[devemos frisar que Osório César utiliza uma linguagem psiquiátrica
e artística da década de 1920 do século XX]
Pelo que
acabamos de ver, o louco não é um indivíduo desprezível que mereça desinteresse
da sociedade. Ele não é o homem que somente sabe dizer coisas engraçadas e
atrapalhadas como um palhaço de circo; que só faz má ação; que se enfurece por
“dá cá aquela palha”; que se zanga constantemente com todas as pessoas de casa
por ser contrariado nos seus desejos; que rasga a roupa, quebra os pratos e
bate nos pais e ameaça de morte os supostos inimigos. O louco, realmente, é
tudo isso. Dentro do seu mundo circundante e do seu eu interior, ele tem o seu
ponto de vista anormal. Fora daí, ele é um homem tão perfeito como qualquer
outro. Veste-se bem, come, dorme, trabalha quando quer, discute as suas ideias
e critica as alheias, diz “piadas” e produz, quando inspirado, obras de arte de
valor inestimável. São poetas, oradores, desenhistas uns, e pintores,
escultores, músicos, filósofos outros. E não se pense que a manifestação da
arte nos alienados sejam produtos de estereotipias, sem nenhuma emoção, sem nenhum
interesse, sem nenhuma significação, sem nenhuma finalidade. Longe disso. As
representações de arte desses doentes são todas emocionais, pois elas são de
caráter espontâneo e se dirigem para um fito único: a satisfação de uma
necessidade instintiva. Elas representam descargas acumuladas de emoções,
durante muito tempo no subconsciente adormecidas pela censura, em virtude de
certos impulsos de ordem moral.
É com carinho
que os doentes estilizam um motivo qualquer em desenhos decorativos e guardam
sempre consigo. Isso é comum, sobretudo, entre os dementes precoces
catatônicos, que dificilmente se separam de seus desenhos. Noutros, por
exemplo, na psicose maníaco-depressiva, em que as produções literárias são
abundantíssimas, eles distribuem com prazer os produtos de sua inspiração aos
que lhes são caros. Nós mesmos possuímos, na nossa coleção, cerca de 300
poesias de um desses doentes.
Como nos
indivíduos normais, a arte nos alienados também apresenta senões. Ora são erros
gramaticais, incoerência de ideias, ora são neologismos, saladas de palavras
etc., que deparamos nas suas composições literárias. Nas esculturas, nos
desenhos, ora são expressões deformadas, proporções exageradas, ora são falhas
de perspectivas e puerilidades. Mas, isso tudo é muito relativo. Para o nosso
sabor, a escultura de um africano é detestável, sob o ponto de vista estético,
da mesma maneira que a arte japonesa e arte dos índios norte-americanos.
Igualmente encaramos a arte do louco. Entretanto, a coisa em si é muito
diferente. Se deparamos, por exemplo, num poema de um esquizofrênico, vocábulos
deslocados e períodos sem sentido lógico e se os estudarmos pacientemente, à
luz da psicanálise, veremos esclarecidos, em grande parte, acontecimentos
remotos passados na vida do doente, que o subconsciente desalojou de sua
profundidade, vindo à tona, em forma de símbolos. O mesmo se dá com os seus
desenhos (veja figuras 47 a 49).
Fomos
obrigados, neste nosso modesto trabalho, a forjar uma classificação da arte nos
alienados. Somos inimigos de classificações. Achamos que todas elas pecam pela
base e que o seu valor é apenas de ocasião, didático. Apesar disso, tivemos
imperiosa necessidade de assim proceder, em vista do estudo comparativo que
propomos tentar entre a arte dos alienados, do homem primitivo, a arte
primitiva e a de vanguarda. Sem auxílio desse quadro, o nosso intento se
tornaria quase impossível. Portanto, a
classificação que fizemos foi apenas um arranjo esquemático para compreensão
clara de nossa exposição. Ela não constitui uma finalidade. Deve desaparecer.
