Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Capítulo 6 – Parte 2 – A Expressão Artística nos Alienados


(no cabeçalho desta parte consta: "um literato excêntrico do Hospital do Juquery")

...continuação do texto... 

Vejamos mais um caso de um doente paranoico, cujas produções literárias são imaginosas e cheias de harmonia e beleza.
Em primeiro lugar vamos contar aqui a sua história psiquiátrica:

“L. (1), colombiano, de cor branca, de 40 anos, solteiro, acha-se no Hospital há mais de quatro anos; foi preso como perigoso agitador popular. Não tem profissão; é socialista-anarquista e, nas horas vagas... jornalista. Há mais de quatro anos o observamos, sempre em estado hipermaníaco, nunca o vimos deprimido, nem um dia. Inteligente, sempre animado, verboso, tem a palavra fácil, espontânea; é orador nato. Dispondo de tal facúndia a serviço de ideias subversivas, não poderá deixar de ser um homem perigoso  no meio de um populacho ignorante, ingênuo, que se deixará facilmente empolgar pelo brilho do exterior de sua verbosidade balofa. Conserva intacta a forma lógica exterior do raciocínio. Imaginação exaltada, concebe ideias e projetos políticos, científicos e literários, sem descambar jamais para a fuga de ideias ou para qualquer outra desordem associativa. Suas ideias nunca saem da esfera do possível; sua palestra é picante, irônica e, por vezes, espirituosa; o seu estado de humor eufórico é contínuo; raros são os momentos em que se deixa arrebatar pela cólera, mas nem mesmo assim descai para a confusão ideativa; é coerente, lógico. Não apresenta ilusões nem alucinações. Sua atenção é normal e, frequentemente, até aguçada. Sua memória é fenomenal; é o sintoma saliente de sua morbidez mental. Lê tudo que lhe cai às mãos e guarda tudo que lê com pasmosa fidelidade. É prodigiosa sua faculdade de retentiva e de evocação. Sua cabeça é uma miscelânea. Ali há de tudo: política, ciência, literatura e arte. Basta tocar no assunto por  uma palavra, é o mesmo que puxar pela ponta o fio de um carretel. Pode falar muitas horas seguidas, não se cansa; isso prova que se trata de um puro automatismo ideativo. Quando dispõe de papel, pena e tinta, escreve tanto como fala em outras horas; escreve versos, escreve artigos, sempre com a mesma inesgotável fecundidade”.
“É um caso típico e puro de mania mitigada ou hipomania. Que se trata de um degenerado, não resta a menor dúvida; um cérebro que se tenha desenvolvido normalmente não apresentará jamais esta forma de loucura”.

A nosso ver trata-se de um “paranoico”, de um degenerado superior.

“Os degenerados têm quase sempre uma hipertrofia do ‘eu’(2), uma exacerbação singular de sua personalidade, um egotismo mórbido em virtude do qual nada vem fora de si próprio. Tudo que disto se afaste não os comove e parece-lhes desinteressante e inútil. Assim, é-lhes impossível conservar uma perfeita posição no mundo exterior. O que os caracteriza antes de mais, é a própria incapacidade no adaptar-se às condições habituais da vida. O degenerado egotista, antissocial, se não em ações, pelo menos por pensamentos, exterioriza constantemente seu mal humor, sua insatisfação invejosa. A natureza, os homens, tudo entretém sua revolta, seu pessimismo. Descuidado das opiniões estabelecidas e dos costumes sociais, ele se exclui nos seus julgamentos puramente subjetivos, confundindo o erro e a verdade, substituindo ao belo o feio, e cultivando igualmente tanto o mal quanto o bem. Sempre à procura de novas sensações, os degenerados, por vezes, são dotados de faculdades brilhantes para descobri-los; são frequentemente engenhosos e, não raro, artistas. No entretanto, a arte deles é desigual; suas produções denunciam particularmente o próprio desequilíbrio, e suas obras refletem a falta de unidade que é a base de sua psicologia. A par de uma sensibilidade doentia, eles manifestam uma inclinação deplorável, uma tendência desastrosa para a extravagância, um desejo incrível de originalidade, uma característica necessidade de singular-se em tudo e por tudo. Essas emoções de que são ávidos, eles a procuram fora do habitual e do moral"(3).

