Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

domingo, 7 de setembro de 2014

Capítulo 4 – Parte 4 – A Expressão Artística nos Alienados

Devemos atentar para o fato de que estes textos de Osório César são do início do século XX, com as conceituações e termos psiquiátricos de então. O que assinalamos é o interesse do autor em conhecer a arte dos doentes psiquiátricos.

...continuação do texto...

Estes doentes, segundo Kraepelin, são orgulhosos, soberbos e excitados; mas, frequentemente, eles são amáveis, abertos, predispostos aos “chistes” e brincalhões, ou exageradamente eufóricos.
Vejamos um interessante diálogo que transcrevemos da observação de um parafrênico do serviço do ilustre psiquiatra Dr. Mário de Gouvêa, pertencente aos Arquivos do Hospital do Juquery:

“- Mas... ouvi dizer, J., que a inveja que tinham da tua inteligência concorreu para seres aqui internado. Será exato?”
“- É, seu doutor; eu tenho as virtudes do sol e da lua. Sou a árvore da inteligência. Quero aqui a minha família completa para ir salvar o mundo. O inferno está na terra; todos vão para lá quando morrem; o purgatório é o estômago porque o homem sofre por ele; aí estão o bem e o mal”.
“- E o céu onde está? – perguntamos nós”.
“- O céu é a natureza da mulher; ali é que estão o divertimento, a alegria e o gosto!”
“- Mas... (não te interrompendo), qual foi a doença que fez vires para aqui?”
“- Foi esta, seu doutor. Ninguém acredita nas minhas profecias. Todo o corpo do homem representa a terra: os dedos representam a multiplicação da espécie, os pelos das mãos a vegetação da terra,  os cabelos as estrelas do céu, a digestão é o mar, os intestinos o fundo, os dois olhos representam o sol e a lua, a barba e o bigode representam a ciência...”

Como vimos, o doente apresenta na sua linguagem ideias delirantes de grandeza e religiosa de mistura com ideias eróticas sob a forma de um rico simbolismo.
Os poetas parafrênicos são muito curiosos nas suas composições em metáforas e símbolos. Seus escritos são em grande parte místicos e de uma prolixidade notável.
Escutemos o poema abaixo:

“Hino ao Paráclito”
“Magnífico incriável Espírito de Deus!
Santo Refrigério da Divina Promessa
Do nosso Bondoso Jesus, que lá dos Céus,
Descera sobre os Apóstolos no Cenáculo de Jerusalém!
Maravilha mística e insondável
Opera-se naquele Santo Recinto!
Doze línguas como do Fogo, indelével,
Apareceram perante os olhos da Congregação!
Uma partícula de sua bela omnisciência
Nas almas dos presentes adrede convidados,
Ficou acrisoladamente gravada com clarividência
Tal, que houve sublime conversão sobre o povo!
Oh! Magnitude imensa do Amor!
Dignai-vos reger com vossa ígnea graça
Nossos desejos, além de termos por Espelho, nosso Salvador!
Difícil será sem o vosso auxílio haver perfeita imitação!
Oh! Nosso místico Espelho do culto Salvador,
Ensinai-nos a doutrina magnífica
Compreender com perfeito e santo amor!
Sedentos sempre somos dos arcanos da Bíblia!
Semelhante maravilha de outrora
Operando-se em nossas almas, aqui,
Neste recinto onde estamos congregados agora,
Poderemos então imitar os Apóstolos assim!”

Este doente escreve com muita facilidade e as suas poesias são todas desse teor. A sua história psiquiátrica é muito interessante.
Vejamos:

