Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

A Expressão Artística dos Alienados - Conclusão

 

[devemos frisar que Osório César utiliza uma linguagem psiquiátrica e artística da década de 1920 do século XX]

 

          Pelo que acabamos de ver, o louco não é um indivíduo desprezível que mereça desinteresse da sociedade. Ele não é o homem que somente sabe dizer coisas engraçadas e atrapalhadas como um palhaço de circo; que só faz má ação; que se enfurece por “dá cá aquela palha”; que se zanga constantemente com todas as pessoas de casa por ser contrariado nos seus desejos; que rasga a roupa, quebra os pratos e bate nos pais e ameaça de morte os supostos inimigos. O louco, realmente, é tudo isso. Dentro do seu mundo circundante e do seu eu interior, ele tem o seu ponto de vista anormal. Fora daí, ele é um homem tão perfeito como qualquer outro. Veste-se bem, come, dorme, trabalha quando quer, discute as suas ideias e critica as alheias, diz “piadas” e produz, quando inspirado, obras de arte de valor inestimável. São poetas, oradores, desenhistas uns, e pintores, escultores, músicos, filósofos outros. E não se pense que a manifestação da arte nos alienados sejam produtos de estereotipias, sem nenhuma emoção, sem nenhum interesse, sem nenhuma significação, sem nenhuma finalidade. Longe disso. As representações de arte desses doentes são todas emocionais, pois elas são de caráter espontâneo e se dirigem para um fito único: a satisfação de uma necessidade instintiva. Elas representam descargas acumuladas de emoções, durante muito tempo no subconsciente adormecidas pela censura, em virtude de certos impulsos de ordem moral.

          É com carinho que os doentes estilizam um motivo qualquer em desenhos decorativos e guardam sempre consigo. Isso é comum, sobretudo, entre os dementes precoces catatônicos, que dificilmente se separam de seus desenhos. Noutros, por exemplo, na psicose maníaco-depressiva, em que as produções literárias são abundantíssimas, eles distribuem com prazer os produtos de sua inspiração aos que lhes são caros. Nós mesmos possuímos, na nossa coleção, cerca de 300 poesias de um desses doentes.

          Como nos indivíduos normais, a arte nos alienados também apresenta senões. Ora são erros gramaticais, incoerência de ideias, ora são neologismos, saladas de palavras etc., que deparamos nas suas composições literárias. Nas esculturas, nos desenhos, ora são expressões deformadas, proporções exageradas, ora são falhas de perspectivas e puerilidades. Mas, isso tudo é muito relativo. Para o nosso sabor, a escultura de um africano é detestável, sob o ponto de vista estético, da mesma maneira que a arte japonesa e arte dos índios norte-americanos. Igualmente encaramos a arte do louco. Entretanto, a coisa em si é muito diferente. Se deparamos, por exemplo, num poema de um esquizofrênico, vocábulos deslocados e períodos sem sentido lógico e se os estudarmos pacientemente, à luz da psicanálise, veremos esclarecidos, em grande parte, acontecimentos remotos passados na vida do doente, que o subconsciente desalojou de sua profundidade, vindo à tona, em forma de símbolos. O mesmo se dá com os seus desenhos (veja figuras 47 a 49).

          Fomos obrigados, neste nosso modesto trabalho, a forjar uma classificação da arte nos alienados. Somos inimigos de classificações. Achamos que todas elas pecam pela base e que o seu valor é apenas de ocasião, didático. Apesar disso, tivemos imperiosa necessidade de assim proceder, em vista do estudo comparativo que propomos tentar entre a arte dos alienados, do homem primitivo, a arte primitiva e a de vanguarda. Sem auxílio desse quadro, o nosso intento se tornaria quase impossível.  Portanto, a classificação que fizemos foi apenas um arranjo esquemático para compreensão clara de nossa exposição. Ela não constitui uma finalidade. Deve desaparecer.

