Filho já dá também a entender que as polêmicas em torno das ideias freudianas e os conceitos científicos já estavam presentes e ativas na São Paulo de então.
Essa São Paulo de 1927 é uma cidade de quase um milhão de habitantes, que em 1900 tinha em torno de 300 mil habitantes e que 30 anos antes tinha menos de 100 mil. Esses números dão ideia do crescimento meteórico de São Paulo nesse período, que era comparada a um permanente canteiro de obras (e será que não continua assim?).
Já se vê aí pelo texto de Motta Filho, bem como por esses números e todo o clima em torno disso, que a Sampa de Caetano Velloso talvez já estivesse ali não apenas "incubada" mas já... talvez... até mesmo...  (e mais do que uma figura de linguagem) "tropicalista'!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Prefácio de "A Expressão Artística nos Alienados"

A Expressão Artística nos Alienados – Osório César

Prefácio (escrito por Motta Filho em 12 de dezembro de 1927)

          Na última visita que fiz ao Hospital de Juquery em companhia de Osório César, ao entrar no amplo vestíbulo encontrei, encostado a uma coluna, um rapaz alto, bem afeiçoado, de olhar melancólico, que observava atentamente as pessoas que entravam. Como ficasse sozinho no vestíbulo, ele aproximou-se de mim timidamente:
          - O senhor é doente? Vai ficar internado?
          - Não – respondi.
          - ‘Me desculpe’; aqui não se distingue o louco do homem são. E, entre os médicos, há mais loucos de que entre os loucos.
          Falava pausadamente. E, de vez, seus olhos claros e tranqüilos tomavam uma expressão de revolta. Era um demente precoce. Trabalhava obediente e ordeiro no serviço do Hospital.
          À tarde, quando deixei o Hospital em demanda de S. Paulo, cortando de automóvel a colina verde e ondeante como um mar petrificado, fui trazendo comigo essa impressão desnorteante que me deram os infelizes insanos.
          Havia naqueles desgraçados, incapazes de se amoldarem à vida em sociedade, um fundo comum a todos nós. Não fora só aquele louco que me confundira pela segurança e firmeza de raciocínio. A maioria dos internados tinha um grande fundo de humanidade, que me fazia pensar naquela grande verdade que alguém escrevera: “em cada um de nós há um louco adormecido”.
          Este trabalho de Osório César, escrito com grande apuro científico e com a amenidade fascinante das obras de arte, veio sublinhar, com a autoridade de sua competência clínica, essa persistência robusta da humanidade nos entes mais desumanizados.
          Afinal de contas há em todos nós um louco adormecido, assim como há em todo louco um homem adormecido. Machado de Assis, que sofria de ataques epilépticos e que, assim, vivia a despertar dentro de si o homem e o louco, criou a figura delirante e comocionalmente humana de Quincas Borba e escreveu “O Alienista” onde uma ironia dolorosa e amarga procura a linha divisória entre a  normalidade e a loucura
          A arte nos alienados, como estuda carinhosamente Osório César, é a revelação maravilhosa de que a humanidade, em sua proteiforme manifestação, é sempre inexoravelmente a mesma. A arte é então a grande unificadora da espiritualidade humana. Ela parte da profundidade do inconsciente e, descarregando a angústia que enche o nosso peito de homem civilizado, de homem equilibrado, faz rebrotar em nós aquilo que fomos, aquilo que as conveniências do momento recalcam – a crença, o primitivo, o selvagem.
          O alienado, não possuindo o freio da normalidade, torna-se um ser à parte por isso mesmo, mas na arte, na arte que é a libertação para Goethe, que é a única flor para Schopenhauer – ele é tão humano, tão artista, como todos os homens, como todos os artistas.
          Dante, exaltado, falando sozinho em altas vozes pelas ruas escuras de Florença, tinha voltado do Inferno. As matronas benziam-se quando o viam passar de longe. As crianças fugiam aterrorizadas. Era feiticeiro, era mago. Era louco. Era o grande louco que se exaltara ao extremo de escrever a “Divina Comédia”.
                    “Io son fatta da Dio, sua merce tale”
                    “Che la vostra miseria non mi tange”
                    “Ne fiamma desto incendio non m’assale” (Inf. II)

