Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Capítulo 3 – Parte 3 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

Nos desenhos dos dementes precoces catatônicos notamos com frequência o mesmo estilo dos desenhos das crianças; eles são geralmente mal acabados. As figuras humanas, quando representadas, se apresentam intercaladas, ora de ilustração deletrada, como no caso de um doente catatônico de Bleuler (fig 59), ora rodeados por símbolos, sinais cabalísticos (figs. 41, 42), doente do Hospital do Juquery.
Essa manifestação de desenho pueril parece ser característica da demência precoce, sobretudo na de forma catatônica. Pois, mesmo entre doentes que outrora souberam desenhar bem, a representação gráfica infantil num dos períodos da moléstia, estado demencial (fig. 69) é comumente observada. Daí o supor-se que a mentalidade desses doentes tenha sofrido uma regressão atávica às épocas pré-históricas da humanidade.
Além desta forma de desenho do primitivo, que constitui, como acabamos de dizer, uma atitude quase geral nesses doentes, encontramos algumas vezes outras formas gráficas surpreendentes, que nos fazem lembrar antigos motivos bizantinos, hindus e das tapeçarias da Idade Média (figs. 60. 61, 62 e 63).
Interessantes são os desenhos de um demente precoce paranoide, relatados por Parturel (1), cuja originalidade de concepção muito nos admira (fig. 64). O doente em questão, operário, reside na campanha e nunca teve instrução além de rudimentar.
É curiosa a semelhança de seus desenhos com os dos livros antigos de medicina.
Os quadros que reproduzimos nas figuras 65, 66, 67, 68 e 69 são de uma demente precoce  do Hospital do Juquery, cuja história vamos contar:
O. (2), brasileira, de cor branca, de 30 anos de idade; não é casada, nem solteira, nem viúva: há anos está separada judicialmente do marido, que deu justificação a isso pela sua embriaguez habitual e brutalidade contra a esposa.
Temos diante de nós uma mulher de aparência forte, sadia, sem moléstia somática perceptível. Sua família não refere a existência anterior de qualquer alteração física de saúde. Queixa-se, porém, de seu comportamento, de seus atos, que destoam pavorosamente da educação que recebeu e do meio social a que ela pertence. Veste-se com exageros impróprios; sai só, a passeio, e vai ao escritório de um médico, pede-lhe que sirva de intermediário junto a um certo colega deste, por quem ela tem paixão e com quem quer viver na Europa, e lá casar-se com ele. Escreve carta ao médico intermediário, pede-lhe que resolva logo F... a aceitá-la; propõe-se a sair disfarçadamente de casa e encontrar-se com F... a bordo, para de lá seguirem juntos; não se esquece do filho que deverá também seguir para ser educado fora da influência da família, isto é, da avó, das tias e tios, que, na opinião de O..., estão pondo o menino a perder. Arma brigas terríveis com as irmãs, com cunhados e com a própria mãe; são discussões azedas em que a paciente revela um certo grau de embotamento dos sentimentos éticos.
Se lhe falam do pai (que era um homem distinto) para evidenciar assim a inconveniência de sua conduta, ela ri às gargalhadas zombeteiras, tapa os ouvidos com os dedos, responde às irmãs: “Vocês são umas pestes, fingidas; vocês não pensam desse modo; só têm em vista em contrariar, em desgostar por maldade pura, pela intenção maldosa de me perseguir”.
Aí está um delírio de perseguição sem base alucinatória, puramente interpretativo, que se justifica aparentemente com fatos reais. Do que ela não se lembra, entretanto, é que a suposta perseguição da própria família é a reação natural contra sua conduta, sua incapacidade de adaptação ao meio social, conduta essa que tem trazido vexame e atribuições enormes a seus parentes. Submetida a cuidadoso exame mental, nenhuma perturbação psíquica elementar se lhe pode descobrir. Atenção: normal. Memória: bem conservada, tanto para os fatos recentes como para os antigos. Não há desintegração de cultura intelectual anteriormente adquirida. Seu estado afetivo, entretanto, não corresponde ao de uma pessoa que se sente perseguida. Não há tristeza, nem depressão melancólica; ao contrário, nota-se um certo exagero da própria personalidade; um estado de humor um pouco alegre, mas leviano, sem ponderação. Seu juízo, isto é, as faculdades de crítica, de exame, de reflexão, se manifestam bem fracas, embora as aparências enganem e a forma lógica exterior do raciocínio se mantenha bem conservada; uma simples análise de suas palavras e procedimentos revela fraqueza de modo a não deixar dúvidas. Quer casar-se com um médico, apesar de não ter o assentimento deste; interpreta as palavras e gestos dele, em qualquer conversa, com uns tantos sinais certos de anuência. Escreve-lhe e, não obtendo resposta, atribui essa falta a desvio de cartas. Não tem fortuna; vive com a família, que só dispõe de modestos recursos, entretanto fala em seguir para a Europa com o sangue frio e a naturalidade de que já tem depósito nos Bancos. O médico com quem ela projeta seguir viagem já lhe fez ver clara e energicamente a inconsistência de sua conduta, a incongruência de seu procedimento, mas não conseguiu varrer-lhe do cérebro tais ideias. Todas as suas conversas giram em torno desses assuntos: a fuga para a Europa com o aludido médico; o casamento possível, visto que as leis lá o permitem; as outras mulheres que têm feito o mesmo e voltado casadas (cita nomes e fatos reais bem conhecidos do público); a perseguição da família, que, a seu ver, é pura perversidade; as cartas diariamente escritas ao médico, ao intermediário e a outras pessoas por ela envolvidas nessa aventura. Recolhida ao Hospício do Juquery, aí continua com as mesmas ideias, mais resolvida a se deixar examinar para poder levar um atestado de perfeita saúde mental. No terceiro dia, porém, achando que o exame já estava muito demorado, exigiu sua saída e, como encontrasse resistência, pôs-se a praticar atos de violência, como, por exemplo, quebrar vidraças, dar bofetadas nos vigilantes, morder os que tentavam contê-la, ameaçar com violências ainda maiores se não a deixassem sair. Tal estado chegou a ponto de ser preciso recolher ao isolamento em quarto fechado, para evitar maior mal. Apesar de tudo isso, não há confusão de espírito nem alheamento do mundo exterior; confessa que é meio neurastênica e que sempre em casa a chamavam louca, porque tem seus dias em que sente uma certa confusão de ideias.