Esse quadro que acabamos de ver encaixa-se perfeitamente na observação do nosso doente, se bem que a palavra degeneração tenha ainda sentido muito discutido quanto à sua verdadeira acepção e significação. Leutz (4) diz que somente devem ser colocados na classificação de degenerados os idiotas, os imbecis e os débeis com ou sem perversões dos instintos ou das aberrações do senso. Magnan, Lombroso, Toulouse já consideram assim a palavra degeneração. Para esses autores, a denominação de degenerados se aplica a todos os indivíduos, quer fisicamente, intelectualmente ou moralmente, que estejam afastados do tipo normal da humanidade. Régis dá-nos uma ideia mais clara da degenerescência: “é uma alienação constitucional”, diz ele, “que afeta a inteligência não somente no seu modo de atividade, mas na sua própria constituição” (5).
Muitas vezes acontece que as taras físicas da degenerescência observadas pelos autores não são constantes nesses indivíduos. Assim, Pitres e Régis (6) fizeram notar a falta desses sinais somáticos na maioria dos degenerados: “La plupart”, dizem eles, “ont le crâne bien conforme, les dents bien implantées, les organes génitaux normalement développés; ils ne présentent même pas plus solvente que les sujets réputés sains les petits stigmates auxquels ont était porte naguère à attacher une importance fort exagérée”.
Magnan determinou graus de evolução nas degenerescências. Há, portanto, o tipo de degenerados superiores, que é constituído por simples anomalia. Há o tipo criado por Régis de Monstruosidades e há o tipo mais baixo, que é o tipo dos degenerados inferiores; neste tipo estão incluídos: o cretino, o idiota e o imbecil. Há ainda um outro grupo onde estão os degenerados médios:Ce sont des individus peu intelligents”, diz Vigen (7), “doués d’une certaine imagination, d’une mémoire difficile ou uniquement d’une specialité de mémoire: celle des dates, des noms propres, des chiffres par exemple. Les facultes d’ordre son absentes. Ils sont donc incapables d’idées fécondes et se débattent sans cesse dans ces conceptions étroites et stériles, et engendrent des associations d’idées d’une pauvreté remarquale, des raisonnements d’une stupidité désesperante, des jugements d’une faiblesse inouise. Ce sont, sous un autre nom, des dèbiles et des arriérés”.
Voltemos ao nosso caso. Que se trata de um degenerado superior é o que estamos convencidos com o caso de L. A sua observação atual em nada se modificou. As suas teorias continuam anarquistas. Nunca está contente com os prazeres que se lhe proporcionam. Continua a ler muito e tudo o que lhe cai às mãos, desde os jornais até os anúncios de remédios. Daí, talvez, o seu polimorfismo literário, pois escreve sobre todos os assuntos e com uma facilidade espantosa. Os seus escritos são agradáveis à leitura e os seus períodos são insinuantes, incisivos e doutrinários. A sua crítica é mordente e às vezes de uma lógica irrefutável. Outras vezes, os seus escritos estão cheios de paradoxos. Quem ler os seus trabalhos tem a impressão de ler um discípulo de Vargas Vila, tal a semelhança que apresenta o seu estilo com o do escritor colombiano. É preciso dizermos aqui que L. é um apaixonado admirador de Vargas Vila; conhece quase todos os  seus livros e, se dermos crédito ao que ele diz, foi companheiro daquele apreciado escritor.
Ouçamo-lo em

