...continuação do
texto...
No terceiro grupo estão enquadradas todas as artes descritas
no segundo grupo e mais a pintura. Aqui, a arte dos alienados é uma arte
normal, bem equilibrada e por isto mesmo sem grande interesse para o nosso
estudo a não ser tocante a um ou outro ponto de concepção original que ela
possa ter (figs. 36, 37, 38, 39, 40). Por isto, comparamos as manifestações
artísticas dos alienados que pertencem a esse grupo, com a arte comum, a arte
acadêmica.
Vejamos a observação de um doente do Hospital do Juquery,
autor dos trabalhos escultóricos que acabamos de citar.
C., masculino, 49 anos
de idade, branco, entalhador, solteiro, austríaco, entrou no Hospital em 1 de
maio de 1923.
As informações, algumas fornecidas por uma irmã do observado
e outras do próprio doente, são imprecisas e não oferecem dados suficientes
para uma boa anamnese.
O exame da
reflectibilidade denota: exaltação acentuada dos tendinosos; o pupilar tem boa
reação; não se verifica desigualdade pupilar; há exagerada sensibilidade
cutânea. Apresenta tremores das mãos e da língua estendidas; a abóbada palatina
é larga e chata; a úvula apresenta-se ligeiramente desviada para a esquerda.
Seus dentes são estragados e falhos. Apresenta também uma ponta de hérnia do
lado esquerdo da região inguinal. Não traz vícios de conformação adquiridos ou
congênitos. Sua atitude, seu modo de alimentar-se, de andar, os gestos, são
normais. Tem sono tranquilo. É asseado. Boa compleição física. Exame mental:
alguma instrução preliminar. Expressa-se muito mal em português; é difícil
fazer-se entender; compreende, no entanto, as nossas interpelações e pratica
com acerto, denunciando integridade de atenção, certas operações matemáticas e
alguns desenhos da sua especialidade. Refere com boa memória alguns fatos de
sua vida passada. Sua dissertação, algo incompreensível e por vezes confusa,
exterioriza o delírio persecutório a que se refere a irmã em uma carta dirigida
a nós. Não se conhece e o doente não informa como teve início a psicose de que
está acometido. Foi isto aos 24 anos de idade e forçou-lhe a internação por
seis anos. Deste hospício saiu aparentemente curado, tendo vindo para o Brasil
há 10 anos. Durante o tempo decorrido de 1914 até o de 1920 conservou-se calmo,
trabalhador e gentil para a família. De 3 anos para cá tem apresentado períodos
de excitação sucedidos de uma remissão também passageira. Há 2 anos perdeu a
mãe; o abalo moral provocou-lhe “acessos nervosos” (informações da irmã) mais
violentos, revelando-se o delírio de perseguição que lhe permite ver na irmã a
assassina de sua mãe e um grande perigo para a sua (dele) integridade física.
Prometia insistentemente a exterminação de sua irmã (perseguido-perseguidor) a
quem acusava também de haver desrespeitado sua mulher. Vê-se nisto,
patentemente, o delírio persecutório, pois o observado é solteiro. Ultimamente
apresentava uma verdadeira obsessão pelo jogo de xadrez, a cujos problemas se
dedicava dias e dias; mas, interrompido por alguém que lhe solicitasse qualquer
serviço, “fazia-o de boa vontade e bem feito”. Mais tarde a insônia e terrores
noturnos: “tinha sonhos terrificantes – gritava muito, sendo preciso que se o
acordasse” – informa a irmã. Diz o doente que abusava de bebidas alcoólicas.
Não é bem típico o quadro deste doente; pensamos, no entanto
em classifica-lo entre os casos de delírio sistematizado alucinatório crônico.
A arte deste doente pode-se considerar como uma arte realista
acadêmica, fazendo parte, por isto, do terceiro grupo da nossa classificação
das artes nos alienados (veja página 6). A figura 36 representa um busto
modelado com massa de pão. É bem curiosa a expressão fisionômica da cabeça. A
técnica é apreciável e é de notar a extraordinária semelhança que esse busto
apresenta com a imagem do autor. Achamos uma certa liberdade na confecção desse
trabalho, que é o melhor da coleção que possuímos desse artista e que difere
inteiramente dos outros trabalhos feitos posteriormente. Vejamos a figura 37; é
uma estátua de barro e cimento. Aqui o artista empregou uma outra técnica na
confecção da obra; a expressão do rosto é um pouco dura e não há uniformidade
na disposição dos membros. Os braços são muito longos e as mãos pessimamente
modeladas. Da mesma maneira se mostram as pernas. Enfim, essa escultura
apresenta uma outra tendência artística do autor, que se aproxima sensivelmente
da arte egípcia. A figura 38 apresenta também os caracteres escultóricos da
figura 37. Esse busto, modelado em barro e cimento, possui uma expressão escultórica
relativamente boa. Há alguma semelhança com os bustos romanos. A figura 39, “Cristo
crucificado”, apesar de ter sido modelada com a mesma técnica da obra anterior,
apresenta vários defeitos tanto na confecção e nas proporções da figura quanto
na perspectiva. Notamos que a fisionomia do Cristo é calma e não aparenta
nenhuma alteração de sofrimento. Os músculos não dão sinal de vida; nenhuma
contratura se observa como sinal de dor.
As obras desse alienado artista apresentam, como vimos,
várias formas de sentimento estético. Não há um caráter definido de
individualidade neste artista. Ora ele faz trabalhos realistas, expressivos,
que nos causam admiração, como o da fig. 36, ora ele se dirige, com uma técnica
grosseira, para a escultura arcaica, como a das figuras 37 e 38. Ora a sua arte
tem as características da arte greco-romana, como a representada pela figura
40. Não encontramos estereotipias e nem extravagâncias de imaginação nas suas
produções artísticas. A múltipla individualidade escultórica desse doente não
deixa, entretanto, de nos interessar, já pela simplicidade de sua confecção, ou
seja pela presença de autocrítica que ele sempre demonstrou ter na realização
de suas obras.
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