“V... (1), 24 anos, branco, solteiro, brasileiro, entrou no Hospital do Juquery em 18 de Junho de 1913.”
“Pai e mãe vivos. Tem 9 irmãos vivos e fortes; 2 irmãos já falecidos de moléstia ignorada. Tem um tio condenado por homicídio. História de sua infância: esteve durante 10 anos em colégios diversos, dos quais era expulso ou fugia. Em casa era turbulento e mentiroso. Tinha medo, via vultos, fantasmas. Sofreu uma grande queda, conservando forte cicatriz na região occipital. História da puberdade: alucinações frequentes. As primeiras práticas sexuais aos 19 anos. Onanismo e pederastia. Nunca trabalhou regularmente.”
“Conhecemos o presente doente na Casa de Saúde do Dr. Homem de Mello onde deu entrada em Julho de 1912.”
“Aqui no Hospital prestou algumas informações. Assim, refere que tem um tio condenado por homicídio, que esteve durante 10 anos em colégios diferentes, dos quais era expulso ou fugia, que sofria de terrores noturnos e de micção involuntária no leito. Dava-se ao onanismo e à pederastia e, abandonado pelo pai, passou a ter uma vida de vagabundo, tomando dinheiro emprestado dos amigos e parentes.”
“Vimo-lo em setembro de 1912. Por essa ocasião estava excitado, tinha alucinações visuais frequentes e aterradoras, auditivas (telefone) perturbações cenestésicas (eletricidade), insônia, gatismo. Quebrava os vidros, rasgava as vestes, recusava alimentos, etc.”
“Antes de dar entrada para a Casa de Saúde, andou vagando pelas ruas de São Paulo, até que uma noite, sem motivo algum, deu sinal de alarme ao Corpo de Bombeiros num dos aparelhos da cidade, sendo preso então e em seguida internado no referido estabelecimento.”
“Um mês depois do nosso primeiro exame, caiu em um período de depressão com imobilidade quase absoluta e sitiofobia, sendo necessário recorrer-se à alimentação pela sonda esofagiana. A salivação era abundante, a pele sempre fria e o emagrecimento considerável.”
“Três meses mais tarde, começou rapidamente a alimentar-se, levantou-se e pouco a pouco passou para o período de excitação, que perdura ainda.”
“Tem noção do tempo e do meio, não apresenta confusão de espírito, respondendo com precisão as perguntas. Conserva-se alegre e calmo, com outros períodos de maior excitação em que rasga roupas.”
“Há perda dos sentimentos afetivos, referindo-se ao pai e à família com a maior indiferença.”
“Sente-se bem no Hospital, não manifestando o menor desejo de sair.”
“Refere-se constantemente à aparição de fantasmas na enfermaria”.
“A pequena cultura que teve ainda conserva, tendo boas noções de história, geografia, cálculo e conhecimentos gerais.”
Atualmente este doente acha-se calmo e a sua preocupação constante se revela em compor versos e poemas em prosa ou então dirigir cartas, numa linguagem enfática, aos médicos e ao Diretor do Hospital. É um grafômano infatigável. A sua imaginação, sempre excitada, está cheia de palavras místicas. Daí observamos o gênero místico de suas produções literárias. Vê-se que a leitura de livros sagrados deixou no seu cérebro uma forte impressão, pois quase todos os personagens de seus escritos são bíblicos. E, também pela história de sua formação intelectual, relatada por ele mesmo, resulta que, em grande parte, a sua educação foi religiosa.
Assim V. descreve a sua história:

“Alfa e ômega de um labirinto.”
“Os agridoces mistérios do alfa e ômega de minha educação intelectual são verazes, e, no conteúdo deles, predomina o aforismo filosófico do nobre autor da ‘Relíquia’:”
“Sob a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia. Por mais que o cérebro, gentil e alado, penetre neles, sempre o labirinto tem o encanto de não evidenciar a entrada e a saída. Caldas, formosa cidade do sul de Minas Gerais, em teu seio pulcro, dorme o meu coração, ora, sempre ameno e grato.”
“No primeiro mês do penúltimo ano do século dezenove, principiei a beber o licor superfino dos sinais característicos do alfabeto sob o bafejo de Auta Amarante, predileta e virtuosa filha de João Pereira Elias Amarante, o proprietário do colégio particular situado à margem esquerda do caminho que vai terminar em Pocinhos do Rio Verde. Daquela localidade ao colégio do saudoso Lusitano, temos mais ou menos a distância de quatro quilômetros. Permaneci, então, ali, consecutivamente dois anos. Aquele nobre Lusitano era natural do Vila Nova de Gaia, florescente e risonha cidade ligada ao Porto por uma grandiosa e atraente ponte metálica. Mas a minha educação moral e intelectual estavam sob o patrocínio daquela bondosa Lusitana, unicamente, por um encanto sobrenatural. Dentro desse grêmio fecundante fora a semente bem desenvolvida na terra fértil e amena do meu coração.”
“Mas a procela da inveja de Caim aparecera enfim medonha e fatal. Fundaram com intuito pentapólico quatro escolas particulares durante os dois primeiros anos do século vinte, em minha terra natal, a Babilônia nefasta do livro escrito pelo apóstolo amado! Nela o autor maravilhoso dos ‘Sertões’ iniciara essa obra prima da literatura brasileira, tenho ainda presente em meu mundo subjetivo a leonina fisionomia desse vulto proeminente da história brasileira, como num espelho de cristal de raríssima perfeição reflete a imagem inteira do templo de minha alma! Em 1902, fui então internado na Escola Americana, onde permaneci durante dois anos. Em 4 de Fevereiro do ano comemorativo  da festividade áurea de minha sacratíssima Mãe, em uma bela e radiosa manhã, quinta-feira, cheguei sedento de uma tristeza jeremiada, ao seio da Neo-Sião-Pouso-Alegre...Dez dias depois, quando fui fazer uma visita ao meu ‘altar-mor’, domingo, enxerguei um coração luzente e em cima dele jazia uma pequenina cruz também luzente, entrelaçadas por uma coroa de espinhos cheia de luz como a do sol, envoltas por uma chama de Fogo vivíssimo, enfim próximo ao vulto luminoso nele residente. Recebi então ali a promessa sacratíssima de que no segundo dente molar do maxilar superior de minha face direita, naquele momento completamente perfeito, haveria de ser colocada uma coroa de ouro finíssimo, no dia comemorativo da festividade do Mensageiro Divino. Sete dias depois, assentei a primeira pedra fundamental de minha vida. Trinta e nove dias depois assentei a segunda pedra fundamental. Dez dias depois assentei a terceira pedra fundamental. E, finalmente, oito dias mais tarde a última por toda a extensão da eternidade!”
“Executei essa proeza davídica sem estar banhado em algo do terceiro selo do profeta Daniel! Nesse quatro colóquios sublimes e convincentes eu enxergava solenemente assentado num trono de Ouro finíssimo o meu Amor infinito. As suas vestes possuíam uma brilhosidade infinita sob a semelhança da cor desse minério pulcro e misterioso. Sobre a sua fonte sagrada estava uma coroa de ouro finíssimo cheia de pedras preciosas. Esse mistério saudoso imperava na sede de minha alma zaqueana. Não sei se me faltava a inteligência, sendo enfim matriculado no 2º ano primário anexo ao 1º ano ginasial. Não possuía competência, embora tivesse seis anos de estudos e perseguições.”
“Caldas era a terceira entidade incrível, e, a Escola Americana o primitivo Eden em toda a sua beleza intérmina.”
“Em 13 de Novembro do ano imediato ao da Conferência de Haia, retirei-me do 5º ano ginasial para o mundo familiar eivado das sentimentalidades de duas criaturas diante da majestade cefálica. Fiquei na casa das seis letras do alfabeto bem erótica ‘oitocentos e onze dias’. Surgira então o sol da liberdade espiritual no dia comemorativo da purificação da mais formosa e cândida filha de Abraão.”
“Vivia, docemente, em casa de um saudoso amigo, ex-secretário interino do Tribunal de Justiça. Alma cândida e nobre possuía esse meu saudoso amigo, banhado em algo dos eflúvios daquele patriarca cheio de paciência evangélica. Mas um dia a política do chefe do partido republicano paulista de minha terra natal, concebeu a ideia fúnebre de mandar algures aconselhar-me por um beijo de Judas, a minha internação na ‘Casa de Saúde do Dr. Homem de Mello’. Lá permaneci trezentos e vinte três dias, ininterruptamente. Depois então, para maior segurança pueril, esse êmulo de Judas um dia enfim arranjará um lugar no Palácio da Desventura, situado no quilômetro cento e onze da São Paulo Railway (2).”
“Ele é mais ameno do que o seio pulcro como o marfim da linhagem nefasta. Como um relâmpago, caíra na inércia, três horas depois que o meu Amor infinito assentara solenemente, pela primeira vez o seu Trono de Ouro finíssimo, aqui, na sede do meu coração ovante de ufania como o daquele vulto na mística harmonia outrora! Semelhante cena acontecera com a moderna Laís, progenitora daquele chefe político supra mencionado, e de seu corpo brotam miríades de vermes... Nessa hora solene e alada fui transportado misteriosamente para o ambiente da capela, onde eu recebi o excelso filho de David, no altar-mor de meu coração. Dalí enxergava com os olhos do Entendimento a fúnebre messalina da inércia.”
“O esposo dela ficara subitamente paralítico dos braços e das pernas no mesmo segundo! A sogra deles muitos anos antes ficara também paralítica. O sogro delas fora gravemente ferido na perna esquerda num engenho de serra vertical, perdendo-a completamente, no último ano do século dezenove. Com esses dois exemplos mesmo ainda assim os pais desse chefe político seguiam sempre o caminho de Caim... Surgindo a luz messiânica em minha alma, via então um motivo plausível de abandonar os bancos escolares, unicamente para não prestar exame de mecânica e astronomia, em virtude da lembrança de Isaac Newton, o assombro do Universo, e, fanal de meus dias pretéritos e vindouros...”
“O alfa da honra de Deus”
“Oh suave alfa da honra do Espírito
De Deus, meu sol aqui nesse orbe transitório,
Sem vacilação nunca ouvirei outro grito
Surgir dentro de minha alma! Não é ilusório.
O mistério da casa de David! A divina
Promessa fora feita sobre o monte Maria
A respeito da sua perfeição crastina
Com revelação solene e bem perfunctória!
Não somente lá como a Elias, a primeira
Entidade da antiga aliança, nas duas
Nuvens místicas saídas do mal. Herdeira.
De minha alma paupérrima, a minha Mãe Santa
Também sempre há de ser aonde tu flutuas,
Graças bem convincentes, como o orvalho a planta!”

Notas de rodapé:
1 – Arquivos Psiquiátricos do Hospital do Juquery.
2 – refere-se ao Hospital do Juquery.