Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sábado, 5 de maio de 2012

Capítulo 1 – Parte 3 – A Expressão Artística dos Alienados


A arte nos alienados tem sido objeto de apurados estudos por parte de alguns psiquiatras. Assim, entre os inúmeros trabalhos aparecidos de 1876 até hoje, podemos citar os seguintes (3):

Nesta referência número 3 está escrito no rodapé:
“No fim deste trabalho, na parte referente à bibliografia, daremos uma lista desenvolvida dos autores e das obras aparecidas até hoje, concernentes ao assunto”.

Continuando o texto:

Simon (4) em 1876 publicou uma curiosa análise de desenhos, pretendendo especificá-los em cada caso para chegar como meio, a um diagnóstico certo de moléstias mentais.
Lombroso (5) em 1889 reuniu as produções artísticas de 107 doentes que começaram a pintar ou esculpir depois da moléstia. Ele foi o primeiro observador que chamou a atenção para a semelhança da arte de alguns alienados com a arte primitiva e considerou, genuinamente, as obras artísticas desses alienados como uma espécie de atavismo à infância da humanidade. Lombroso observou que há doentes que mostram capacidades originais de inovação: esta originalidade, diz ele, chega às vezes à singularidade, à rareza, a qual é todavia explicável logicamente quando se aprofundam nas ideias dos doentes e se compreendem a liberdade e a largueza com que se move a sua fantasia.

Nas referências de números 4 e 5 há as citações de rodapé:
4 – L’imagination dans la folie. Étude sur lês dessins, plans, description et costumes dês alienées. Ann. med. Psychologiques, 1876.
5 – Sull’arte nei pazzi. Arch. Di Psichiatria e scienze legale, 1880.

Morselli (1) em 1894 também se preocupou com os desenhos dos alienados.
Em Portugal, Julio Dantas (2) publicou em 1900 uma interessante monografia sobre as produções artísticas do Hospício de Rilhafolles.
Rogues de Fursac (3) em 1905 reuniu em volume algumas produções artísticas de vários alienados.

Nas referências de números 1, 2 e 3 há as citações de rodapé:
(observação: o autor reiniciava a numeração das notas de rodapé a cada página)
1 – Manuale di semiotica delle malattie mentale. Milano, 1894.
2 – Pintores e Poetas de Rilhafolles. 1900. Lisboa.
3 – Les écrits et les dessins dans les maladies nerveuses et mentales, Paris, 1905.

Dos muitos trabalhos aparecidos ultimamente, mencionaremos ainda os seguintes: H. Prinzhorn, “Das bildnerische Schaffen der Geisteskranken”, publicado no Zeitschrift f. d. ges. Neurologie und Psychiatrie, Berlin, 1919. “Bildnerei der Geisteskranken”, do mesmo autor, obra notável, rica em observação, constituindo um grosso volume de 361 páginas, com muitas reproduções de desenhos em cores, pelo que representa o trabalho mais completo, neste gênero, destes últimos tempos. “Bildnerei der Gefangenen”, também do mesmo autor, trabalho recente, publicado em 1926. “Ein Geisteskranker als Kunstler”, de Morgenthaler, obra saída em 1921, na Alemanha, onde se encontra já a aplicação da psicanálise na interpretação dos trabalhos artísticos de um esquizofrênico. “L’art et la Folie” de Vinchon, publicado pela livraria Stoch, de Paris, em 1925. 

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Capítulo 1 – Parte 2 – A Expressão Artística dos Alienados