O isolamento em quarto fechado foi interpretado como castigo e produziu-lhe salutar efeito. Voltou a calma, que permitiu se lhe desse de novo relativa liberdade. Lê os jornais que lhe caem às mãos e encontra quase sempre alguma coisa neles que interpreta como referência a sua pessoa e aos fatos que ultimamente se têm dado consigo. Não come frutas nem doces que são enviados por sua família; isso tanto pode ser desconfiança como simples capricho.
A observação que acabamos de ver é da época de sua entrada no Hospital (1914).
Até 1923 o seu estado psíquico não sofreu alternativas notáveis. O seu desenvolvimento artístico, entretanto, foi intenso. Passava os dias no pátio do pavilhão a pintar natureza morta e paisagens das redondezas. E era principalmente a aquarela o gênero de pintura preferido. Todas as suas composições apresentavam exuberância de cores e, dentre estas, a que mais preferia era o vermelho de sangue.
De 1923 para cá, o seu psiquismo foi-se modificando a ponto dela não se preocupar mais de pintura, notando-se gatismo e embotamento dos sentimentos estéticos. Vive hoje em absoluta despreocupação de tudo e de todos, não se importando mais com suas roupas e nem com a maneira de se trajar. Isolada das companheiras, balbucia coisas incoerentes e esfrega, nas pernas, nos braços e no rosto, terra que apanha do solo.
Para termos ideia de seu estado atual (associação extravagante de ideias), reproduzimos abaixo um trecho que ela ultimamente escreveu a pedido nosso:
“Imortalidade do corpo no fogo; descoberta com ar e fogo a grau inteligência compreendedora e houve desastre, e não pode tirar porque o fogo é pior do que julgava; era trato; e por esta razão não pode constituir pena da Justiça; em outro cá tenho os pontos de alma ainda melhores”.
A manifestação pictórica nessa doente não é uma consequência da psicose que ela apresenta, pois, muito antes de vir para o Hospital a sua capacidade artística já se havia desenvolvido brilhantemente, como resultado de sua formação intelectual.
O que se nota na sua arte, depois de sua internação em Juquery, é que ela teve um certo período de superatividade para cair em seguida numa inércia quase completa e na qual permanece até agora.
Durante o período de superprodução de que fazem parte as figuras 65, 66, 67, 68, a sua arte já não apresentava os mesmos caracteres de outrora, isto é, de quando o seu estado mental era normal. Já havia qualquer coisa a se notar nos desenhos e nas combinações das cores de suas produções. Passado este período, os desenhos de O... foram cada vez mais se tornando primitivos até ao ponto em que está o da figura 69 (um dos últimos que recolhemos), cuja semelhança com os desenhos de crianças do segundo ano do grupo escolar é chocante.
As figuras 65 e 66 representam paisagens. São impressões a óleo. O motivo predominante da composição da figura 65 é uma grande árvore, parecendo ser plátano e que domina quase toda a tela. O céu é de um azul muito vivo e sem nuances. Não há diferenciação de tonalidades. O plátano está regularmente desenhado com os seus galhos em relevo e sua copa está bem representada por uma mancha de tinta de várias tonalidades, que vem do amarelo claro com um pouco de verde desmaiado, até o amarelo escuro e seco.
Nessa paisagem que O... copiou diretamente da natureza, veem-se ainda dois morros com cores artificiais, que estão situados no mesmo plano da árvore. Em cima, num canto do lado direito, num canto do céu, há duas manchas bem distintas: uma vermelha, sanguinolenta, ligeiramente desbotada e outra mais abaixo e em seguida, de tonalidade amarelo ouro. Em toda essa composição notam-se falta absoluta de perspectiva e uma intensa vivacidade de cores. Pelo emprego das tintas com as quais O... compôs este trabalho, poderemos pensar numa paisagem outonal. Assim, a variante das folhas e também os galhos que ela procura salientar em tinta bem escura, são motivos desta estação. Acresce ainda a mancha vermelha do céu. Isto tudo nos faz pensar numa representação do outono.
