A Expressão Artística nos Alienados – Osório César
Prefácio (escrito por Motta Filho em 12 de dezembro de 1927)
Na última visita que fiz ao Hospital de Juquery em companhia de Osório César, ao entrar no amplo vestíbulo encontrei, encostado a uma coluna, um rapaz alto, bem afeiçoado, de olhar melancólico, que observava atentamente as pessoas que entravam. Como ficasse sozinho no vestíbulo, ele aproximou-se de mim timidamente:
- O senhor é doente? Vai ficar internado?
- Não – respondi.
- ‘Me desculpe’; aqui não se distingue o louco do homem são. E, entre os médicos, há mais loucos de que entre os loucos.
Falava pausadamente. E, de vez, seus olhos claros e tranqüilos tomavam uma expressão de revolta. Era um demente precoce. Trabalhava obediente e ordeiro no serviço do Hospital.
À tarde, quando deixei o Hospital em demanda de S. Paulo, cortando de automóvel a colina verde e ondeante como um mar petrificado, fui trazendo comigo essa impressão desnorteante que me deram os infelizes insanos.
Havia naqueles desgraçados, incapazes de se amoldarem à vida em sociedade, um fundo comum a todos nós. Não fora só aquele louco que me confundira pela segurança e firmeza de raciocínio. A maioria dos internados tinha um grande fundo de humanidade, que me fazia pensar naquela grande verdade que alguém escrevera: “em cada um de nós há um louco adormecido”.
Este trabalho de Osório César, escrito com grande apuro científico e com a amenidade fascinante das obras de arte, veio sublinhar, com a autoridade de sua competência clínica, essa persistência robusta da humanidade nos entes mais desumanizados.
Afinal de contas há em todos nós um louco adormecido, assim como há em todo louco um homem adormecido. Machado de Assis, que sofria de ataques epilépticos e que, assim, vivia a despertar dentro de si o homem e o louco, criou a figura delirante e comocionalmente humana de Quincas Borba e escreveu “O Alienista” onde uma ironia dolorosa e amarga procura a linha divisória entre a normalidade e a loucura
A arte nos alienados, como estuda carinhosamente Osório César, é a revelação maravilhosa de que a humanidade, em sua proteiforme manifestação, é sempre inexoravelmente a mesma. A arte é então a grande unificadora da espiritualidade humana. Ela parte da profundidade do inconsciente e, descarregando a angústia que enche o nosso peito de homem civilizado, de homem equilibrado, faz rebrotar em nós aquilo que fomos, aquilo que as conveniências do momento recalcam – a crença, o primitivo, o selvagem.
O alienado, não possuindo o freio da normalidade, torna-se um ser à parte por isso mesmo, mas na arte, na arte que é a libertação para Goethe, que é a única flor para Schopenhauer – ele é tão humano, tão artista, como todos os homens, como todos os artistas.
Dante, exaltado, falando sozinho em altas vozes pelas ruas escuras de Florença, tinha voltado do Inferno. As matronas benziam-se quando o viam passar de longe. As crianças fugiam aterrorizadas. Era feiticeiro, era mago. Era louco. Era o grande louco que se exaltara ao extremo de escrever a “Divina Comédia”.
“Io son fatta da Dio, sua merce tale”
“Che la vostra miseria non mi tange”
“Ne fiamma desto incendio non m’assale” (Inf. II)
Louco fora Homero, loucos eram os artistas para as chacotas de Luciano; louco foi Milton e Cervantes foi louco; louco foi Camões explorando as suas próprias alucinações; louco foi Dostoievski que, como Dante, espantava a população tranquila de S. Petersburgo com seus gestos e parlandas; louco foi Balzac confundindo suas criações com a realidade; louco foi Maupassant que morreu louco. Louca foi a geração de artistas do século dezenove para a análise de Nordau, para a psicologia mórbida de Grasset...
Se, de fato, quiséssemos aqui fazer psicologia fácil, popular, escandalosa, acabaríamos por afirmar que todo artista é louco.