O insano também não é um ser desafeiçoado e sem iniciativa pelas coisas de arte. Do mesmo modo que no indivíduo normal, a imagem, o pensamento formado no cérebro do alienado cria, em determinados casos, uma atitude estética bem curiosa.
Os poetas, os desenhistas, os escultores, etc., são artistas que frequentemente deparamos nos manicômios. E a nossa admiração se extasia quando encontramos com qualquer das produções desses artistas insanos e nelas vemos estilizadas, segundo a psique de cada um, concepções filosóficas, literárias ou plásticas, de uma ideação algumas vezes surpreendente.
Esses grandes artistas, na grande maioria, são todos homens.
Nas mulheres alienadas as produções artísticas (literatura, desenho, pintura, escultura e música), pelo menos nos nossos hospícios são escassas. Temos observado, no Hospital do Juquery, que entre as mulheres internadas, somente um pequeno grupo das mais calmas, essas produções de arte se resumem em objetos manuais, como sejam cestas de palha, crochet, bordados, etc., e raramente trabalhos decorativos, como flores de papel e cestas com flores fabricadas de massa de pão. (1)

Na observação de número (1) o autor escreve no rodapé:

Exceção feita de uma demente precoce do Hospital do Juquery, antiga internada, pintora paisagista, de que mais adiante falaremos.

Continuando o texto:

Não parecem ser frequentes nessas doentes, trabalhos literários, esculturas, pinturas murais, etc., por mais insignificantes que sejam.
“Se voltarmos as vistas para os tempos primitivos, [diz Havelock Ellis] (2), podemos estar perfeitamente seguros de que os desenhos toscos de homens, animais e de objetos naturais que se encontram nos instrumentos primitivos e nas rocas, são trabalhos de homens. Hoje em dia o impulso para desenhar, pintar e trabalhar – o impulso artístico em sua forma mais primitiva, - é muito mais acentuado nos meninos e homens do que nas meninas e mulheres. Nos colégios e nas prisões, esta diferença é decisiva. Por isto pode-se dizer que as mulheres são menos imaginativas do que os homens”.

No item de número (2) o autor escreve no rodapé:

Estudios de Psicologia sexual, vol. 1, trad. Hesp. Madrid, 1913.

Continuando o texto:

“A mulher alienada, [observa Toulouse], tem absoluta falta de invenção no conceito das ideias delirantes; não demonstra nada da riqueza de extravagância manifestada pelos homens. As características de grandeza que afetam tão amiúde os homens são raras nas mulheres, e então são visualmente de um caráter débil e vulgar, limitando-se em sua maior parte à região do tocado, ou a uma herança secreta suposta”.

Comentário sobre o texto:
Observa-se algo próprio desse período no que concerne à então suposta diferença entre homem e mulher em relação a pendores artísticos. Como esses estudiosos são citados por Osório César sem crítica aos mesmos, é provável que ele concordasse com essas visões.
É bastante interessante assinalarmos que entre 1 e 2 anos após a publicação desse livro, Osório César passou a viver com Tarsila do Amaral, com a qual viajou à União Soviética.
Podemos nos perguntar como ficaram esses conceitos a partir da estreita convivência com artista tão singular como Tarsila. Por outro lado, provavelmente conhecedora do livro de Osório, o que Tarsila teria pensado desses conceitos... 

terça-feira, 20 de março de 2012

Capítulo 1 - parte 1 - A Expressão artística dos Alienados

A Expressão artística nos alienados (1)
Capítulo I

O número (1) ao rodapé da página indica a seguinte nota:

Nas mais antigas etimologias a palavra alienado, nabi em hebreu, é sinônima de profeta, como igualmente em sânscrito nigrata.

No início do capítulo I, o autor faz um breve resumos dos assuntos a serem abordados com o seguinte texto:

Falso conceito na apreciação da “loucura”. Interpretação exata da psicologia do alienado. Ergoterapia. A arte nos loucos. Breve resenha histórica do que se tem escrito até hoje. Ensaio de um quadro para a classificação das artes nos alienados. Estudo comparativo entre as artes nos alienados, das crianças, dos povos primitivos e a arte primitiva (século XII, japonesa, africana, etc.). O valor dos símbolos nas manifestações artísticas dos alienados para a interpretação psicanalítica.

A seguir transcrevemos o texto propriamente dito do capítulo I.