           Outro ponto que urge ser aqui bem explicado é a distinção feita entre arte do primitivo e arte primitiva. Bem sabemos que para muitos leitores essa separação não tem razão de ser. Mas, procuraremos agora, tanto quanto possível, expor, em poucas palavras, o nosso ponto de vista.

          Para nós, há uma grande separação entre essas duas artes. Senão vejamos. No homem primitivo, ela é representada por desenhos toscos, incompletos e caricaturais de animais selvagens. Não há decorações de motivos vegetais. No sentido clássico de arte, essa manifestação pictural do primitivo não é bem arte. Ela é antes uma pré-arte. A arte primitiva é uma manifestação estética emocional, grosseira, deformada e estilizada, com motivos animais e vegetais. Como exemplo, temos a arte do século XII (Bizâncio), a gótica, a japonesa, a dos africanos e a dos futuristas. Daí a nossa distinção.

          Comparamos a arte de certos alienados (dementes precoces catatônicos) com a dos homens pré-históricos e com a criança de 4 a 6 anos (veja figuras 1 a 3). Supomos que há uma profunda identidade entre a essência dessas artes. Dementes precoces catatônicos há (constituem a maioria) que desenham como crianças de 4 a 6 anos. Entretanto, esses indivíduos, quando normais, receberam boa instrução intelectual. Após a doença e quando ela se adiantou, a inteligência dos acontecimentos adquiridos desapareceu e ficou somente a inteligência do primitivo, a instintiva. Houve processos de retrogradação. Daí o modo de desenhar desses doentes, idêntico ao do homem das cavernas e ao das crianças de 4 a 6 anos. Nestas, a inteligência adquirida é ainda muito rudimentar para poder abafar a inteligência do primitivo, que nessa idade (raras exceções, Mozart, por exemplo), domina o espírito da criança, pelas manifestações instintivas.

          Vimos também que certas manifestações artísticas (escultura, por exemplo, veja figuras 50,51) de dementes precoces paranoides, se assemelham muito com as produções artísticas primitivas, como sejam as esculturas africanas, as bizantinas e as do estilo gótico (veja figuras 60 a 63).

          Nesses doentes, a inteligência dos acontecimentos adquiridos nos fica embotada, não desaparece nem retrograda. Há aqui apenas parada na evolução da inteligência. O indivíduo não aprende nada mais de novo. Fica estacionário (se a doença não evoluir para a demência precoce catatônica, o que pode acontecer muito mais tarde). Dessarte, o doente, com os conhecimentos adquiridos, formula uma série de coisas absurdas (para nós, está claro) em torno de um fato muita vez banal, trazendo alucinações, ideias delirantes de grandeza ou de perseguição. Vêm disso criações fantásticas de sua imaginação, esculturas deformadas, desenhos simbólicos etc.   

          Uma outra manifestação de arte que encontramos nos alienados é a que comparamos com a arte comum. A arte nesses doentes não oferece nenhuma modificação patológica. Embora o psiquismo dos doentes se ache alterado, a sua arte é normal (certos parafrênicos, veja figuras 36 a 40).

         Finalmente, estudamos um grupo de arte (comum em certas fases da demência precoce e da parafrenia) que muito bem pode ser comparado com a arte de vanguarda.

          Essa manifestação artística é a mais frequente nos manicômios. Ela é, de todas, a mais interessante. É calcada inteiramente em símbolos.

          Nas mulheres, o sentimento artístico não parece ser vulgar nos manicômios[1]. Nunca vimos literatas, escultoras e nem poetisas. A dança, entretanto, surge, algumas vezes, entre as maníacas, com ritmo esquisito, mas cadenciado, e que dá impressão de dança de selvagens.