Mas não é. Nem todo artista é louco, como nem todo louco é artista. O que existe, de fato, é esse fundo comum, que é o espírito artístico que sempre se manifesta no homem; que nasce nas camadas profundas de seu inconsciente e transvasa para a vida como que aveludando a estrada daqueles que nasceram com o dom de não compreenderem a harmonia tranqüila da vida medíocre.
Aquele velho paranoico que faz no hospício versos ritmados e belos; aquele pobre pintor místico; aquele pobre demente precoce catatônico que faz desenhos quase que como sente e pensa, - são todos eles possuidores daquela mesmíssima emoção, daquele mesmíssimo sentimento que fez com que Michelangelo ferisse com seu martelo os joelhos de seu formidável Moisés.
Nunca em minha vida de artista e de estudioso encontrei uma definição de arte que me satisfizesse. Nem nas delineações aristotélicas nem depois que Baumgarten fundou a Estética. E isso porque, observando as formas mais rudimentares da arte, na cerâmica de Marajó, nos azulejos astecas, nos duendes (sic) dos primitivos africanos até nos monumentos assírios, nas funerárias dos egípcios, nos monumentos clássicos, nas catedrais góticas, nos monstros que espiam Paris do alto da Notre Dame, - penso que a arte despreza todas as definições pelo infinito mistério que contém em sua essência. Como o filósofo hindu, diante da lista das definições da vida, podemos nós, como ele, definir a arte: “nada disso”.
Mas se nunca chegaremos a bem caracterizar os elementos essenciais da arte – poesia, emoção, sentimento, forma, inquietação, ritmo, - é talvez porque seja ela a forma menos intelectual da psique humana.
Serviu-se, neste trabalho, Osório César da psicanálise para estudar a expressão artística nos alienados. Com efeito, Freud veio, com o seu método, esclarecer uma série de pontos escuros da Psicologia. Abriu o inconsciente fechado, de há muito, a sete chaves.
Mas o grande médico austríaco não está bem conhecido entre nós. Espanta os rotineiros e é explorado pelos pedantes das novidades livrescas.
Entretanto, por este trabalho de Osório César podemos, desde logo, avaliar a grandiosidade da conquista científica feita por Freud. No estudo das manifestações estéticas dos alienados, dirigido por um rigor custoso e paciente de um verdadeiro psicanalista que compreendeu bem a teoria freudiana em todas as suas formas, - nós encontramos, evidenciando-se, como um resultado de uma análise química, o fator inconsciente na vida afetiva e emocional da arte.
Freud conseguiu, com sua teoria, trazer à realidade, mas a uma realidade objetiva, o inconsciente que andava apenas como categoria filosófica nas metafísicas acadêmicas. Fixando a mecânica do espírito pelo estudo das neuroses e pela observação dos sonhos, ele alargou a sua conquista para terrenos amplos e desconhecidos. O homem, senhor de uma individualidade própria, com inclinações e tendências diversas que caracterizam o seu “eu” – é obrigado na vida social a recalcar dentro de si uma porção de desejos a fim de se harmonizar com os preconceitos e tabus da vida em comum. Esse recalcamento que se opera quotidianamente, transvasa-se por diversas válvulas psíquicas que possuímos, tais como o sonho e a arte que é um sonho acordado.
Não quero falar na origem das neuroses. Nem me sobra competência para tanto. Mas assinalo o papel que a arte desempenha na psicologia humana. Assim, sendo a arte um desabafo, um verdadeiro parto, na expressão romântica de Goethe, ela é essencialmente individual e pessoal, pode surgir, com toda a sua fascinação, com todas as suas galas e louçanias, tanto no homem normal como em um homem alienado, porque ela nasce no inconsciente, no instinto que são vivos em ambos. Tanto em um como em outro, a operação psíquica se dá. A arte se processa, tanto na normalidade, como na anormalidade, da mesma maneira.
Mas, em se tratando da psicanálise, estou certo de que Osório César vai enfrentar a hostilidade do cientificismo dominante.
Levará “bordoadas” como se diz na gíria. E eu, que prazenteiramente o acompanho, faço votos para que dessa luta o seu nome ganhe a vitória que tanto merece a sua honesta cultura e o seu formoso talento.
São Paulo, 12 de Dezembro de 1927.
Motta Filho
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