A Expressão artística nos alienados (1)
Capítulo I
O número (1) ao rodapé da página indica a seguinte nota:
Nas mais antigas etimologias a palavra alienado, nabi em hebreu, é sinônima de profeta, como igualmente em sânscrito nigrata.
No início do capítulo I, o autor faz um breve resumos dos assuntos a serem abordados com o seguinte texto:
Falso conceito na apreciação da “loucura”. Interpretação exata da psicologia do alienado. Ergoterapia. A arte nos loucos. Breve resenha histórica do que se tem escrito até hoje. Ensaio de um quadro para a classificação das artes nos alienados. Estudo comparativo entre as artes nos alienados, das crianças, dos povos primitivos e a arte primitiva (século XII, japonesa, africana, etc.). O valor dos símbolos nas manifestações artísticas dos alienados para a interpretação psicanalítica.
A seguir transcrevemos o texto propriamente dito do capítulo I.
Quase toda gente pensa que um Hospício é lugar fechado onde passam a vida inteira os pobres doentes do espírito sem nada dizer, sem nada fazer, que não sejam coisas desassisadas.
Falar de um louco, dizia Esquirol, é, para o vulgo, falar de um homem que aprecia mal as suas relações com o mundo exterior, a sua posição e o seu estado; que se entrega aos atos mais desordenados, mais extravagantes, mais violentos, sem motivo, sem combinações prévias, sem premeditação...
Este conceito, felizmente, não é de todo verdadeiro. Quem entrar num manicômio e procurar conversar atentamente com os doentes, ouvir com interesse suas queixas, as suas curiosas histórias, notará, certamente, que, entre uma grande parte deles, o raciocínio é lógico, a linguagem correta e a imaginação, por vezes, exuberante. O alienado é simplesmente isto: “é um doente cujas perturbações do espírito são um obstáculo, transitório ou permanente, à sua adaptação à sociedade na qual ele deve viver”(2).
Ao item (2) corresponde a referência:
Dr. P. Voivonel – La Raison chez les fous, pags. 14-15, Paris, 1927.
Continuando o texto:
Nem todo alienado, porém, é aquele doente que a maior parte do povo julga ser: um pobre ente humano desprovido de atividade psíquica normal e que passa a vida inteira dizendo tolices sem poder se ocupar em coisas úteis à comunidade. Não. Isto é uma falsa ideia. O alienado, como a experiência demonstra, é um doente que, submetido a um regime moderado de trabalho, auxiliado com um tratamento carinhoso dos médicos, enfermeiros e ajudantes, é capaz de um esforço útil e produtivo.
Sobejamente conhecida é hoje a eficácia dos “Asilos Colônias”, onde o regime do trabalho moderado entre os alienados tem sido preconizado com ótimo resultado. E, entre nós, justiça seja feita, este método terapêutico tem sido usado com excelente proveito.
A este respeito assim se exprime o professor Franco da Rocha: “O insano que trabalha e vê o resultado de seu suor, sente-se mais digno; sai da condição ínfima de criatura inútil e eleva-se a seus próprios olhos; adapta-se a um modus vivendi que lhe suaviza grandemente a desgraça. A consciência do próprio valor pessoal revive no indivíduo que, de outro modo, seria uma carga pesada e inútil para a parte sã da sociedade. Experiência de mais de dez anos tem me demonstrado o que acabo de dizer e permite-me subscrever as opiniões que estão exaradas em motes no começo deste livro. A ocupação ao ar livre, que lhes concede a aparência de liberdade, e em muitos casos não só aparência, mas ampla liberdade, diminui-lhes extraordinariamente a angústia, a ansiedade, o mal estar que os atormenta na prisão sem trabalho” (Hospícios e Colônias do Juquery, S.P., 1912).
O alienado, como qualquer indivíduo normal, odeia o regime de prisão. Temos visto, mais de uma vez, esquizofrênicos que se revoltam a ponto de agredirem os guardas dos pavilhões contra as suas permanências nos pátios das enfermarias no “dolce far niente”. Entretanto, esses doentes, fora, no trabalho áspero do campo, na agricultura, por exemplo, governam-se perfeitamente bem. Não queremos dizer em tese que todo e qualquer alienado seja suscetível dessa adaptação de vida. Contudo, poderemos afirmar com segurança que esse processo de terapêutica é o que melhor resultado tem dado, principalmente nas diversas formas de demência precoce, na catatônica, por exemplo, como se verifica pelas estatísticas manicomiais dos países em que ele é praticado.
Na América do Norte, onde a ergoterapia se encontra muito desenvolvida, são verdadeiramente dignos de nota a importância e o carinho com os quais os doentes são tratados por este método.
Dr. Pacheco e Silva, diretor do Hospital do Juquery, no seu Relatório apresentado ao Secretário do Interior (A Assistência a alienados nos Estados Unidos e na Europa, S.P., 1926), quando de volta de sua viagem de estudos aos Estados Unidos da América do Norte e à Europa, falando sobre o “Chicago State Hospital” diz o seguinte:
“É um magnífico e enorme Hospital, com uma população hospitalar de 3810 almas. Os doentes, em sua grande maioria crônicos, são entretidos por cerca de 60 professores especializados, que procuram despertar o interesse dos alienados para os trabalhos manuais, jogos, etc. A seção de ergoterapia tem grande desenvolvimento e compreende diversas seções: fábricas de cestas e cadeiras de vime, tapetes, cortinas, bordados, brinquedos de madeira, etc. São impressionantes os resultados obtidos nesse hospital com o emprego da terapêutica pelo trabalho, sobretudo em relação aos dementes precoces, que, de apáticos e indiferentes, se tornam operosos, recobrando a iniciativa perdida”.
Conforme se depreende do texto até aqui, Osório César usa uma conceituação própria dessa época a respeito de povos de tradição não europeia que eram considerados como “povos primitivos”, bem como formas de arte não europeia, com sendo “arte primitiva”. Tal conceituação era elaborada por forte influência da Teoria da Evolução sobre todas as esferas científicas e sociais e não apenas as biológicas. Observa-se também a referência e “reverência” feita por César a Pacheco e Silva, que viria a desenvolver, mais tarde estrito relacionamento com tendências conservadoras mais próximas de regimes ditatoriais. Portanto, devemos situar Osório César na ambientação de então, nos anos 1920.
Podemos observar já de início uma abertura do autor a uma visão mais ampla do doente psiquiátrico que ia além de uma caricaturização reducionista da condição desses indivíduos, dando a eles traços similares aos indivíduos considerados “normais”. A menção a Franco da Rocha indica a posição de destaque desse professor nesse momento.
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