Quase toda gente pensa que um Hospício é lugar fechado onde passam a vida inteira os pobres doentes do espírito sem nada dizer, sem nada fazer, que não sejam coisas desassisadas.
Falar de um louco, dizia Esquirol,  é, para o vulgo, falar de um homem que aprecia mal as suas relações com o mundo exterior, a sua posição e o seu estado; que se entrega aos atos mais desordenados, mais extravagantes, mais violentos, sem motivo, sem combinações prévias, sem premeditação...
Este conceito, felizmente, não é de todo verdadeiro. Quem entrar num manicômio e procurar conversar atentamente com os doentes, ouvir com interesse suas queixas, as suas curiosas histórias, notará, certamente, que, entre uma grande parte deles, o raciocínio é lógico, a linguagem correta e a imaginação, por vezes, exuberante. O alienado é simplesmente isto: “é um doente cujas perturbações do espírito são um obstáculo, transitório ou permanente, à sua adaptação à sociedade na qual ele deve viver”(2).

Ao item (2) corresponde a referência:

Dr. P. Voivonel – La Raison chez les fous, pags. 14-15, Paris, 1927.

Continuando o texto:

Nem todo alienado, porém, é aquele doente que a maior parte do povo julga ser: um pobre ente humano desprovido de atividade psíquica normal e que passa a vida inteira dizendo tolices sem poder se ocupar em coisas úteis à comunidade. Não. Isto é uma falsa ideia. O alienado, como a experiência demonstra, é um doente que, submetido a um regime moderado de trabalho, auxiliado com um tratamento carinhoso dos médicos, enfermeiros e ajudantes, é capaz de um esforço útil e produtivo.
Sobejamente conhecida é hoje a eficácia dos “Asilos Colônias”, onde o regime do trabalho moderado entre os alienados tem sido preconizado com ótimo resultado. E, entre nós, justiça seja feita, este método terapêutico tem sido usado com excelente proveito.
A este respeito assim se exprime o professor Franco da Rocha: “O insano que trabalha e vê o resultado de seu suor, sente-se mais digno; sai da condição ínfima de criatura inútil e eleva-se a seus próprios olhos; adapta-se a um modus vivendi que lhe suaviza grandemente a desgraça. A consciência do próprio valor pessoal revive no indivíduo que, de outro modo, seria uma carga pesada e inútil para a parte sã da sociedade. Experiência de mais de dez anos tem me demonstrado o que acabo de dizer e permite-me subscrever as opiniões que estão exaradas em motes no começo deste livro. A ocupação ao ar livre, que lhes concede a aparência de liberdade, e em muitos casos não só aparência, mas ampla liberdade, diminui-lhes extraordinariamente a angústia, a ansiedade, o mal estar que os atormenta na prisão sem trabalho” (Hospícios e Colônias do Juquery, S.P., 1912).
O alienado, como qualquer indivíduo normal, odeia o regime de prisão. Temos visto, mais de uma vez, esquizofrênicos que se revoltam a ponto de agredirem os guardas dos pavilhões contra as suas permanências nos pátios das enfermarias no “dolce far niente”. Entretanto, esses doentes, fora, no trabalho áspero do campo, na agricultura, por exemplo, governam-se perfeitamente bem. Não queremos dizer em tese que todo e qualquer alienado seja suscetível dessa adaptação de vida. Contudo, poderemos afirmar com segurança que esse processo de terapêutica é o que melhor resultado tem dado, principalmente nas diversas formas de demência precoce, na catatônica, por exemplo, como se verifica pelas estatísticas manicomiais dos países em que ele é praticado.
Na América do Norte, onde a ergoterapia se encontra muito desenvolvida, são verdadeiramente dignos de nota a importância e o carinho com os quais os doentes são tratados por este método.
Dr. Pacheco e Silva, diretor do Hospital do Juquery, no seu Relatório apresentado ao Secretário do Interior (A Assistência a alienados nos Estados Unidos e na Europa, S.P., 1926), quando de volta de sua viagem de estudos aos Estados Unidos da América do Norte e à Europa, falando sobre o “Chicago State Hospital” diz o seguinte:
“É um magnífico e enorme Hospital, com uma população hospitalar de 3810 almas. Os doentes, em sua grande maioria crônicos, são entretidos por cerca de 60 professores especializados, que procuram despertar o interesse dos alienados para os trabalhos manuais, jogos, etc. A seção de ergoterapia tem grande desenvolvimento e compreende diversas seções: fábricas de cestas e cadeiras de vime, tapetes, cortinas, bordados, brinquedos de madeira, etc. São impressionantes os resultados obtidos nesse hospital com o emprego da terapêutica pelo trabalho, sobretudo em relação aos dementes precoces, que, de apáticos e  indiferentes, se tornam operosos, recobrando a iniciativa perdida”.

