Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Capítulo 2 – Parte 3 – A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

Voltando ao nosso artista vemos, efetivamente, que a concepção da fig. 51 encerra motivos surpreendentes de originalidade para um estudo comparativo com a nova orientação estética.
À primeira vista, o que mais nos chama a atenção na escultura de T. é a deformação mórbida de seus membros.
Uma cabeça muito grande, face lisa, fisionomia de máscara; o nariz grande, quase grego; boca aberta (1), grande; lábios grossos; olhos grotescamente deformados; as mãos, porém, artisticamente modeladas (2).
Tudo isto dá ao conjunto escultórico uma expressão rítmica curiosa. Não podemos negar que, apesar do grosseiro acabamento e das deformidades exóticas das obras deste artista, têm elas, contudo, alguma coisa de estranho, de agradável, e que causa também admiração.
As deformidades na arte não se encontram somente entre os loucos e entre os artistas modernos. Vemo-las igualmente estudadas nos artistas desde a mais remota antiguidade. Assim, podemos apreciar na arte egípcia figurinhas de bronze representando monstruosidades de várias espécies.
“La plus ancienne école d’Egypte”, dizem Charcot e Richer (3),” l’école memphite, nous a laissé parmi plusieurs chefs-d’oevre une statue qu’il convient de placer ici en première ligne, c’est celle du nain Khoumhotpou, aujourd’hui au musée de Boulaq”.
Maspero descreve deste modo essa estátua: “La main a la tête grosse, allongée, contornée de deux vastes oreilles. La figure est niaise, l’oeil ouvert étroitement et retroussé vers les tempes, la bouche mal fendue. La poitrine est robuste et bien développée, mais le torse n’est pas em proportion avec le reste du corps. L’artiste a eu beau s’ingénier à em voiler la partie inférieure sous une belle jupe blanche, on sent qu’il est trop long pour les bras e pour les jambes. Le ventre se projete em pointe et les hanches se retirent pour faire contrepoids au ventre. Les cuisses n’existent guère qu’à l’etat rudimentaire; et l’individu entier, porte qu’il est sur des petits contrefaits, semble être hors d’aplomb et prêt à tomber la face contre terre”.
E também na arte grega, nas célebres figurinhas de Tanagra, vemos, entre as mais antigas, grosseiros simulacros de divindade talhados a machado num tronco, afetando em geral a forma quadrangular, com dois cotos por braços e uma vaga aparência de face humana (1*).
Esse espírito analítico de deformidades existe, pois, como acabamos de ver, na arte, em todos os tempos e em todos os povos como exuberância criadora de um realismo encantador. Além do mais, ele mostra um subjetivismo transcendental desenvolvido por uma técnica cuja liberdade é de um primitivismo ingênuo.
A qualidade dominante na arte de T., é o seu forte individualismo fetichista.
“Santo Antonio da Rocha” é o título que ele deu à estátua. É digna de nota a tendência plástica religiosa manifestada neste doente. E a explicação que procuramos dar a isto é a seguinte: T., apesar de haver nascido no Brasil, é de origem africana. Na África, a crença nos feitiços é muito espalhada. “Ainda hoje”, diz Taylor (2*),” a África ocidental é o país dos feitiços. O viajante os encontra em todos os caminhos, junto a todos os vales, à porta de todas as casas; com isso fazem colares que o homem leva sempre; os feitiços evitam a enfermidade ou a produzem, quando são esquecidos; ocasionam a chuva; enchem o mar de peixes que se deixam apanhar pelas redes do pescador; descobrem e castigam os ladrões; dão valor a seus adoradores e combatem contra os seus inimigos; enfim, nada há que os feitiços não possam fazer ou desfazer, à condição de que se encontre o feitiço conveniente”.
O sentimento religioso origina-se de um período primitivo da humanidade. Este período é o do fetichismo. Vejamos como Ribot (3*) se exprime a este respeito: “A primeira etapa é a do fetichismo, polidemonismo, naturalismo: termos que referentes à história das religiões, não são contudo completamente sinônimos, porém correspondem a um mesmo equivamente psíquico: a adoração de um objeto, vivo ou não, que é percebido, isto é tomado como concreto, ao mesmo tempo corpo e alma, ou melhor, animado, julgado como benévolo ou malévolo, útil ou prejudicial; porque é uma opinião pouco justificada a que pretende que o adorador de um pedaço de madeira ou de uma pedra só veja um objeto puramente material”.
E mais adiante esse mesmo autor (1**) explica a gênese dessa crença: “Essas formas primitivas da crença religiosa nasceram da tendência do selvagem, da criança quiçá do animal superior, a considerar tudo como animado, a atribuir desejos, paixões, vontade a tudo que se movimenta, representando a natureza segundo sua própria natureza. Este antropomorfismo resulta do despertar do pensamento raciocinante sob sua forma mais visual: a analogia, origem primeira dos mitos, da linguagem, das artes, até das ciências”.
Em virtude dessa herança atávica religiosa, será lícito pensar que estas esculturas modeladas em barro por T., com virtudes místicas, nada mais são que o resultado da explosão de crenças fetichistas de seus antepassados, somente agora despertada em razão de seu estado mental. 
Para o estudo da arte nos negros, como para outras raças de civilização primitiva, as crenças religiosas constituem fontes indispensáveis ao seu perfeito conhecimento.(Obs.1)
No tocante à significação das manifestações primitivas da cultura artística dos negros, representada principalmente por essas interessantes esculturas em madeira, Nina Rodrigues escreve o seguinte: "Não são ídolos, como se poderia acreditar à primeira vista, como o supõe o vulgo, como o têm afirmado cientistas e missionários que se deixam guiar pelas aparências e exterioridades. Os negro  da costa dos Escravos, seja, os de língua yorubana ou nagô, sejam os de língua gegê, tshi ou gà, não são idólatras. Entraram em uma fase muito curiosa do animismo, em que as suas divindades já partilham as quantidades antropomórficas das divindades politeistas, mas ainda conservam as formas exteriores do fetichismo primitivo. Changô, por exemplo, o deus do trovão, é certamente um homem-deus encarnado, mas que para se revelar aos mortais frequentemente reveste ainda a forma fetichista do meteorito" (2**).   