          Assim, pelo estudo que acabamos de fazer, embora muito incompleto, sobre “A expressão artística nos alienados: contribuição para o estudo dos símbolos na arte”. Observamos que esses infelizes habitantes das “Casas de Orates” também possuem emoções, também se preocupam com arte. Os símbolos de suas manifestações artísticas constituem, como vimos, material precioso para estudo da gênese das psicoses. Os símbolos entre os alienados representam o subconsciente revelado. Dessa maneira, explica a teoria de Freud, a origem das neuroses. E, ao contrário do que pensa a psicologia antiga, é ele absolutamente dinâmico.

          Freud separa do inconsciente o pré-consciente e o inconsciente propriamente dito. Daremos, em seguida, a descrição dessa divisão, como a resumir o professor Franco da Rocha, que é a mais clara e completa das que temos notícia.

          “O psiquismo inconsciente se divide em dois sistemas[2]: 1) – o inconsciente propriamente dito, cujos elementos, em número infinito, não adquirem jamais a qualidade de consciente; 2) – o pré-consciente, constituído de menor número de elementos, que podem, como os anteriores, influir sobre os fenômenos de consciência e, mais ainda, suscetíveis de se tornarem conscientes”.

          “O primeiro é o mais vasto e o que se fixa, desde a infância, nas primeiras quadras da existência. Aí estão as forças diretrizes do pensamento e dos atos: os instintos e as mais fortes tendências do indivíduo. O segundo, muito mais limitado, constitui uma zona limítrofe entre o inconsciente e o consciente; abrange todos os fenômenos de distração, devaneio, inspiração, sonho noturno, que são revelações subjetivas da realidade interna ignorada. São, como na flora dos nossos campos, os ramúsculos, folhas e flores das árvores subterrâneas que as constantes queimadas recalcam e obrigam a viver, como raízes, no subsolo”.

          “Vê-se por aí que Freud teve receio da linguagem comum da psicologia: evitou o termo subconsciente e criou o pré-consciente para substituí-lo. Tem para isso suas razões, embora admita todos os graus possíveis de transição entre o inconsciente e o consciente”.

          “Os elementos do sistema II são sujeitos a instâncias deformadoras, isto é, a funções que exercem uma espécie de crítica mental sobre aqueles que tendem a transpor o limiar da consciência. O conjunto dessas funções, que se interpõe na zona ideal entre o consciente e o inconsciente, e serve como de prisma para não deixar passarem os elementos sem os ter primeiro deformado, chama-se censura. Esta é uma força modificadora do nosso psiquismo, adquirida por meio da educação. Os limites do pré-consciente marcam a zona de ação da censura, que, como um prisma psíquico deformador, constitui um sistema de forças antagônicas em relação ao sistema I de forças instintivas do indivíduo. Assim, variando seus limites de influência, de acordo com as condições da cultura social, coletiva e individual, ela circunscreve a personalidade do homem adulto e civilizado. A censura age mais ou menos energicamente sobre a infinidade dos nossos pensamentos, afrouxando de quando em quando sua ação, no correr de um devaneio, por exemplo, para permitir a entrada no pré-consciente (por contrabando) de alguns fragmentos do inconsciente colocado no limiar desse vasto sistema. Ele se fortalece no decurso da vida individual e, no homem socialmente aperfeiçoado, é o índice das coerções da moral e da ética”.

          “A censura é o primeiro elemento da instância consciente, como adaptação à vida social. Apesar de serem os nossos pensamentos quase exclusivamente dirigidos pelo inconsciente, a consciência, para Freud, posto que seja um órgão imperfeito de percepção, pode modificar sensivelmente o curso dos fenômenos psíquicos, e é isso que distingue o homem do animal. Ela age dando importância a alguns elementos, enfraquecendo outros, fazendo, enfim, modificações na distribuição de sua carga afetiva, prazer ou dor. Por meio da atenção, da vontade, da dialética, a consciência pode trazer um certo grau de equilíbrio nessa distribuição de energia afetiva, de modo a modificar os resultados das forças instintivas inconscientes. A cultura, a pedagogia, a higiene moral podem, até certo ponto, alargar o campo de ação da consciência. Do mesmo modo, a psicoterapia também age, canalizando e utilizando num sentido racional as representações ou atos até então penosos ou inúteis ao indivíduo. Para os adeptos da escola, é esse exatamente o resultado da psicanálise”[3].