Conforme se depreende do texto até aqui, Osório César usa uma conceituação própria dessa época a respeito de povos de tradição não europeia que eram considerados como “povos primitivos”, bem como formas de arte não europeia, com sendo “arte primitiva”. Tal conceituação era elaborada por forte influência da Teoria da Evolução sobre todas as esferas científicas e sociais e não apenas as biológicas. Observa-se também a referência e “reverência” feita por César a Pacheco e Silva, que viria a desenvolver, mais tarde estrito relacionamento com tendências conservadoras mais próximas de regimes ditatoriais. Portanto, devemos situar Osório César na ambientação de então, nos anos 1920.
Podemos observar já de início uma abertura do autor a uma visão mais ampla do doente psiquiátrico que ia além de uma caricaturização reducionista da condição desses indivíduos, dando a eles traços similares aos indivíduos considerados “normais”. A menção a Franco da Rocha indica a posição de destaque desse professor nesse momento. 

terça-feira, 6 de março de 2012

Introdução de "A Expressão Artística nos Alienados"

O que podemos entender como uma "Introdução" a seu trabalho, Osório César chama de "Advertência", que é uma designação observada em algumas obras da época, quando se trata de texto breve.
Antes da Advertência, observa-se na mesma página duas observações literárias. 
Em francês há uma citação de Antheaume-Dromard, da obra "Poésie et folie": "Il y a dans tout homme un fou qui sommeille". Ou seja, "Há em todo homem um louco que dorme".
Há também uma citação de Machado de Assis presente em "A Semana" de Machado de Assis: "Às vezes fito um quintal de Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o mesmo galo que me acorda, e se eu não sou o mesmo Virgílio. É o período de loucura mansa que em mim sucede o sono".
Em seguida vem a sua "Advertência".

Advertência (Osório César - 1929)

Esta modesta monografia é o esforço de 6 anos consecutivos de trabalho estafante.
Desde nossa designação para o lugar de estudante interno do Hospital do Juquery, em 1923, já tinhamos em mente a ideia de estudar a arte nos alienados, comparando-a com a dos primitivos e a das crianças. 
A ideia surgiu-nos logo depois do aparecimento do belo livro de H. Prinzhorn "Bildnerei der Geisteskranken" e do livro de Vinchon "L'Art et Folie".
No começo encontramos uma série enorme de dificuldades: literatura escassa entre nós, falta de Museu artístico no Hospital e principalmente carência de sólido conhecimento da matéria que íamos(sic) estudar.
Felizmente, algumas dessas dificuldades logo pudemos vencer, graças à bondade e à ajuda de dois grandes amigos, a quem devemos a realização desse trabalho: - Dr. Antonio Carlos Pacheco e Silva, jovem cientista, diretor do Hospital do Juquery, e Dr. Alarico Silveira, erudito profundo, que tudo sabe e ensina, aos quais deixamos consignados os nossos sinceros agradecimentos.
Depois de pacientemente organizado o Museu, com as peças e os trabalhos mais interessantes dos doentes do Juquery, fomos procurar nas revistas médicas nacionais e estrangeiras e nos catálogos de livrarias, obras referentes ao nosso assunto.
Mandamos então vir do estrangeiro, principalmente da Alemanha, grande número de publicações, cuja lista se encontra no fim deste livro.
As produções artísticas dos alienados, principalmente as plásticas e os desenhos decorativos que estudamos, apresentam-se interessantes e características para comparações com os trabalhos artísticos dos primitivos e das crianças.
Demos ao presente trabalho a seguinte orientação: quando tratamos de artistas do Juquery, transcrevemos toda a história psiquiátrica do doente e em seguida analisamos a sua obra.
Em alguns casos que achamos interessantes (principalmente os casos de demência precoce com desenhos simbólicos) aplicamos a psicanálise de Freud, tal como o fez na Alemanha Morgenthaler, no seu curioso livro "Ein Geisteskranker als Kunstler", e como já o fizemos nós, em trabalhos anteriores, publicados em colaboração.(1)
Uma boa parte do material artístico que reproduzimos dos índios do Brasil e dos negros, devemos ao prof. Roquette Pinto, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que nos facilitou e orientou que lhes são inatas, durante o tempo de nossa estada no Rio, as ricas coleções do Museu. A ele, pois, e ao seu assistente, Dr. Raimundo Lopes, que nos auxiliaram na separação das peças, os nossos agradecimentos.
                                                                            São Paulo, Abril de 1929
(1) O. Cesar e J. Penido Monteiro - Contribuição ao estudo do simbolismo místico nos alienados, São Paulo, 1927.
Durval Marcondes e O. Cesar - Sobre dois casos de estereotipia gráfica com simbolismo sexual. Memórias do Hospital de Juquery, N. 3-4, São Paulo.
             

