Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Capítulo 2 – Parte 4 – A expressão artística nos alienados.

...continuação do texto...

“Cada indivíduo”, diz Pilo (1), “no seu desenvolvimento próprio, repete em estética, como em fisiologia, o desenvolvimento da espécie, à maneira de rápida recapitulação. É assim que a criança tem gestos do homem primitivo e do selvagem, que o adolescente, o jovem, o adulto, o velho, o decrépito, sentem como sente uma raça numa fase correspondente de progresso e decadência”.
De antes, como sabemos, o nosso doente era soldado de polícia; o meio e os afazeres diários certamente nunca haveriam preocupado a sua atenção em semelhantes coisas se a moléstia do espírito não interrompesse o curso natural de sua vida.
Há pouco fizemos notar o curioso acabamento das mãos que o artista dispensou à estátua da figura 51. Procuremos analisar agora a causa que motivou na sua imaginação esse interesse.
As duas mãos acham-se em atitude de repouso e estão dispostas uma por cima da outra, mostrando os dedos bem estilizados. Sem possuir homogeneidade de linhas, as mãos tornam-se entretanto cheias de movimento e adquirem profunda independência do resto da escultura. Pensamos que esta atitude técnica de realismo e beleza, dada às mãos da estátua, reflete, provavelmente, um simbolismo sexual como recordação de práticas infantis. Apesar de não ter sido observada no Hospital a masturbação nesse doente, contudo, na infância, como ele próprio diz, esse vício foi seguidamente praticado. Entretanto, quem nos poderá afirmar que ele ainda hoje não se onanise? É coisa sabida que entre uma grande parte dos alienados, as práticas sexuais da infância são secretamente continuadas nos Hospícios, escapando assim à vigilância dos enfermeiros.
Estamos convencidos, pois, de que o desenvolvimento escultórico, dado por T., às mãos dessa estátua, representa para sua mentalidade artística o símbolo da vida sexual infantil.
“O simbolismo erótico, em sua origem”, diz Havelock Ellis (2), “não é intelectual, senão emocional; forma-se obscuramente, confusamente, sem grande consciência, talvez despossuído dela, já seja por obra e graça do grande choque de alguma prática geralmente infantil, ou por efeito de alguma meditação instintiva acerca das causas que mais intimamente se associam à pessoa sexualmente desejada, e então a sua formação é mais gradual”.
“Sob a emoção sexual, diz Masini, toda a nossa vida psíquica se transforma de um modo maravilhoso: quando o desejo nos fere a alma, os nossos sentidos, o nosso pensamento, os nossos sentimentos sofrem modificações profundas que nos afastam da realidade, transformando radicalmente o nosso eu consciente, até que se atenue e desapareça o fluxo passional, afastando então o véu do sonho e reconduzindo-nos à vida real. A criação artística é pois um fenômeno semelhante de exaltação das nossas faculdades psíquicas sob o impulso das energias sexuais as quais, como nós sabemos, prestam-se de um modo especial à sublimação e à transformação artística por uma  afinidade especial da natureza dos dois fenômenos” (1*).
O simbolismo das mãos encontra-se espalhado em todas as raças e em todas as épocas. Em sua origem, ele teve um caráter elevado e até algumas vezes divino. Assim, é evidente o simbolismo religioso que as mãos representam nas estrelas votivas de Judeia, de Fenícia, de Cartago (2*). “Na Andaluzia, nos países bascos, desviam-se os malefícios, mostrando-se a mão fálica (3*), isto é, a mão fechada com o polegar atravessado entre o índex e o médio” (4*).
“Le culte ou la supestition de la main”, diz Pommerol, “remonte à une haute antiquité. Ce culte semble avoir pris naissance chez les races sémitiques, et spécialement en Phénicie dont les marchands et les navigateurs l’ont importe dans le nord de l’Afrique, dans tout le bassin méditerraéen. Nous le trouvons em Gaule, durant l’époque romaine et de nos jours encore nous l’observons à l’état de superstition de tous les pays néo-latins. C’est certainement à l’influence de Carthage que nous devons de le constater au sein des populations algériennes. L’homme a compris de bonne heure le rôle éminemment utile de la main. Il a eu raison de l’adorer, de la diviniser, de lui attribuer toute sorte d’influence heureuse, car nul organe, après le cerveau, n’a plus contribué à distinguer l’homme de l abrute, à augmenter le bienêtre material et l’intelligence dans toutes les races humaines” (1**)
Sobre o simbolismo das mãos poderíamos encher muitas páginas de citações, que por certo tornariam enfadonho este nosso modesto trabalho. A representação simbólica do pensamento humano é tão antiga que a sua origem se perde na noite dos tempos. “El uso de los símbolos para la expressión grafica o plastica de las ideas, diz Naval (2**) es tan antigo como el arte, y a estas representaciones figuradas ha hecho contribuir el hombre toda classe de objetos naturales y artificiales, servindo-se de la Arquitectura, Pintura, Escultura y demas artes graficas en todo lugar y tempo desde la Prehistoria hasta el presente siglo”.
E, para terminarmos esta resenha, que já vai longe, acerca do simbolismo das mãos, daremos a palavra a Jules Baissac (3**).
“Le côté mâle Anu, le côté femelle Anah (4**) ou Anath avait pour symbole la main: nous verrons ultérieurement que le chirogénie ou enfantement par la main était un des traites de la maternité divine universelle. En Égypte, oú cette déesse d’importation couchito-sémitique a été reconnue par M. Birch (Gallery, II, pag. 100) juste sur des movements du règne d’Amnophis Premier de la dix-huitième dynastie, on trouve la ‘main de guerre’ de Ramsés-le-Grand désignée sous le nom d’Anta-m nekht ou ‘Anata dans as force’. Mais, outre l’aspect guerrier, qu’elle comunique presque partout à d’autres dénominations derivées de la même idée, la déesse Anath em avait sur le Nil un autre des plus caractéristiques avec ses attributs de cadesch, qui désignait une “prostituée sacrée” et de ken, qui signifie tout à la fois un sein maternel et le pudendum virile, ele était, comme à Babylone et comme l’Anaïtes des Sakaea, le double principe hermaphrodisiaque” (Rosellini, Monumenti storici civili e religiosi, LXVI dans il monumenti dell’Egitto e dela Nubia).
“La main d’Anu, dans cet état de choses, doit donc être tênue pour un des symbols de la fête hétairique des Tabernacles: symbole bissexuel dont les antiquités grécoromaines nous offrent eles-mêmes de nombreux spécimens. Dans la plupart de ceux qui nous restent, la main est réprésentée ou toute fermée, avec le pouce passé entre l’index et le medius, ou le medius en avant et tous les autres doigts repliés sur la paume. L’une et l’autre de ces figures étaient des emblemes obscenes” (1***).
No nosso doente, encontramos, além de um sentimento artístico fetichista, recordações de atos de sua infância, que surgem do subconsciente e que ele plasma no barro sob a forma de símbolo. Tal é a origem do acabamento escultórico das mãos da estátua da figura 51.
Freud (2***), estudando “uma recordação infantil de Leonardo da Vinci”, na análise de seu quadro “Santana, a Virgem e o Menino”, chega a conclusões interessantes por intermédio da psicanálise.
Leonardo, quando pintou esse famoso quadro, reproduziu ocultamente, entre as dobras do manto da Virgem, os caracteres de um corvo, que traduz, segundo Freud, uma recordação infantil da vida do célebre pintor italiano, ou então “uma fantasia ulterior transportada por ele à sua meninice”. E acrescenta: “As recordações infantis do homem não têm às vezes outra origem. Em lugar de se reproduzir a partir do momento em que ficam impressas, como acontece com as recordações conscientes da idade adulta, são evocadas ao cabo de muito tempo, quando a infância já passou, e aparecem então deformadas, falseadas e postas a serviço de tendências ulteriores, de maneira que não resultam estritamente diferenciáveis das fantasias”.
Enfim, a arte de T., é uma arte do primitivo; grotesca, fetichista, com representação simbólica sexual. Encontram-se nela semelhanças acentuadas com a arte futurista.
A técnica escultórica da estilização das mãos da estátua da figura 51 simboliza recordações de práticas sexuais infantis.
A manifestação artística neste doente, cuja educação intelectual é muito rudimentar, constitui também um eco atávico de lembranças fetichistas dos seus antepassados, somente agora aparecida em consequência do seu desequilíbrio mental.