Outro ponto que urge ser aqui bem explicado é
a distinção feita entre arte do primitivo e arte primitiva. Bem sabemos que
para muitos leitores essa separação não tem razão de ser. Mas, procuraremos
agora, tanto quanto possível, expor, em poucas palavras, o nosso ponto de vista.
Para nós, há
uma grande separação entre essas duas artes. Senão vejamos. No homem primitivo,
ela é representada por desenhos toscos, incompletos e caricaturais de animais
selvagens. Não há decorações de motivos vegetais. No sentido clássico de arte,
essa manifestação pictural do primitivo não é bem arte. Ela é antes uma
pré-arte. A arte primitiva é uma manifestação estética emocional, grosseira,
deformada e estilizada, com motivos animais e vegetais. Como exemplo, temos a
arte do século XII (Bizâncio), a gótica, a japonesa, a dos africanos e a dos
futuristas. Daí a nossa distinção.
Comparamos a
arte de certos alienados (dementes precoces catatônicos) com a dos homens
pré-históricos e com a criança de 4 a 6 anos (veja figuras 1 a 3). Supomos que
há uma profunda identidade entre a essência dessas artes. Dementes precoces
catatônicos há (constituem a maioria) que desenham como crianças de 4 a 6 anos.
Entretanto, esses indivíduos, quando normais, receberam boa instrução
intelectual. Após a doença e quando ela se adiantou, a inteligência dos
acontecimentos adquiridos desapareceu e ficou somente a inteligência do
primitivo, a instintiva. Houve processos de retrogradação. Daí o modo de
desenhar desses doentes, idêntico ao do homem das cavernas e ao das crianças de
4 a 6 anos. Nestas, a inteligência adquirida é ainda muito rudimentar para
poder abafar a inteligência do primitivo, que nessa idade (raras exceções,
Mozart, por exemplo), domina o espírito da criança, pelas manifestações
instintivas.
Vimos também
que certas manifestações artísticas (escultura, por exemplo, veja figuras 50,51)
de dementes precoces paranoides, se assemelham muito com as produções artísticas
primitivas, como sejam as esculturas africanas, as bizantinas e as do estilo
gótico (veja figuras 60 a 63).
Nesses
doentes, a inteligência dos acontecimentos adquiridos nos fica embotada, não
desaparece nem retrograda. Há aqui apenas parada na evolução da inteligência. O
indivíduo não aprende nada mais de novo. Fica estacionário (se a doença não evoluir
para a demência precoce catatônica, o que pode acontecer muito mais tarde).
Dessarte, o doente, com os conhecimentos adquiridos, formula uma série de
coisas absurdas (para nós, está claro) em torno de um fato muita vez banal,
trazendo alucinações, ideias delirantes de grandeza ou de perseguição. Vêm
disso criações fantásticas de sua imaginação, esculturas deformadas, desenhos
simbólicos etc.
Uma outra manifestação
de arte que encontramos nos alienados é a que comparamos com a arte comum. A
arte nesses doentes não oferece nenhuma modificação patológica. Embora o
psiquismo dos doentes se ache alterado, a sua arte é normal (certos
parafrênicos, veja figuras 36 a 40).
Finalmente,
estudamos um grupo de arte (comum em certas fases da demência precoce e da parafrenia)
que muito bem pode ser comparado com a arte de vanguarda.
Essa
manifestação artística é a mais frequente nos manicômios. Ela é, de todas, a
mais interessante. É calcada inteiramente em símbolos.
Nas mulheres,
o sentimento artístico não parece ser vulgar nos manicômios[1].
Nunca vimos literatas, escultoras e nem poetisas. A dança, entretanto, surge,
algumas vezes, entre as maníacas, com ritmo esquisito, mas cadenciado, e que dá
impressão de dança de selvagens.
Assim, pelo
estudo que acabamos de fazer, embora muito incompleto, sobre “A expressão artística
nos alienados: contribuição para o estudo dos símbolos na arte”. Observamos que
esses infelizes habitantes das “Casas de Orates” também possuem emoções, também
se preocupam com arte. Os símbolos de suas manifestações artísticas constituem,
como vimos, material precioso para estudo da gênese das psicoses. Os símbolos
entre os alienados representam o subconsciente revelado. Dessa maneira, explica
a teoria de Freud, a origem das neuroses. E, ao contrário do que pensa a
psicologia antiga, é ele absolutamente dinâmico.