          Louco fora Homero, loucos eram os artistas para as chacotas de Luciano; louco foi Milton e Cervantes foi louco; louco foi Camões explorando as suas próprias alucinações; louco foi Dostoievski que, como Dante, espantava a população tranquila de S. Petersburgo com seus gestos e parlandas; louco foi Balzac confundindo suas criações com a realidade; louco foi Maupassant que morreu louco. Louca foi a geração de artistas do século dezenove para a análise de Nordau, para a psicologia mórbida de Grasset...
          Se, de fato, quiséssemos aqui fazer psicologia fácil, popular, escandalosa, acabaríamos por afirmar que todo artista é louco.
          Mas não é. Nem todo artista é louco, como nem todo louco é artista. O que existe, de fato, é esse fundo comum, que é o espírito artístico que sempre se manifesta no homem; que nasce nas camadas profundas de seu inconsciente e transvasa para a vida como que aveludando a estrada daqueles que nasceram com o dom de não compreenderem a harmonia tranqüila da vida medíocre.
          Aquele velho paranoico que faz no hospício versos ritmados e belos; aquele pobre pintor místico; aquele pobre demente precoce catatônico que faz desenhos quase que como sente e pensa, - são todos eles possuidores daquela mesmíssima emoção, daquele mesmíssimo sentimento que fez com que Michelangelo ferisse com seu martelo os joelhos de seu formidável Moisés.
          Nunca em minha vida de artista e de estudioso encontrei uma definição de arte que me satisfizesse. Nem nas delineações aristotélicas nem depois que Baumgarten fundou a Estética. E isso porque, observando as formas mais rudimentares da arte, na cerâmica de Marajó, nos azulejos astecas, nos duendes (sic) dos primitivos africanos até nos monumentos assírios, nas funerárias dos egípcios, nos monumentos clássicos, nas catedrais góticas, nos monstros que espiam Paris do alto da Notre Dame, - penso que a arte despreza todas as definições pelo infinito mistério que contém em sua essência. Como o filósofo hindu, diante da lista das definições da vida, podemos nós, como ele, definir a arte: “nada disso”.
          Mas se nunca chegaremos a bem caracterizar os elementos essenciais da arte – poesia, emoção, sentimento, forma, inquietação, ritmo, - é talvez porque seja ela a forma menos intelectual da psique humana.
          Serviu-se, neste trabalho, Osório César da psicanálise para estudar a expressão artística nos alienados. Com efeito, Freud veio, com o seu método, esclarecer uma série de pontos escuros da Psicologia. Abriu o inconsciente fechado, de há muito, a sete chaves.
          Mas o grande médico austríaco não está bem conhecido entre nós. Espanta os rotineiros e é explorado pelos pedantes das novidades livrescas.
          Entretanto, por este trabalho de Osório César podemos, desde logo, avaliar a grandiosidade da conquista científica feita por Freud. No estudo das manifestações estéticas dos alienados, dirigido por um rigor custoso e paciente de um verdadeiro psicanalista que compreendeu bem a teoria freudiana em todas as suas formas, - nós encontramos, evidenciando-se, como um resultado de uma análise química, o fator inconsciente na vida afetiva e emocional da arte.
          Freud conseguiu, com sua teoria, trazer à realidade, mas a uma realidade objetiva, o inconsciente que andava apenas como categoria filosófica nas metafísicas acadêmicas. Fixando a mecânica do espírito pelo estudo das neuroses e pela observação dos sonhos, ele alargou a sua conquista para terrenos amplos e desconhecidos. O homem, senhor de uma individualidade própria, com inclinações e tendências diversas que caracterizam o seu “eu” – é obrigado na vida social a recalcar dentro de si uma porção de desejos a fim de se harmonizar com os preconceitos e tabus da vida em comum. Esse recalcamento que se opera quotidianamente, transvasa-se por diversas válvulas psíquicas que possuímos, tais como o sonho e a arte que é um sonho acordado.
          Não quero falar na origem das neuroses. Nem me sobra competência para tanto. Mas assinalo o papel que a arte desempenha na psicologia humana. Assim, sendo a arte um desabafo, um verdadeiro parto, na expressão romântica de Goethe, ela é essencialmente individual e pessoal, pode surgir, com toda a sua fascinação, com todas as suas galas e louçanias, tanto no homem normal como em um homem alienado, porque ela nasce no inconsciente, no instinto que são vivos em ambos. Tanto em um como em outro, a operação psíquica se dá. A arte se processa, tanto na normalidade, como na anormalidade, da mesma maneira.
          Mas, em se tratando da psicanálise, estou certo de que Osório César vai enfrentar a hostilidade do cientificismo dominante.
          Levará “bordoadas” como se diz na gíria. E eu, que prazenteiramente o acompanho, faço votos para que dessa luta o seu nome ganhe a vitória que tanto merece a sua honesta cultura e o seu formoso talento.
           São Paulo, 12 de Dezembro de 1927.
                                                                                   Motta Filho