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Breve Análise sobre Prefácio de Motta Filho

O Prefácio de Motta Filho ao livro de Osório César sobre a Expressão Artística dos Alienados pode revelar alguns elementos interessantes. 
Um primeiro aspecto corresponde ao prefácio feito por um artista, ou ainda literato, a um livro da área médica.
Isso denota uma correlação própria de Osório César com o mundo artístico ao mesmo tempo em que tem sua atividade médica e mais especificamente psiquiátrica, relação essa que perdurou por toda sua vida.
Um outro fator diz respeito à data desse prefácio: um texto de 1927 que se refere a observações e estudos feitos por Osório César alguns anos antes dessa data.
Esses são dados inovadores a respeito de estudos dessa natureza nesses anos. Os anos que antecederam o fim da Segunda Guerra Mundial e principalmente os anos antes de 1930 são ainda carentes de estudos que possam iluminar o que acontecia por esse tempo. Ainda são poucos os trabalhos que procuram aprofundar noções desse período. A partir de 1930 iniciou-se uma construção "getulista" da história que deixou para o período anterior apenas a marca de "República Velha", ficando o rótulo de "Nova República" para o período getulista e mais ainda o de "Estado Novo" a partir do regime instalado em 1937.
O texto de Motta Filho traz todo um clima em torno e parte do ambiente do Hospital de Juquery, como também o ambiente entre os intelectuais de São Paulo desse período. 
É certo que em 1920 Franco da Rocha já tinha publicado o primeiro livro no Brasil sobre a doutrina de Freud, embora já anos antes disso Freud vinha sendo episodicamente citado por alguns estudiosos. 
O texto de Motta Filho, que tinha participado da Semana de Arte Moderna de 1922, dá indícios de que ideias sobre psicologia corriam entre discussões e informativos populares e já outras seriam mais objeto de debate entre estudiosos. 
Além disso, ao falar em "cientificismo" Motta Filho já dá também a entender que as polêmicas em torno das ideias freudianas e os conceitos científicos já estavam presentes e ativas na São Paulo de então.
Essa São Paulo de 1927 é uma cidade de quase um milhão de habitantes, que em 1900 tinha em torno de 300 mil habitantes e que 30 anos antes tinha menos de 100 mil. Esses números dão ideia do crescimento meteórico de São Paulo nesse período, que era comparada a um permanente canteiro de obras (e será que não continua assim?).
Já se vê aí pelo texto de Motta Filho, bem como por esses números e todo o clima em torno disso, que a Sampa de Caetano Velloso talvez já estivesse ali não apenas "incubada" mas já... talvez... até mesmo...  (e mais do que uma figura de linguagem) "tropicalista'!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Prefácio de "A Expressão Artística nos Alienados"