Reflecciones de un Solitario...
Para J. (8)
Homenaje de alto aprecio
                   I
El Psico-Análisis, para uso y em uso de los Médico-mentalistas, no será un puñal, en manos de un loco?
                 II
El Psiquismo, á disposición de los Psiquiatras, no será como un reloj, em poder de un niño?
              III
Hace 150 años, que um Medico, lhamado Pinel, descubrio El Recogimiento como única panacea, para las enfermidades mentales y anexos. Pasado esse tempo, outro Médico célebre, Kraepelin, confirmo la tal descubierta, aconsejando El Encierro (!) como remedio soberano, para Locuras y Delirios. Recoger, Encerrar, Coatar, Aislar, he ahi la Fórmula, antigua y moderna, em la cual se sintetiza el adelanto (?) de la famosa Doctrina Alienifera. El progresso de La Psiquiatria, vá, pues, como el Cangrejo, de adelante para atrás, ó mucho peor. I á eso lo lhaman Evolución!
             IV
La Medicina Mental, no pasa de un flagrante atropelo á las libertades individuales y al Derecho Natural. Si fuese uma ciencia exacta, no tendria tantas lagunas y monstruosidades. Sobretudo, si tuviese prévio desarrollo lógico, no tendria necessidad de la ayuda de La Policia, para la tarea de Recoger! Los Delegados son, em realidad, los verdaderos vehículos de esta semi-ciencia. De ahi ser odioso para El Publico todo lo relacionado con hospícios y alienistas. El dia que desapareça la intervención de los Secretas y tiras, no veremos en Los Hospicios, mayores interdictos y otros revoltantes actos de origen policivo!
           V
Los buitres devorando el pecho de Prometeo! Quiza sea esa legenda mitológica, el mejor schema para representar los sufrimientos de Un Hombre en el mulador de Un Hospicio!
           VI
El Cristo lhamó á los Hipocritas: Sepulcros blanqueados. Yo creo que no fué sino á los hijos de Hipócrates que el se refirio! Habeis visto fachada de Petulancia igual a la de los clínicos hospitalares? Observa los Hospicios. Que barniz atrayente! Que fuentes! Que jardines! Si hasta parece que se musicaliza el Silencio! Eso en los Halls. Y por dentro? Extorsión, Podredumbre, Necroterio Jeologico! Asi los Psiquiatras. Externamente, sonrisas, promesas, armonia. Interiormente: Engano, traición, canalhada!
c           VII
Qué es La Alienologia? Un Microbio macróbio – Una Lección Lesionada – Una imensa cantidad de Palabras Palabreadas.
          VIII
Qué es un Hospicio? Un Hospicio es um Chiquero Evangelico; una cloaca mefítica; un Necroburgo, á priori.
           IX
El Monólogo, - dicen los Psiquiatras, - es prueba de Degeneración. Esse es un preconcepto ad hoc y fatal que los clínicos esgrimen para aumentar el valor de su pesquisa, y rebajar la superioridad etiológica de ciertas manifestaciones intelectuales, ad natum. Por ventura, no fué El Soliloquio, la prerrogativa de ciertos Grandes Espiritus, aislados, concientemente, en el domínio inefable de La Contemplación? Y qué es esta, sino el refugio abstraído de La Palabra y La Idea? Los máximos Pensadores así lo comprendieron, desde Demóstenes que hablaba sólo, á órillas del Helesponto, hasta MIchelet y De Maistre, que concebieron y dieron a luz sus sublimes partos ortezales; monologando Mozart y Beethoven, hicieron  sus famosas Partituras y Sonatas, conversando consigo mismos. Y San Agustin y Bossuet, dialogaban con ellos, es decir, con otro, Agustin y el otro Bossuet, subgetivos… En la actualidad, Lloyd George y Venizelos, palestran con su Yo, al componer sus vigorosas sinfonias oratorias…J…Mas do que valem los ejemplos vividos, ante el analisis mortifero de los Patólogos adocenados e incompetentes? Esos Sepultureros del Espirito que en todo buscan, ansiosos, el átomo de la Malversasión e Incoherencia?
La armónica série de Delectatión Artistica y Placer Creatriz, es siempre, para ellos, materia de autopsia, y la Musica que todo individuo electo trae consigo, solo sirve a los Patologistas, para espiar y apurar el sedante de mezquinos syndromas! Ironia cruel que sólo el Desden combate y neutraliza, en la olímpica retorta del Desperdicio.
                X
La neuro-Psicopatia, oficializada, no será El Error convertido en Ley?
               XI
El recogido hace ruído y contorciones? – Es loco furioso e incurable afirma el Alienista. – El recogido no hace ruído ni contorciones? – Cretino es, assegura el Galeno, é incurable tambien, por lo mismo... En ese diametro ferreo descansa el valor de todo el edifício psiconeurologico. Despues de este Resúmen de Patogenia curatriz, - habrá alguien – que no sea idiota – que crea en el embrión psiquiatrico?
Fragmentos de la obra inédita “Los amados de Molière”.     "1924"

Notas de Osório César:
1 – Esta observação é do prof. Franco da Rocha e foi extraída de sua memória.
2 – (no rodapé e no texto não há numeração correspondente a esta nota) “Psicose maníaco-depressiva”, apresentada ao 2º Congresso de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal de São Paulo, pag. 46, 1918.
3 – Antheaume et Domard. Obra citada pag. 195-196.
4 – Citado por Vigen. Le talento poétique chez les dégénérés. Thèse. Bordeaux, 1904.
5 – Régis. Manuel pratique de médecine mentale, pag. 250, 2ª ed.
6 – Citado por Vigen.
7 – Obra citada, pag. 31.
8 – Dedicado a um toxicômano crônico, internado judicialmente.