Freud separa
do inconsciente o pré-consciente e o inconsciente propriamente dito. Daremos,
em seguida, a descrição dessa divisão, como a resumir o professor Franco da
Rocha, que é a mais clara e completa das que temos notícia.
“O psiquismo
inconsciente se divide em dois sistemas[2]:
1) – o inconsciente propriamente dito, cujos elementos, em número infinito, não
adquirem jamais a qualidade de consciente; 2) – o pré-consciente, constituído de
menor número de elementos, que podem, como os anteriores, influir sobre os
fenômenos de consciência e, mais ainda, suscetíveis de se tornarem conscientes”.
“O primeiro é
o mais vasto e o que se fixa, desde a infância, nas primeiras quadras da
existência. Aí estão as forças diretrizes do pensamento e dos atos: os instintos
e as mais fortes tendências do indivíduo. O segundo, muito mais limitado,
constitui uma zona limítrofe entre o inconsciente e o consciente; abrange todos
os fenômenos de distração, devaneio, inspiração, sonho noturno, que são
revelações subjetivas da realidade interna ignorada. São, como na flora dos
nossos campos, os ramúsculos, folhas e flores das árvores subterrâneas que as
constantes queimadas recalcam e obrigam a viver, como raízes, no subsolo”.
“Vê-se por aí
que Freud teve receio da linguagem comum da psicologia: evitou o termo
subconsciente e criou o pré-consciente para substituí-lo. Tem para isso suas
razões, embora admita todos os graus possíveis de transição entre o
inconsciente e o consciente”.
“Os elementos
do sistema II são sujeitos a instâncias deformadoras, isto é, a funções que
exercem uma espécie de crítica mental sobre aqueles que tendem a transpor o
limiar da consciência. O conjunto dessas funções, que se interpõe na zona ideal
entre o consciente e o inconsciente, e serve como de prisma para não deixar
passarem os elementos sem os ter primeiro deformado, chama-se censura. Esta é
uma força modificadora do nosso psiquismo, adquirida por meio da educação. Os
limites do pré-consciente marcam a zona de ação da censura, que, como um prisma
psíquico deformador, constitui um sistema de forças antagônicas em relação ao
sistema I de forças instintivas do indivíduo. Assim, variando seus limites de
influência, de acordo com as condições da cultura social, coletiva e
individual, ela circunscreve a personalidade do homem adulto e civilizado. A
censura age mais ou menos energicamente sobre a infinidade dos nossos
pensamentos, afrouxando de quando em quando sua ação, no correr de um devaneio,
por exemplo, para permitir a entrada no pré-consciente (por contrabando) de
alguns fragmentos do inconsciente colocado no limiar desse vasto sistema. Ele
se fortalece no decurso da vida individual e, no homem socialmente
aperfeiçoado, é o índice das coerções da moral e da ética”.
“A censura é
o primeiro elemento da instância consciente, como adaptação à vida social.
Apesar de serem os nossos pensamentos quase exclusivamente dirigidos pelo inconsciente,
a consciência, para Freud, posto que seja um órgão imperfeito de percepção, pode
modificar sensivelmente o curso dos fenômenos psíquicos, e é isso que distingue
o homem do animal. Ela age dando importância a alguns elementos, enfraquecendo
outros, fazendo, enfim, modificações na distribuição de sua carga afetiva,
prazer ou dor. Por meio da atenção, da vontade, da dialética, a consciência pode
trazer um certo grau de equilíbrio nessa distribuição de energia afetiva, de
modo a modificar os resultados das forças instintivas inconscientes. A cultura,
a pedagogia, a higiene moral podem, até certo ponto, alargar o campo de ação da
consciência. Do mesmo modo, a psicoterapia também age, canalizando e utilizando
num sentido racional as representações ou atos até então penosos ou inúteis ao
indivíduo. Para os adeptos da escola, é esse exatamente o resultado da
psicanálise”[3].