A Expressão Artística nos Alienados – Osório César

Prefácio (escrito por Motta Filho em 12 de dezembro de 1927)

          Na última visita que fiz ao Hospital de Juquery em companhia de Osório César, ao entrar no amplo vestíbulo encontrei, encostado a uma coluna, um rapaz alto, bem afeiçoado, de olhar melancólico, que observava atentamente as pessoas que entravam. Como ficasse sozinho no vestíbulo, ele aproximou-se de mim timidamente:
          - O senhor é doente? Vai ficar internado?
          - Não – respondi.
          - ‘Me desculpe’; aqui não se distingue o louco do homem são. E, entre os médicos, há mais loucos de que entre os loucos.
          Falava pausadamente. E, de vez, seus olhos claros e tranqüilos tomavam uma expressão de revolta. Era um demente precoce. Trabalhava obediente e ordeiro no serviço do Hospital.
          À tarde, quando deixei o Hospital em demanda de S. Paulo, cortando de automóvel a colina verde e ondeante como um mar petrificado, fui trazendo comigo essa impressão desnorteante que me deram os infelizes insanos.
          Havia naqueles desgraçados, incapazes de se amoldarem à vida em sociedade, um fundo comum a todos nós. Não fora só aquele louco que me confundira pela segurança e firmeza de raciocínio. A maioria dos internados tinha um grande fundo de humanidade, que me fazia pensar naquela grande verdade que alguém escrevera: “em cada um de nós há um louco adormecido”.
          Este trabalho de Osório César, escrito com grande apuro científico e com a amenidade fascinante das obras de arte, veio sublinhar, com a autoridade de sua competência clínica, essa persistência robusta da humanidade nos entes mais desumanizados.
          Afinal de contas há em todos nós um louco adormecido, assim como há em todo louco um homem adormecido. Machado de Assis, que sofria de ataques epilépticos e que, assim, vivia a despertar dentro de si o homem e o louco, criou a figura delirante e comocionalmente humana de Quincas Borba e escreveu “O Alienista” onde uma ironia dolorosa e amarga procura a linha divisória entre a  normalidade e a loucura
          A arte nos alienados, como estuda carinhosamente Osório César, é a revelação maravilhosa de que a humanidade, em sua proteiforme manifestação, é sempre inexoravelmente a mesma. A arte é então a grande unificadora da espiritualidade humana. Ela parte da profundidade do inconsciente e, descarregando a angústia que enche o nosso peito de homem civilizado, de homem equilibrado, faz rebrotar em nós aquilo que fomos, aquilo que as conveniências do momento recalcam – a crença, o primitivo, o selvagem.
          O alienado, não possuindo o freio da normalidade, torna-se um ser à parte por isso mesmo, mas na arte, na arte que é a libertação para Goethe, que é a única flor para Schopenhauer – ele é tão humano, tão artista, como todos os homens, como todos os artistas.
          Dante, exaltado, falando sozinho em altas vozes pelas ruas escuras de Florença, tinha voltado do Inferno. As matronas benziam-se quando o viam passar de longe. As crianças fugiam aterrorizadas. Era feiticeiro, era mago. Era louco. Era o grande louco que se exaltara ao extremo de escrever a “Divina Comédia”.
                    “Io son fatta da Dio, sua merce tale”
                    “Che la vostra miseria non mi tange”
                    “Ne fiamma desto incendio non m’assale” (Inf. II)