Notas de Osório Cesar:

1 – É preciso notar-se nas duas figuras o feitio especial da boca e do nariz que são acentuadamente sexuais. Ball cita um caso muito interessante de um indivíduo atacado de loucura erótica que desenhava representações simbólicas dos órgãos sexuais. Nos perfis que fazia imitava com bastante exatidão o tipo grego: as aberturas do nariz eram extremamente grandes com o fim de que permitissem a introdução do órgão sexual masculino.
2 – É muito original a maneira como esse artista modelou as mãos de sua estátua. Deu a elas um realismo espantoso. Dentro de sua própria imaginação o doente estilizou o mais que pode esse órgão, dando vidas aos seus nervos e a sua musculatura. Mais adiante explicaremos o simbolismo dessa estilização.
3 – Obra citada, pag. 15.
4 – C. Maspero – L’Archiologie égiptienne, pag. 213.
1* - João Barreira – A arte grega. Pag. 338. Lisboa, 1923.
2* - La civilisation primitive. Trad. Franc, pag. 207. Tome II.

3* - Th. Ribot. La Psicologia de los sentimentos. Trad. Esp. Jorro, pag.393. Madrid, 1924.  
1** - Th. Ribot. Obra citada, pag., 393.
2** - Kosmos, agosto, 1904. 

Observações e comentários:

Obs. 1 - Conforme já comentado anteriormente, devemos saber que nos anos 1920 a Ciência considerava os povos africanos, os povos indígenas, bem como outros povos nativos, como sendo "povos primitivos", em virtude da adaptação da Teoria da Evolução ao estudo antropológico dos povos, a partir de um assim chamado "eurocentrismo". Tal visão passou a ser contestada nas últimas décadas. 

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