Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Capítulo 1 – Parte 13 – A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

No terceiro grupo estão enquadradas todas as artes descritas no segundo grupo e mais a pintura. Aqui, a arte dos alienados é uma arte normal, bem equilibrada e por isto mesmo sem grande interesse para o nosso estudo a não ser tocante a um ou outro ponto de concepção original que ela possa ter (figs. 36, 37, 38, 39, 40). Por isto, comparamos as manifestações artísticas dos alienados que pertencem a esse grupo, com a arte comum, a arte acadêmica.

Vejamos a observação de um doente do Hospital do Juquery, autor dos trabalhos escultóricos que acabamos de citar.
 C., masculino, 49 anos de idade, branco, entalhador, solteiro, austríaco, entrou no Hospital em 1 de maio de 1923.
As informações, algumas fornecidas por uma irmã do observado e outras do próprio doente, são imprecisas e não oferecem dados suficientes para uma boa anamnese.

O exame da reflectibilidade denota: exaltação acentuada dos tendinosos; o pupilar tem boa reação; não se verifica desigualdade pupilar; há exagerada sensibilidade cutânea. Apresenta tremores das mãos e da língua estendidas; a abóbada palatina é larga e chata; a úvula apresenta-se ligeiramente desviada para a esquerda. Seus dentes são estragados e falhos. Apresenta também uma ponta de hérnia do lado esquerdo da região inguinal. Não traz vícios de conformação adquiridos ou congênitos. Sua atitude, seu modo de alimentar-se, de andar, os gestos, são normais. Tem sono tranquilo. É asseado. Boa compleição física. Exame mental: alguma instrução preliminar. Expressa-se muito mal em português; é difícil fazer-se entender; compreende, no entanto, as nossas interpelações e pratica com acerto, denunciando integridade de atenção, certas operações matemáticas e alguns desenhos da sua especialidade. Refere com boa memória alguns fatos de sua vida passada. Sua dissertação, algo incompreensível e por vezes confusa, exterioriza o delírio persecutório a que se refere a irmã em uma carta dirigida a nós. Não se conhece e o doente não informa como teve início a psicose de que está acometido. Foi isto aos 24 anos de idade e forçou-lhe a internação por seis anos. Deste hospício saiu aparentemente curado, tendo vindo para o Brasil há 10 anos. Durante o tempo decorrido de 1914 até o de 1920 conservou-se calmo, trabalhador e gentil para a família. De 3 anos para cá tem apresentado períodos de excitação sucedidos de uma remissão também passageira. Há 2 anos perdeu a mãe; o abalo moral provocou-lhe “acessos nervosos” (informações da irmã) mais violentos, revelando-se o delírio de perseguição que lhe permite ver na irmã a assassina de sua mãe e um grande perigo para a sua (dele) integridade física. Prometia insistentemente a exterminação de sua irmã (perseguido-perseguidor) a quem acusava também de haver desrespeitado sua mulher. Vê-se nisto, patentemente, o delírio persecutório, pois o observado é solteiro. Ultimamente apresentava uma verdadeira obsessão pelo jogo de xadrez, a cujos problemas se dedicava dias e dias; mas, interrompido por alguém que lhe solicitasse qualquer serviço, “fazia-o de boa vontade e bem feito”. Mais tarde a insônia e terrores noturnos: “tinha sonhos terrificantes – gritava muito, sendo preciso que se o acordasse” – informa a irmã. Diz o doente que abusava de bebidas alcoólicas.

Não é bem típico o quadro deste doente; pensamos, no entanto em classifica-lo entre os casos de delírio sistematizado alucinatório crônico.

A arte deste doente pode-se considerar como uma arte realista acadêmica, fazendo parte, por isto, do terceiro grupo da nossa classificação das artes nos alienados (veja página 6). A figura 36 representa um busto modelado com massa de pão. É bem curiosa a expressão fisionômica da cabeça. A técnica é apreciável e é de notar a extraordinária semelhança que esse busto apresenta com a imagem do autor. Achamos uma certa liberdade na confecção desse trabalho, que é o melhor da coleção que possuímos desse artista e que difere inteiramente dos outros trabalhos feitos posteriormente. Vejamos a figura 37; é uma estátua de barro e cimento. Aqui o artista empregou uma outra técnica na confecção da obra; a expressão do rosto é um pouco dura e não há uniformidade na disposição dos membros. Os braços são muito longos e as mãos pessimamente modeladas. Da mesma maneira se mostram as pernas. Enfim, essa escultura apresenta uma outra tendência artística do autor, que se aproxima sensivelmente da arte egípcia. A figura 38 apresenta também os caracteres escultóricos da figura 37. Esse busto, modelado em barro e cimento, possui uma expressão escultórica relativamente boa. Há alguma semelhança com os bustos romanos. A figura 39, “Cristo crucificado”, apesar de ter sido modelada com a mesma técnica da obra anterior, apresenta vários defeitos tanto na confecção e nas proporções da figura quanto na perspectiva. Notamos que a fisionomia do Cristo é calma e não aparenta nenhuma alteração de sofrimento. Os músculos não dão sinal de vida; nenhuma contratura se observa como sinal de dor.
As obras desse alienado artista apresentam, como vimos, várias formas de sentimento estético. Não há um caráter definido de individualidade neste artista. Ora ele faz trabalhos realistas, expressivos, que nos causam admiração, como o da fig. 36, ora ele se dirige, com uma técnica grosseira, para a escultura arcaica, como a das figuras 37 e 38. Ora a sua arte tem as características da arte greco-romana, como a representada pela figura 40. Não encontramos estereotipias e nem extravagâncias de imaginação nas suas produções artísticas. A múltipla individualidade escultórica desse doente não deixa, entretanto, de nos interessar, já pela simplicidade de sua confecção, ou seja pela presença de autocrítica que ele sempre demonstrou ter na realização de suas obras.


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