Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Capítulo 1 – Parte 12 – A expressão artística nos alienados


...continuação do texto...

Entre as tribos australianas, as canções são simples, muito curtas e encerram, como em todos os primitivos, uma filosofia ingênua.
Elas são ordinariamente acompanhadas de uma música monótona, cuja tonalidade grave é repetida pelo cantor durante horas inteiras.
Os australianos acompanham suas canções com um instrumento de música chamada Boorla, que produz sons graves e que “muito se assemelham ao barulho do vento nos eucaliptos” (2*).
As danças nativas têm músicas características, cujo ritmo regula os movimentos dos dançadores.
A composição poética abaixo é a de um canto breve dos naturais do oeste (3); ela é modulada como uma ária selvagem e se refere a um ato de vingança comemorando uma data remota, por um nativo de nome Warbunga:

Kad – já bar dook                  Ta hache de guerre est là
War bunga  loo                      O Warbunga
War bunga la,                        O Warbunga
Kad – ja bar dook                  Ta hache de guerre est là,
War bunga loo,                      O Warbunga
Narra dau – na,                      Prends – la et frappe,
War bunga la, etc.                O Warbunga, etc. (1*)

Um outro canto australiano, muito interessante pela sua ingenuidade, é o canto das raparigas, à noitinha, quando as estrelas começam a aparecer.
Vejamos o poema no original e a tradução de Perron D’Arc (2**).

                              Une voix.

Djal – lo lya lana?               Irons – nous à la danse?
Djal – lo lya lana?               Irons – nous à la danse?

                               Choeur.

Mongada, Mongada          Allons. Allons.
Mongada, Mongada          Allons. Allons.

                            Une voix.

Djal – lo iouls lana?            Ala danse et aux chansons?
Djal – lo iouls lana?            Ala danse et aux chansons?

                             Choeur

Wonga – da. Wonjada       Courons. Courons.
Wonga – da. Wonjada       Courons. Courons.

Ao mesmo tempo que eles cantam essa canção batem com as mãos para marcar o ritmo do canto.
Os viajantes observadores que relatam os costumes da vida dos habitantes da África ocidental, quando se referem à arte e à literatura desse povo, consideram os seus poemas como admiráveis obras literárias.
Vamos ver um dos cantos mais interessantes da literatura dos  negros da África Ocidental, que transcrevemos para aqui do livro de Pierre Bouche (1**).

A ONÇA E O MACACO (2***)

“Escute a aventura da onça.
Um dia a onça, de tanto caçar sem proveito, fatigou-se. Cansada ela sentou-se. Mas os piolhos não a deixavam repousar.
Vê passar um macaco; chama-o, pedindo que lhe cate. Enquanto o macaco lhe cata ela adormece. Então o macaco segura a cauda da onça, amarra numa árvore e vai-se embora.
A onça acorda; quer levantar-se mas está presa pela cauda. Em vão se esforça para soltar-se; não o pode fazer; ela fica ofegante.
Aparece um caramujo. – ‘Por favor, desprende-me a cauda’, clama ela logo que o avista.
- ‘Não me matarás, na verdade, se te solto?’ retrucou o caramujo.
- ‘Certamente, eu não te farei nada’, disse a onça.
- O caramujo solta a onça. Esta vai para casa  e fala a todos animais:
‘Quando chegar o 5º dia, anunciem que morri e que vão me enterrar’.
Todos os animais disseram: está bem.
E no 5º dia, a onça está deitada, fingindo-se de morta. E todos os animais chegaram, e todos dançaram em torno dela, dançaram... A onça de repente se levanta, salta para derrubar o macaco. Mas o macaco fugiu, saltou para uma árvore.
Assim, não pense que o macaco fique na terra: ele tem muito medo da onça”.
Como acabamos de ver, é uma história muito singela, movimentada, que pode despertar grande interesse à literatura infantil.

Notas:

2* – H. Perron D’Arc – Aventures d’un voyageur en Australie, 2ª édit. Hachette, pag. 247-250, 1870. 

1* - H. Perron D’Arc. Obr. Cit. Conservamos a tradução de Perron D’Arc.

2** - Obra cit. pag. 250. 

1** - La côté des esclaves et le Dahomey, pag 221, Plon. Paris, 1885.

2*** - A tradução é nossa. Esforçamo-nos por traduzir o mais claro possível, a fim de conseguirmos toda a simplicidade do original francês, tal como devem ser os poemas e os contos primitivos. 


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Capítulo 1 – Parte 11 – A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

Quanto aos poemas dos alienados, os seus versos são ora ternos, cheios de um lirismo encantador; ora são satíricos, picantes, e ora de uma prolixidade enervante, como veremos mais adiante. Igualmente, encontramos nos poemas dos selvagens da América do Sul, nos das tribos australianas e nos negros centro-africanos a mesma intenção lírica, o mesmo estilo daqueles poemas.
Entre os poemas heroicos dos índios da América do Sul transcrevemos para aqui o Iatokê, poema dos índios Parecis (1) da serra do Norte, cuja beleza está na simplicidade da descrição.
O poema Iatokê (2) celebra o “salto” do rio Jurema, que os Parecis, numa antiga luta, conquistaram aos Uaikoakorê. Kamaizokolá é o nome do referido salto:

IATOKÊ                                                IATOKÊ (tradução)

Natiô atiô kamaizokolá                   Meu nome é kamaizocolá
Natiô atiô ualokomá atiô                Eu sou o mesmo ualokoná
Natiô kamaizokolá                          Meu nome é kamaizocolá
Nêê-êná êmá makoé etá                Nenhum homem se banha aqui,
Nêê-êná kamaizocolá                     Eu sou kamaizocolá
Oné nauê kotá zanezá                    Este rio bom é o maior de todos
Nêê atiô kamaizocolá.                    Meu nome é kamaizocolá.