As cores empregadas nas paisagens das figuras 65 e 66 são principalmente o azul carregado, o amarelo esverdeado e o vermelho sanguíneo.
A simbolística das cores muito vem auxiliar-nos quanto à interpretação freudiana dos quadros de O... Vejamos como a este respeito se exprime Spengler (1*):
“O azul e o verde são cores transparentes, espirituais, suprassensíveis. Não sáo aplicadas na pintura a fresco de estilo ático; e por isso mesmo predominam na pintura a óleo. O amarelo e o vermelho, cores ‘antigas’ são as cores da matéria, da proximidade das emoções sanguíneas. O vermelho é a cor própria da sexualidade; por isso é a única que atua sobre os animais. Ela é a que mais se aproxima do símbolo do falo – e, portanto, da estátua e da coluna dórica –, enquanto que o azul puríssimo serve para transfigurar o manto da Virgem. Esta relação impôs-se por si mesma em todas as escolas, com necessidade profunda”.
Como símbolo da sexualidade, temos nas paisagens 65 e 66 a árvore (membro viril) e a cor vermelha sanguínea (órgão sexual feminino, coito, desvirgindade).
A paisagem a óleo reproduzida na figura 65 apresenta-se com caracteres idênticos aos da pintura antiga. É interessante observarmos hoje em dia a arte decorativa da antiguidade, em vista de seu ponto de contato com a arte ultramoderna, que não representava as distâncias, pondo os objetos em um mesmo plano.
“A pintura antiga não teve perspectiva justamente porque evitou esse ponto, porque não reconheceu, não admitiu a distância (1*)”.
Em O... é curiosa a composição dessa paisagem porque é a única de nossa coleção que se apresenta mais original sob o ponto de vista do primitivismo. O mesmo fato, entretanto, não acontece com as figuras 66, 67 e 68, onde a visão do espaço é tratada mais significativamente.
Na figura 67, por exemplo, que se assemelha um tanto à pintura japonesa, as localizações das coisas no espaço estão regularmente distribuídas de acordo com as respectivas distâncias. Vê-se que ela aqui muito se preocupou com os detalhes, procurando dar relevo e naturalidade ao motivo principal de sua composição. Assim, os eucaliptos se mostram reconhecíveis graças ao seu bom acabamento pictural.
A figura 68 também apresenta pontos de contato com a arte japonesa primitiva. Nesta aquarela a sua preocupação se orientou mais para o lado da representação de conjunto do quadro do que para os detalhes. A árvore desenhada não tem o acabamento da árvore da figura anterior. É quase uma mancha.
A figura 69 bem patente mostra a decadência do seu estado psíquico atual. Se a sua arte apresentava um cunho de ligeiro primitivismo no período que vai de 1914 a 1923, presentemente ela retrogradou, em virtude do seu estado demencial, ao período de infantilidade.
Basta compararmos o desenho da figura 69 com o da figura 8 (desenho infantil) para vermos a profunda analogia que existe entre os mesmos.
Nos alienados artistas é muito comum observar-se, como neste caso, um período de excessiva produtividade, quer na literatura e na poesia (grafomanos), quer nas artes plásticas (pintura, escultura, etc.). Nesse período, a inspiração do louco é lúcida e fecunda. Ele cria, na sua esfera, um mundo de belezas. Mas, depois, chega a fase de involução, de embotamento intelectual, estado demencial, como soe acontecer com os paralíticos gerais, os esquizofrênicos, etc., e ele volta ao caos primitivo, à vida vegetativa. O mundo para eles se torna agora inteiramente diferente. A arte, então, ou se traduz por sinais representativos (símbolos, veja figs. 1, 45 e 46), ou se manifesta grosseiramente, por representações de cenas da natureza, sem homogeneidade de composição.
No quadro, os objetos podem grupar-se de modo inorgânico, uns sobre outros, uns junto de outros, uns detrás de outros, sem perspectiva, sem mútua relação, isto é, sem destacar o fato de que a sua realidade depende da estrutura do espaço; pelo que quer dizer que se deva negar essa dependência. Assim desenham os selvagens e as crianças antes de que a experiência íntima da profundidade tenha submetido suas impressões sensíveis do universo a uma ordem mais profunda (1**).
É o que acontece com a nossa artista.
Como vimos, atualmente o seu estado é demencial.

Notas de Osório Cesar:
1 – Dessins anatomiques et conceptions médicales d’um demente precoce. Encephale, premier semt., 1911.
2 – Observações psiquiátricas do Hospital do Juquery, Nº 12, ano 1914.
1* - Oswald Spengler – Obra cit. Vol. II, pag. 44.
1** - Idem, pag. 49.

Nenhum comentário:

Postar um comentário