          Assim, pelas considerações que acabamos de ver, acerca do psiquismo inconsciente, a doutrina de Freud veio revolucionar a psicologia, criando métodos originais para o verdadeiro conhecimento dos fatos remotos da vida do indivíduo. E é principalmente por intermédio dos sonhos, onde a simbologia freudiana se mostra de uma riqueza insuperável, que a psicanálise vai buscar o grande material para o seu estudo. Os símbolos são, em sua maioria, de significação sexual (veja página 33).

          Nos alienados, os símbolos gráficos têm o mesmo significado que os símbolos oníricos nos indivíduos normais. “Nous pouvons[4], par le symbole, comprendre les sentiments des aliénés même dans la démence precoce, à condition de découvrir par la psychanalise la clef de leur simbolisme particulier”.

          “Grâce au transfert des éléments affectifs de l’object à son symbole, si net dans le cas de vénération fétichiste, le symbolisme permet une réalisation figurée des déssins que les circonstances rendent irréalisables sans leur forme originale et, par suíte, une certaine satisfaction. Le symbolisme comme une fonction absolutement essentialle de notre esprit, peut s’exercer automatiquement et échapper au controle de la conscience. Il donne un moyen de forcer la censure en vie de la création d’um monde imaginaire qui réalise, sous des symboles non interprétés, les dessins refoulés dans l’inconscient: tel est le cas de rêve”.

          “A simbolização, que é hoje a única linguagem do inconsciente dinâmico”, diz Franco da Rocha[5], “já foi em épocas remotíssimas o único processo mental de nossos antepassados; é uma sobrevivência da estrutura anacrônica do pensamento. O modo atual de pensar não pode romper por encanto seus vínculos com o passado”[6].   



[1] Exceção feita, como vimos na página 66, de um demente precoce do Hospital de Juqueri. Em todo caso, a cultura artística dessa doente já datava de muito tempo antes de começada a psicose.

[2] Franco da Rocha. O pansexualismo na doutrina de Freud. São Paulo, 1920.

[3] Obra citada, páginas 7-10.

[4] Laforgue-Allendy. La Psychanalyse et les nevroses. Payot, Paris, 1924, p. 184.

[5] Obra citada, página 97.

[6] “Na autobiografia de um paranoico instruído (mais propriamente parafrênicos) julgou Freud ter encontrado as relações de ideias delirantes do paciente com as criações mitológicas da humanidade de outras eras. Na obra de S. Reinach (Cultos, Mitos e Religiões) achou ele um mito que explicaria os atos anormais do alienado em questão, atos esses que não são raros nesses doentes, porquanto os tenho observado em diversos dos meus pacientes. Tal é a fixação do olhar contra o sol. Sempre supus que essa prática tivesse, talvez, por fim, remover alucinações visuais. É possível que seja isto verdade, o que não exclui a interpretação de Freud, contra a qual não tenho objeção séria. Eis o mito: os antigos naturalistas diziam que só as águias, como habitantes das mais altas camadas do ar, tinham íntimas relações com o sol, o céu e o raio. E mais, que as águias submetiam seus filhos a uma prova de origem: obrigavam-nos a encarar o sol antes de serem reconhecidos como legítimos. Se não podiam encarar o astro sem piscar, eram lançados fora do ninho. O doente de Freud gabava-se de ser descendente da mais alta nobreza celeste. Dizendo que podia encarar o sol impunemente, sem ser ofuscado, não fazia ele mais do que repetir uma expressão mitológica, para firmar suas relações com o sol, de acordo com o seu delírio de grandeza. É perfeitamente possível que assim seja”. (S. Freud. Psychoanalystiche Bemerkungen uber einen Fall von Paranoia. Neurosenlehre, 1913) citado por Franco da Rocha, às páginas 97-98.