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A Expressão Artística dos Alienados - Preâmbulo

A Expressão Artística nos Alienados (contribuição para o estudo dos símbolos na Arte)

Osório César publicou esse livro em 1929, mas no que intitula como “Advertência”, após o Prefácio de Motta Filho, ele acentua que o trabalho contido nessa obra iniciou-se em 1923, logo de sua entrada no Hospital de Juquery, pois ele já tinha tal interesse.
Assim, vemos que mais de vinte anos antes de Nise da Silveira, Osório César já buscava fazer esse tipo de estudo. Não vai aqui a preocupação de “quem fez o quê primeiro”, mas sim de recuperar um trabalho esquecido, bem como de descobrir que dentro do Juquery existiam, na verdade, “vários Juquerys” e um deles era o abordado por Osório César.
Faremos uma exposição gradual desse livro de Osório César, com o uso da grafia atualizada em relação à de 1929. Mantivemos apenas a grafia de “Juquery” com “Y”, seguindo uma tendência iniciada na obra de M.C.P. Silva, em sua obra de 1986 sobre o Juquery, como um “laço”, um “gancho” no tempo, que possa parcialmente transpostar-nos ao tempo em que os trabalhos foram feitos.
Logo no início do livro observamos a dedicatória de Osório César:

“A Freitas Valle,
a quem devo tudo o que sou,
A Antonio Carlos Pacheco e Silva,
meu mestre e amigo, e
A Alarico Silveira, que me inspirou e
encorajou este modesto trabalho contribuindo
com uma grande parte da bibliografia
que nele se encontra”.

Talvez nessa dedicatória o que mais chame a atenção é a menção ao psiquiatra e Diretor do Hospital do Juquery Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988), por saber-se hoje que no transcorrer de sua história pessoal alinhou-se com posturas eugênicas e com governos ditatoriais, enquanto Osório César foi um entusiasta do marxismo. Essa menção pode levar a várias suposições, como, por exemplo, se as posições políticas dos dois teriam sido melhor definidas mais tarde, ou ainda se tratava-se mais de uma relação entre mestre e aluno, à margem de posturas políticas. Podem ser feitas essas ou outras hipóteses, por ora difíceis de confirmação. O que fazemos aqui é apenas o registro e a constatação de que os anos 1920 podem ter sido mais complexos do que se possa supor.
A dedicatória a Freitas Valle (Senador Freitas Valle – 1870-1958) pode se dever mais ao lado artístico de Osório César, já que se tratava de um grande mecenas das Artes em São Paulo, que concedia bolsas e apoio a vários artistas. Freitas Valle era advogado, poeta, político e de família abastada. Assim, em 1904 comprou uma chácara próxima à Avenida Paulista que chamou de Vila Kirial, tornando-a uma espécie de espaço cultural similar a correlatos europeus. Freitas Valle participou da fundação da Pinacoteca em 1906, em 1911 participou da organização da Primeira Exposição Brasileira de Belas Artes. Também em 1911 integrou bancas do recém criado Pensionato Artístico do Estado de São Paulo com bolsas a artistas como Victor Brecheret e Anita Malfatti entre outros. Em 1912 foi um dos fundadores da Sociedade Artística. Em 1913 patrocinou a primeira exposição de Lasar Segall. Freitas Valle era deputado pelo PRP e amigo de Washington Luiz e Julio Prestes e desistiu da política após a saída de ambos do cenário político.
Alarico da Silveira era advogado, político. Foi autor de uma enciclopédia.