Notas de Osório César:

1 – Mario Pilo. Manual de Esthetica. Trad. Port. 1904, pag. 115.
2 – Estudios de Psicologia sexual. V. IV. O simbolismo erótico. Trad. Hesp. Pag.6. Reus, Madrid, 1913.
1* - Dott. M. U. Masini. – Gli Immorale Nell’arte. Giovanni Antonio Bazzi, detto il “Sodoma”. Archivio di Antropologia criminale, psichiatria e medicina legale. Torino, 1915. Vol XXXVI, fasc. III. Pag. 277.
2* - Perret. – Histoire de l’art, T.III, Phenice, Cypre, pag. 52,253 et 458. Cit por M. Pommerol. – Association française pour l’avancement des sciences, 19 session, pag. 229, Limoges, 1890.
3* - “O símile do culto fálico existe hoje bem vivo no meio social atual, pois outra coisa não é a superstição que atribui à figa o poder de conjurar certos males. Que vem a ser a mão fechada, com o polegar entre o indicador e o médio? Perdeu-se a ligação mental originária, isto é, a significação primitiva do objeto, mas ficou a feição física que lhe trai a origem. Sendo um simples objeto conjurador de males, a ética, hoje, não impede que ele ande junto com as medalhas pendentes do pescoço das crianças, das moças e até nas cadeias de relógios dos homens”. Franco da Rocha, obra citada, pag. 131.
4* - Fr. Michel. – Les races maudites. T. I. pags. 170-171. Citado por Pommerol.
1** - M. Pommerol – La main dans les symboles et les superstitions. Association française pour l’avancement des sciences 19e session. Limoges, 1890, pag. 529.  
2** - F. Naval. – Arqueologia y Bellas Artes, pag. 2 Ruiz Hermanos. Madrid, 1912.
3** - Les origines de la Religion, T.I. pag. 117, Decaux, Paris, 1877.
4** - Venos babylonica (Nota do Autor).
1*** - Jules Baissac – obra citada, pag. 118.

2*** - S. Freud – Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. Tomo VIII das obras completas da tradução espanhola, pags. 266 – 267. 

Comentário sobre o texto:

Conforme já comentado em outros trechos do livro de Osório César, deve-se entender o trecho acima reproduzido dentro do que era considerado como conhecimento científico na década de 1920. De qualquer forma ele chama a atenção para a produção artística dos doentes mentais de então, correlacionando-as à arte e aos estudos da época. 

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