          Louco fora Homero, loucos eram os artistas para as chacotas de Luciano; louco foi Milton e Cervantes foi louco; louco foi Camões explorando as suas próprias alucinações; louco foi Dostoievski que, como Dante, espantava a população tranquila de S. Petersburgo com seus gestos e parlandas; louco foi Balzac confundindo suas criações com a realidade; louco foi Maupassant que morreu louco. Louca foi a geração de artistas do século dezenove para a análise de Nordau, para a psicologia mórbida de Grasset...
          Se, de fato, quiséssemos aqui fazer psicologia fácil, popular, escandalosa, acabaríamos por afirmar que todo artista é louco.
          Mas não é. Nem todo artista é louco, como nem todo louco é artista. O que existe, de fato, é esse fundo comum, que é o espírito artístico que sempre se manifesta no homem; que nasce nas camadas profundas de seu inconsciente e transvasa para a vida como que aveludando a estrada daqueles que nasceram com o dom de não compreenderem a harmonia tranqüila da vida medíocre.
          Aquele velho paranoico que faz no hospício versos ritmados e belos; aquele pobre pintor místico; aquele pobre demente precoce catatônico que faz desenhos quase que como sente e pensa, - são todos eles possuidores daquela mesmíssima emoção, daquele mesmíssimo sentimento que fez com que Michelangelo ferisse com seu martelo os joelhos de seu formidável Moisés.
          Nunca em minha vida de artista e de estudioso encontrei uma definição de arte que me satisfizesse. Nem nas delineações aristotélicas nem depois que Baumgarten fundou a Estética. E isso porque, observando as formas mais rudimentares da arte, na cerâmica de Marajó, nos azulejos astecas, nos duendes (sic) dos primitivos africanos até nos monumentos assírios, nas funerárias dos egípcios, nos monumentos clássicos, nas catedrais góticas, nos monstros que espiam Paris do alto da Notre Dame, - penso que a arte despreza todas as definições pelo infinito mistério que contém em sua essência. Como o filósofo hindu, diante da lista das definições da vida, podemos nós, como ele, definir a arte: “nada disso”.
          Mas se nunca chegaremos a bem caracterizar os elementos essenciais da arte – poesia, emoção, sentimento, forma, inquietação, ritmo, - é talvez porque seja ela a forma menos intelectual da psique humana.
          Serviu-se, neste trabalho, Osório César da psicanálise para estudar a expressão artística nos alienados. Com efeito, Freud veio, com o seu método, esclarecer uma série de pontos escuros da Psicologia. Abriu o inconsciente fechado, de há muito, a sete chaves.
          Mas o grande médico austríaco não está bem conhecido entre nós. Espanta os rotineiros e é explorado pelos pedantes das novidades livrescas.
          Entretanto, por este trabalho de Osório César podemos, desde logo, avaliar a grandiosidade da conquista científica feita por Freud. No estudo das manifestações estéticas dos alienados, dirigido por um rigor custoso e paciente de um verdadeiro psicanalista que compreendeu bem a teoria freudiana em todas as suas formas, - nós encontramos, evidenciando-se, como um resultado de uma análise química, o fator inconsciente na vida afetiva e emocional da arte.
          Freud conseguiu, com sua teoria, trazer à realidade, mas a uma realidade objetiva, o inconsciente que andava apenas como categoria filosófica nas metafísicas acadêmicas. Fixando a mecânica do espírito pelo estudo das neuroses e pela observação dos sonhos, ele alargou a sua conquista para terrenos amplos e desconhecidos. O homem, senhor de uma individualidade própria, com inclinações e tendências diversas que caracterizam o seu “eu” – é obrigado na vida social a recalcar dentro de si uma porção de desejos a fim de se harmonizar com os preconceitos e tabus da vida em comum. Esse recalcamento que se opera quotidianamente, transvasa-se por diversas válvulas psíquicas que possuímos, tais como o sonho e a arte que é um sonho acordado.
          Não quero falar na origem das neuroses. Nem me sobra competência para tanto. Mas assinalo o papel que a arte desempenha na psicologia humana. Assim, sendo a arte um desabafo, um verdadeiro parto, na expressão romântica de Goethe, ela é essencialmente individual e pessoal, pode surgir, com toda a sua fascinação, com todas as suas galas e louçanias, tanto no homem normal como em um homem alienado, porque ela nasce no inconsciente, no instinto que são vivos em ambos. Tanto em um como em outro, a operação psíquica se dá. A arte se processa, tanto na normalidade, como na anormalidade, da mesma maneira.
          Mas, em se tratando da psicanálise, estou certo de que Osório César vai enfrentar a hostilidade do cientificismo dominante.
          Levará “bordoadas” como se diz na gíria. E eu, que prazenteiramente o acompanho, faço votos para que dessa luta o seu nome ganhe a vitória que tanto merece a sua honesta cultura e o seu formoso talento.
           São Paulo, 12 de Dezembro de 1927.
                                                                                   Motta Filho