domingo, 12 de fevereiro de 2012

Biografia de Osório César

           Osório Thaumaturgo César nasceu em 1895, em João Pessoa, Paraíba. Chegou a São Paulo com 17 anos de idade (1912), onde estudou Odontologia. Na ocasião, para se sustentar, deu aulas de violino. Começou a estudar Medicina em 1918 no Curso de Medicina ministrado junto à Escola de Farmácia, que fazia parte da então chamada Universidade de São Paulo (que não era a mesma que a atual, a qual foi fundada em 1934). Com a extinção dessa Universidade, ele transferiu-se para a Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, em 1920. Formou-se em 1925, aos trinta anos de idade, fixando-se na área de Anatomia Patológica. Antes disso, em 1923, já frequentava o Hospital do Juquery como interno. Nesse local, foi oficialmente contratado como médico, e assim permaneceu por quarenta anos.
          César lançou em 1919 o livro “Doutrinas Biológicas” (ainda quando estudante), dedicado ao estudioso argentino Ingegnieros e prefaciado pelo médico Ulysses Paranhos. Em 1922 lançou os trabalhos “A chimica da vida” e “Dois Ensaios”, sendo que, neste último, fez correlações entre reações de albuminas e funções psíquicas.
          Em 1927, em parceria com J. Penido Monteiro, escreveu “Contribuição ao Estudo do Simbolismo Mystico nos Alienados: um Caso de Demência Precoce Paranoide num Antigo Escultor”, obra essa que, segundo alguns, chegou a ser traduzida para o francês e para o alemão. Em 1929 lançou a obra “A expressão artística nos alienados: contribuição para o estudo dos symbolos na arte”.
          Nesses anos frequentou o meio intelectual paulista e círculos interessados em psicanálise.
          Nos anos 1930, César estudou em Paris e também na Alemanha, Itália e União Soviética, tendo participado de um Congresso de Psiquiatria sob a presidência de Pavlov. Na ocasião foi acompanhado por Tarsila do Amaral, então sua companheira. César teve grande afinidade pelo Marxismo, sendo que, em 1933, publicou dois livros sobre o “Estado Proletário”, um ano após retornar da União Soviética. Por isso, foi preso pelo governo de Getúlio Vargas.
          Em 1933 participou da exposição organizada por Flávio de Carvalho no Clube dos Artistas Modernos, chamada “Semana dos Loucos e das Crianças”, com a palestra intitulada “Estudo Comparativo Entre a Arte de Vanguarda e a Arte dos Alienados”.
          Em 1948 organizou a “Primeira Exposição de Arte do Hospital do Juqueri” no Museu de Arte de São Paulo, com obras dos doentes.
          Em 1949 criou a Seção de Pintura do Juqueri. Essa seção e a Associação de Assistência aos Psicopatas de São Paulo promoveram exposições na capital e no interior.
          Em 1950 apresentou sua coleção de obras em Paris, na “Exposição de Arte Psicopatológica” do Primeiro Congresso Internacional de Psiquiatria. Nessa ocasião apresentou o texto “Contribuição ao Estudo da Arte entre os Alienados”.
          Em 1952 foi convidado pela Maison National de Chareton para ir a Paris estudar Psiquiatria Social, onde ministrou a palestra “Arte em Psicopatologia” na Sociedade Médico-Psicológica.
          Osório César promovia reuniões em sua residência com músicos e pintores, quando, a partir da música, os pintores faziam certa produções. Desse ambiente participavam Walter Levy, Aldo Bonadei, Mário Zanini, Carlos Scliar, Gastão Worms, Durval Serra, entre outros. A música ouvida era principalmente de Beethoven, Prokoffief e Stravinsky.
          Em 1986, Osório César morreu em São Paulo.
Bibliografia:
Neves, A.C. – O Emergir do Corpo Neurológico. Editora Companhia Ilimitada, 2010.
Andriolo, A.A. – A Psicologia da Arte no olhar de Osório César: leituras e escritos. Psicologia, Ciência e Profissão, 23 (4): 74-81, 2003.