Assim, pelas
considerações que acabamos de ver, acerca do psiquismo inconsciente, a doutrina
de Freud veio revolucionar a psicologia, criando métodos originais para o verdadeiro
conhecimento dos fatos remotos da vida do indivíduo. E é principalmente por
intermédio dos sonhos, onde a simbologia freudiana se mostra de uma riqueza
insuperável, que a psicanálise vai buscar o grande material para o seu estudo.
Os símbolos são, em sua maioria, de significação sexual (veja página 33).
Nos alienados,
os símbolos gráficos têm o mesmo significado que os símbolos oníricos nos
indivíduos normais. “Nous pouvons[4],
par le symbole, comprendre les sentiments des aliénés même dans la démence precoce,
à condition de découvrir par la psychanalise la clef de leur simbolisme
particulier”.
“Grâce au
transfert des éléments affectifs de l’object à son symbole, si net dans le cas
de vénération fétichiste, le symbolisme permet une réalisation figurée des
déssins que les circonstances rendent irréalisables sans leur forme originale
et, par suíte, une certaine satisfaction. Le symbolisme comme une fonction
absolutement essentialle de notre esprit, peut s’exercer automatiquement et échapper
au controle de la conscience. Il donne un moyen de forcer la censure en vie de la
création d’um monde imaginaire qui réalise, sous des symboles non interprétés,
les dessins refoulés dans l’inconscient: tel est le cas de rêve”.
“A simbolização,
que é hoje a única linguagem do inconsciente dinâmico”, diz Franco da Rocha[5],
“já foi em épocas remotíssimas o único processo mental de nossos antepassados;
é uma sobrevivência da estrutura anacrônica do pensamento. O modo atual de
pensar não pode romper por encanto seus vínculos com o passado”[6].
[1]
Exceção feita, como vimos na página 66, de um demente precoce do Hospital de
Juqueri. Em todo caso, a cultura artística dessa doente já datava de muito
tempo antes de começada a psicose.
[2] Franco
da Rocha. O pansexualismo na doutrina de Freud. São Paulo, 1920.
[3] Obra
citada, páginas 7-10.
[4]
Laforgue-Allendy. La Psychanalyse et les nevroses. Payot, Paris, 1924, p. 184.
[5]
Obra citada, página 97.
[6]
“Na autobiografia de um paranoico instruído (mais propriamente parafrênicos)
julgou Freud ter encontrado as relações de ideias delirantes do paciente com as
criações mitológicas da humanidade de outras eras. Na obra de S. Reinach
(Cultos, Mitos e Religiões) achou ele um mito que explicaria os atos anormais
do alienado em questão, atos esses que não são raros nesses doentes, porquanto
os tenho observado em diversos dos meus pacientes. Tal é a fixação do olhar
contra o sol. Sempre supus que essa prática tivesse, talvez, por fim, remover
alucinações visuais. É possível que seja isto verdade, o que não exclui a
interpretação de Freud, contra a qual não tenho objeção séria. Eis o mito: os
antigos naturalistas diziam que só as águias, como habitantes das mais altas
camadas do ar, tinham íntimas relações com o sol, o céu e o raio. E mais, que
as águias submetiam seus filhos a uma prova de origem: obrigavam-nos a encarar
o sol antes de serem reconhecidos como legítimos. Se não podiam encarar o astro
sem piscar, eram lançados fora do ninho. O doente de Freud gabava-se de ser
descendente da mais alta nobreza celeste. Dizendo que podia encarar o sol
impunemente, sem ser ofuscado, não fazia ele mais do que repetir uma expressão
mitológica, para firmar suas relações com o sol, de acordo com o seu delírio de
grandeza. É perfeitamente possível que assim seja”. (S. Freud.
Psychoanalystiche Bemerkungen uber einen Fall von Paranoia. Neurosenlehre,
1913) citado por Franco da Rocha, às páginas 97-98.
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