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A Expressão Artística dos Alienados - Preâmbulo

A Expressão Artística nos Alienados (contribuição para o estudo dos símbolos na Arte)

Osório César publicou esse livro em 1929, mas no que intitula como “Advertência”, após o Prefácio de Motta Filho, ele acentua que o trabalho contido nessa obra iniciou-se em 1923, logo de sua entrada no Hospital de Juquery, pois ele já tinha tal interesse.
Assim, vemos que mais de vinte anos antes de Nise da Silveira, Osório César já buscava fazer esse tipo de estudo. Não vai aqui a preocupação de “quem fez o quê primeiro”, mas sim de recuperar um trabalho esquecido, bem como de descobrir que dentro do Juquery existiam, na verdade, “vários Juquerys” e um deles era o abordado por Osório César.
Faremos uma exposição gradual desse livro de Osório César, com o uso da grafia atualizada em relação à de 1929. Mantivemos apenas a grafia de “Juquery” com “Y”, seguindo uma tendência iniciada na obra de M.C.P. Silva, em sua obra de 1986 sobre o Juquery, como um “laço”, um “gancho” no tempo, que possa parcialmente transpostar-nos ao tempo em que os trabalhos foram feitos.
Logo no início do livro observamos a dedicatória de Osório César:

“A Freitas Valle,
a quem devo tudo o que sou,
A Antonio Carlos Pacheco e Silva,
meu mestre e amigo, e
A Alarico Silveira, que me inspirou e
encorajou este modesto trabalho contribuindo
com uma grande parte da bibliografia
que nele se encontra”.

Talvez nessa dedicatória o que mais chame a atenção é a menção ao psiquiatra e Diretor do Hospital do Juquery Antonio Carlos Pacheco e Silva (1898-1988), por saber-se hoje que no transcorrer de sua história pessoal alinhou-se com posturas eugênicas e com governos ditatoriais, enquanto Osório César foi um entusiasta do marxismo. Essa menção pode levar a várias suposições, como, por exemplo, se as posições políticas dos dois teriam sido melhor definidas mais tarde, ou ainda se tratava-se mais de uma relação entre mestre e aluno, à margem de posturas políticas. Podem ser feitas essas ou outras hipóteses, por ora difíceis de confirmação. O que fazemos aqui é apenas o registro e a constatação de que os anos 1920 podem ter sido mais complexos do que se possa supor.
A dedicatória a Freitas Valle (Senador Freitas Valle – 1870-1958) pode se dever mais ao lado artístico de Osório César, já que se tratava de um grande mecenas das Artes em São Paulo, que concedia bolsas e apoio a vários artistas. Freitas Valle era advogado, poeta, político e de família abastada. Assim, em 1904 comprou uma chácara próxima à Avenida Paulista que chamou de Vila Kirial, tornando-a uma espécie de espaço cultural similar a correlatos europeus. Freitas Valle participou da fundação da Pinacoteca em 1906, em 1911 participou da organização da Primeira Exposição Brasileira de Belas Artes. Também em 1911 integrou bancas do recém criado Pensionato Artístico do Estado de São Paulo com bolsas a artistas como Victor Brecheret e Anita Malfatti entre outros. Em 1912 foi um dos fundadores da Sociedade Artística. Em 1913 patrocinou a primeira exposição de Lasar Segall. Freitas Valle era deputado pelo PRP e amigo de Washington Luiz e Julio Prestes e desistiu da política após a saída de ambos do cenário político.
Alarico da Silveira era advogado, político. Foi autor de uma enciclopédia.