Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Capítulo 5 – Parte 2 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

Vários autores têm classificado a arte dos alienados em diversos grupos diferentes, segundo o estado mental de cada um.
M. Pailhas (d’Albi) (1), tratando das artes nos alienados, distinguiu 5 modalidades diferentes, que classificou da seguinte maneira:

1) – Dos degenerados com mentalidade débil e geralmente mais pervertida do que delirante. Entre eles, encontram-se as tatuagens, as pinturas sobre os muros, etc., cuja composição, ordinariamente muito vulgar, frequentemente obscura, se limita a traduzir tendências desregradas, orgulho, erotismo, misticismo, etc..
2) – Dos loucos circulares no período de exaltação. Alguns desses doentes, dotados de educação geral e de certas aptidões artísticas anteriores, algumas vezes fazem obras extraordinárias e especialmente originais quanto ao sentido e à forma.
3) – Dos maníacos, entre os quais a veia artística se mostra submissa aos processos intermitentes, qualquer que seja a aparente continuidade do delírio. Mais do que no outro caso, a composição traz aqui a impressão desse delírio. Frequentemente, a originalidade das concepções e a habilidade da execução permitem excluir a demência, pelo menos nos graus avançados.
4) – Das demências constituídas. Aqui se acusa manifestamente uma volta para a arte infantil, para as estereotipias, as composições deformadas, incoerentes e hieroglíficas. Isto se verifica por acaso e desde que o doente seja um profissional ou um prático da arte, produzindo obras de algum valor, graças ao exercício automático das aptidões antigas.
5) – Das demências precoces e paralíticas, nos períodos de exaltação iniciais.

Réja (2) classifica, assim, em três grupos as obras de arte dos loucos que nunca produziram antes da moléstia:

  1) Obras que denunciam uma desagregação mental, caracterizada por um automatismo quase puro.
  2)  Obras onde se encontra contida uma emoção ou uma ideia.
  3)   Obras onde se encontra contida uma emoção ou uma ideia com um cuidado de análise literária.

No primeiro grupo estão as obras que os doentes compõem e que são simplesmente reminiscências e coisas lidas e ouvidas antigamente de outros autores e retidas na memória, reveladas agora, desordenadamente, em verso ou em prosa, apresentando estilo extravagante, em certos casos originais, acompanhadas, às vezes, de conceitos pessoais.
Como exemplo dos escritos desse grupo vamos ver, mais adiante, os versos de um demente precoce paranoide, criminoso, compostos durante a sua estada na Penitenciária.
Em primeiro lugar contemos a história de sua doença:

  A. (3), 35 anos, brasileiro, pardo, internado na Penitenciária em 28 de Março de 1922 por homicídio, condenado a 15 anos. Na observação feita pelo Dr. José de Moraes Mello, durante o tempo que o doente esteve na Penitenciária, consta o seguinte:
Exame somático: Bem posto no uniforme, arrogante, inquiridor, sem gestos. Assimetria craniana. Sensibilidade, marcha e movimentos normais. Reflexos normais. Não há disartrias.
Filho de pais lavradores, analfabetos e alcoólatras. A. nasceu nos sertões da Paraíba do Norte, Lagoa Grande, aos 15 de Agosto de 1890.
Anamnese: Frequentou durante 3 anos escola primária, mal viveu com os seus até os dezoito anos, e nessa idade abandonou-os, fugindo para Pernambuco, onde, em 1915, angariaram-no para a Marinha de Guerra; foi, diz ele (o Estado Maior da Armada infirma a alegação), Marinheiro Nacional e praça do Regimento de Fuzileiros Navais até 1918, quando teve baixa. Transferiu-se então para São Paulo, Presidente Alves, onde, como trabalhador braçal, viveu até ser preso aos 14 de Setembro de 1919, por homicídio. Processado, foi condenado a quinze anos de prisão, entrando na Penitenciária aos 28 de Março de 1922.
Como antecedentes mórbidos acusa sarampo, gripe e gonorreia. Era alcoólatra e fumante.
Exame psíquico: Cultura rudimentar que o evolver da vida enriqueceu de conhecimentos e coisas várias, uns e outros mal compreendidos e deturpados; a ideação, que um narcisismo moral e intelectual condiciona, é de uma riqueza de belquior, feita de recordações fragmentadas, mal sabidas e truncadas, ditas com ênfase tola e gesticulação imprópria, e escritas em grafia horrível, sob incansável e irreprimível impulsão; a orientação, no tempo e no espaço, é perfeita e a memória boa e pronta, embora fornida de uma provisão mal adquirida de lembranças, recordações que ele aproveita, quer em prosa cheia de impropriedades e de impenetráveis sentenças, quer versejando a seu modo, mas conservando, através de todos os tropeços e tolices, a cadência dos cânticos populares”.

