Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Capítulo 1 - Parte 9 - A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

No segundo grupo de nossa classificação estão os desenhos, as esculturas, as poesias, as músicas e as danças. As artes deste grupo poderemos comparar, dadas as semelhanças flagrantes que notamos nas suas confecções, com as artes primitivas, como sejam as dos índios de Marajó (1), as japonesas, as do século XII, a gótica e as dos negros centro-africanos (figuras 22 a 31).

Correspondente ao número (1) do texto há uma longa nota que segue abaixo:

1-
Na sua viagem ao Amazonas, em 1879, professor Hardt (Archivos do Museu Nacional. Vol. VI, 1885. "A origem da arte ou a evolução da ornamentação", pag. 95) teve conhecimento de que, numa pequena ilha chamada Pacoval, no lago Arary, situada na ilha de Marajó, existia um Túmulo dos antigos habitantes do lugar.
Examinando o Túmulo, dele se retiraram urnas funerárias, ídolos e outros objetos de terra cozida. “Muitos destes objetos”, diz o professor Hardt, “traziam ornamentos e fiquei realmente surpreendido ao ver nesta antiga louça amazônica, gregas espirais e outros ornamentos perfeitamente idênticos a algumas formas clássicas e da Grécia. O túmulo era antigo e a associação de objetos que continha, concordando com o que se acha nos túmulos norte-americanos, não oferece prova nenhuma de que os fabricantes de louça do Pacoval conheciam a arte na Europa”.
“Continuando as minhas investigações”, prossegue Hardt, “descobri que estes mesmos ornamentos se acham distribuídos por todo o mundo, mesmo entre povos de uma cultura muito baixa, e que formam parte da arte primitiva. Lembrei-me de que o homem em todo o mundo, tendo a mesma organização física e estando em contato com a mesma natureza, desenvolve-se segundo as mesmas leis, e que armas, invenções, modos de pensar, regras de construção das línguas, até mitos e ideias religiosas facilmente se desenvolvem independentemente entre povos longínquos. As necessidades do homem primitivo em todos os países são as mesmas, e é perfeitamente natural empregar independentemente métodos idênticos de satisfazê-los”.
Hardt encontrou na louça dos antigos índios de Marajó uma forma decorativa grega de um dos mais belos ornatos estéticos conhecidos, que se acha espalhado em todo o mundo. E até hoje, sustenta este autor, dentro das matas do Amazonas e do Orenoco, as mulheres gostam de pintá-lo nos seus “Camutis”. Também se encontra, comumente, nas louças dos índios do Brasil e do Peru, um desenho ornamental característico dos vasos Etruscos.
Uma das coisas que mais nos chamam a atenção na arte dos primitivos selvagens do Brasil é a ausência completa de ornamentações vegetais. Assim, nos utensílios encontrados em Marajó, os temas de estilizações estéticas são exclusivamente tomados do reino animal.
“É fato interessante que”, diz Hardt (obra cit.pag. 107), “ao passo que o homem e diversos animais são representados em relevo na louça de Marajó, é raro que sejam desenhados sobre uma superfície plana. A artista índia sabia bem a arte de modelar e era perita na ornamentação por meio de linhas simples, mas não se tinha adiantado na arte imitativa do desenho. Nenhuma folha, flor ou fruto é representado na louça antiga do Amazonas ou em relevo ou sobre uma superfície plana. Parece singular que, habitando uma região em que o reino vegetal oferece formas belas, o artista não escolhesse nenhuma destas para a ornamentação”.
Também estudaram a arte de Marajó, Ferreira Penna, Derbey e Ladislau Netto (Archivos do Museu Nacional. Vol. VI, 1885. “Investigações sobre a Archeologia Brasileira, pag. 317).
“Entre as preciosidades que havemos exumado”, diz Ladislau Netto, “os Snrs. Ferreira Penna e Derby, a princípio, e eu por último, do solo de Marajó, sobressaem algumas figuras de terra cotta, que nada mais nem menos são, segundo presumo, que os deuses penates dos construtores dos mundos daquela ilha; imagens que adoravam também os índios do Maranhão, de Pernambuco e de outras províncias do Brasil, assim como muitos outros povos da América. São estatuetas a que, na falta de melhor nome dei o nome de ídolos. Representam homens e mulheres, mas raras vezes sem alguma particularidade convencional, uma monstruosidade qualquer, ou na deformação da cabeça e da face, ou na supressão dos braços e pernas ou nas protuberâncias dorsais e torácicas próprias dos corcundas”. E mais adiante continua: “A estatueta mais distinta e ao mesmo tempo mais expressiva desta espécie, é a que figura uma espécie de polichinelo, de fisionomia chinesa, com a dupla tuberância torácica e dorsal do corcundismo. Esta estatueta, que eu mesmo desenhei sobre o bloco de madeira em que devia ser gravada, a fim de conservar-lhe todos os seus traços característicos, é um primor de expressão e de naturalidade, ainda que me pareça muito difícil afirmar se as saliências que aí figurei por malares assim devem ser considerados ou por olhos com mais razão havida (obra cit. Pag. 324)”.   
As representações zoomorfas na arte dos antigos habitantes de Marajó são mais bem estilizadas e de uma beleza esquisita. A reprodução que damos aqui (veja fig. 21) apresenta uma curiosa idealização zoomorfa, com dupla cabeça e dualidade simulada no próprio corpo do animal metaforicamente figurado.
“Este animal emblemático e um tanto enigmático”, diz Ladislau Netto, tem alguma coisa que relembra o símbolo chinês cheu ou chi, imagem da longevidade, a qual, segundo tradições e livros sagrados da China, foi criada ou inventada pelo famoso Fo-Hi, o Faramundo chinês a quem se deve a organização política do Celeste Império, cerca de 3.000 anos antes da era cristã e a quem esse símbolo divino, conforme o dizer das lendas asiáticas, foi revelado por um cavalo sagrado (obra cit. Pag. 244)”.
Como vimos, é por demais curiosa a semelhança das decorações desses objetos da arte cerâmica dos antigos índios do Brasil com as decorações e relevos das arte orientais e primitivas de toda a Europa. Na maioria dos vasos de Pacoval, estudados por Ladislau Netto, encontramos emblemas gravados exteriormente, que nos lembram motivos jônicos e também um pouco do misticismo Báltico. Isto nos faz pensar com a maioria dos autores, que os primeiros habitantes do Continente Americano foram representantes de uma raça desconhecida, emigrada do velho mundo, cujo sentimento artístico, muito desenvolvido, deixou traços patentes de sua passagem no Continente, como prova a arte antiga de Marajó. Essa gente, que mostra haver formado uma civilização adiantada – haja vista os monumentos do antigo México – desapareceu sem se saber como.
Henry Schoolcraft (Historial and statistical information, respecting the history, traditions and prospects of the Indian Tribus of the United States. Philadelphia, ano) considera os indígenas Americanos como destroços ou restos de diferentes raças, o que até certo ponto justifica, no dizer dele, as tradições dos povos americanos, que os representam vindos por mar para a América.
Quanto à veracidade deste pensar, até a presente data, ainda não estamos bem aparelhados, ou melhor, suficientemente armados para desvendarmos o mistério que ainda nos envolve. Entretanto, não parece de toda destituída de fundamento a hipótese de Schoolcraft.   


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