Termina o Dr. Moraes Mello diagnosticando esse caso como o de uma síndrome paranoide.

No Hospital do Juquery o doente foi examinado durante alguns meses pelo Dr. Mário de Gouvêa, cuja observação psiquiátrica passamos a relatar:

Removido A. da Penitenciária, porque o doutor clínico daquele presídio encontrou na dedução diagnóstica uma síndrome paranoide. Chegou a essa conclusão porque viu no quadro mórbido um delírio persecutório, o raciocínio repousado em bases falsas, a egolatria, um temperamento violento e a inadaptação ao regime da Casa. Documentando a sua bem cuidada observação aparecem versos assinados pelo doente, porém, evidentemente, muitos não são mais que reminiscências de leituras antigas; uma cópia de uma carta que o nosso observando endereçou ao Dr. Pisa dá ideia mais exata do estado mental que justificou o pedido de remoção. Aí está patente um delírio que não é fixo e repousa sobre ilusões e alucinações, que ele descreve sem rebuços: “desejava falar pessoalmente com Vossa Excelência porque é certo que sonhei com coisas importantes para a ordem pública: descobri os processos de uma revolução em vista para ser posta em prática. Fui traído pela turma de bandidos lá do Hospital. Outros vêm pelo subterrâneo, que tem por baixo da Penitenciária, me atormentar com o fim de eu não confessar as ideias religiosas. Devo confessar que sou atormentado noite e dia; estas linhas são escritas em baixo com tormentos. Peço respeitosamente a Vossa Excelência me mande tirar desta cela que está ‘enroscada’... Os doutores do Hospital com procedimento incorreto dizem a Vossa Excelência que eu estou ‘cozando’ das faculdades mentais a fim de prejudicar os meus ‘reitos’, venho dizer que foi ‘um espírito’ que ‘dilou-me lados linha”.
Conta-nos ainda que agrediu, por uma simples observação, a um mestre da oficina, que em 1919 matou estupidamente uma mulher porque repeliu uma proposta imoral.
A nossa observação confirma a síndrome paranoide do nosso colega.
De fato, A. pensa como lhe consente o seu caráter: é – no dizer expressivo de Franco da Rocha – através de uma lente deformada que ele vê e interpreta o mundo. Ouçamo-lo:

- Mas afinal, A. porque estás aqui? Qual foi o teu crime?
- Sr. Doutor. A sociedade mandou me prender julgando que eu a estava ofendendo em alguma coisa. Sou, desde pequeno, um perseguido desde 9 anos não sei que é família... separado dela; se apanho um dinheiro, vou para o jogo, perco; vou na venda, bebo; vou parar na Cadeia... Tenho necessidade, roubo... e a Sociedade entende, ainda por cima, que eu a estou ofendendo...
- Mas, A., então achas direito roubar?
- Mas se eu tenho fome, não hei de roubar? Depois, seu Doutor, eu roubo sempre com muita justiça: nunca deixo o outro desprevenido...
- Queres dizer que só roubas os ricos?
- Certo; não vou roubar quem não tem...

Desconfiança, ousadia, egocentrismo, delírio ambicioso, sem fixidez, tudo isso observamos aqui e são elementos que falam a favor da "síndrome paranoide". É frequente contar bravatas aos companheiros, dizer que é "doutor", que tem muito dinheiro, falar em 152 mil contos que o Dr. Jerônimo Monteiro mandou depositar no Banco de Londres em nome dele, A... Escreve versos e lê, muito "convencido" dos seus "dotes literários".  

Notas de Osório César:
1 – Projet de création d’um musée reservé aux manifestations artistiques des alienés. L’Encephale. Deuxième semestre, 1908, pag. 426.
2 – M. Réja. L’Art chez les fous, pag. 116. Ed. Mercure de France. Paris, 1917.
3 – Archivo psychiatrico do Hospital de Juquery. Anno 1926.