Uma lenda muito curiosa dos Parecis é Ualalocê, cuja música reproduzimos na figura 35.


UALALOCÊ

Akutiá – han, nohin ôkerê
Ulkuman uizoná nêtéu
Ukuialaná kamalalô
Niáhaká nokin-ê kamalalô
Motiá saiá Arité okanatiô
Kozákitá kôlôhôn unitá nêtêu
Niahaká akaterê kerarê
Estribilho
Há! Há! Noáianauê! Uh!

Segundo a tradução de Roquete Pinto (obra cit. pag.132) o “Ualalocê” narra um episódio  da vida de um índio kamalalô.
“Indo passar na floresta, viu um homem trepado num pé de tarumá, supondo que fosse um índio, disse-lhe:
- Ariti, dá-me uma fruta de tarumá?
E o homem respondeu:
- Kamalalô pensa que eu sou Ariti. Eu sou ‘pai do mato’...”

Vejamos agora uma das mais belas lendas tapuias dos nossos sertões:

MAI PITUNA OIUGUARE âNA (1*)
(Como a noite apareceu)

“No princípio não havia noite – dia somente havia em todo tempo.
A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais; todas as coisas falavam.
A filha da cobra grande, contam, casara-se com um moço.
Este moço tinha três fâmulos fieis. Um dia ele chamou os três fâmulos e lhes disse: - Ide passear porque minha mulher não quer dormir comigo.
Os fâmulos foram-se e então ele chamou sua mulher para dormir com ele.
A filha da cobra grande respondeu-lhe: - Ainda não é noite.
O moço disse-lhe: - Não há noite; somente dia.
A moça falou: - Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo, vamos buscá-la lá, pelo grande rio.
O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os a casa de seu pai para trazerem um caroço de tucumã.
Os fâmulos foram, chegaram em casa da cobra grande, esta lhes deu um caroço de tucumã bem fechado e disse-lhes: - Aqui está, levai-o. Ei-o! Não o abrais, senão todas as coisas se perderão.
Os fâmulos foram, e estavam ouvindo barulho dentro do coco de tucumã assim: ten, ten, ten, ... Xi... (1**) era o ruído dos grilos e dos sapinhos que cantam de noite.
Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a seus companheiros: vamos ver que barulho é este?
O piloto disse: - Não; do contrário nos perderemos. Vamos embora, eia, rema.
Eles foram e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tacumã e não sabiam que barulho era.
Quando estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco e o abriram. De repente tudo escureceu.
O piloto então disse: - Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa já sabe que nós abrimos o coco de tucumã; eles seguiram viagem.
A moça, em sua casa, disse então a seu marido: Eles soltaram a noite, vamos esperar a manhã.
Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque se transformaram em animais e em pássaros.
As coisas que estavam espalhadas pelo rio se transformaram em patos e peixes. Do paneiro gerou-se a Onça; o pescador e sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e o bico de pato; da canoa, o corpo do pato; dos remos, as pernas do pato.
A filha da cobra grande, quando viu a estrela d’alva, disse a seu marido: - A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da noite.
E então ela enrolou num fio e disse-lhe: - Tu será cujubin.
Assim ele fez o cujubin, pintou a cabeça do cujubin de branco, com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho, com urucu, e então disse-lhe: - Cantarás para todo o sempre quando a manhã vier raiando.
Ela enrolou o fio, sacudiu  cinza em cima dele e disse: - Tu serás inhambu, para cantar nos diversos tempos da noite e da madrugada.
De então para cá todos os pássaros cantaram em seus tempos e de madrugada para alegrar o princípio do dia.
Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes: - Não fostes fieis: - abriram o caroço de tucumã, soltaram a noite e todas as coisas se perderam, e vós também que vos metamorfoseastes em macacos, andareis para todo sempre pelos galhos dos paus".

(A boca preta e a risca amarela que eles têm no braço dizem que é o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã que escorreu sobre eles quando o derreteram) (1***).

Notas:

1 – Os índios Parecis, segundo Roquete Pinto, representam, neste momento, a mais interessante população selvagem do mundo.

2 – Tradução de Roquete Pinto. Obra cit. Pag. 133.

1* - Couto de Magalhães. O selvagem, pag. 162.

1** - Quando os selvagens narram esta parte, imitam o zumbido dos insetos que cantam à noite (nota de Couto de Magalhães, obra cit.)

1*** - Nota de Couto de Magalhães. Obra citada.

Adendo:

Comentário de Couto de Magalhães, situado nas páginas 162 e 163 do livro “O Selvagem” de 1876, a respeito dessa lenda por ele referida:

“Esta lenda é provavelmente um fragmento do Gênesis dos antigos selvagens sul- americanos. É talvez o eco degradado e corrompido das crenças que eles tinham, do como se formou esta ordem de coisas no meio da qual vivemos, e, despida das formas grosseiras com que provavelmente as vestiram as avós e as amas de leite, ela mostra que por toda parte o homem se propôs resolver esse problema – de onde é que nós viemos? Aqui, como nos Vedas, como no Gênesis, a questão no fundo é resolvida pela mesma forma, isto é: no princípio eram todos felizes; uma desobediência num episódio de amor, uma fruta proibida, trouxe a degradação. A lenda é em resumo a seguinte: no princípio não havia distinção entre os animais, o homem e as plantas; tudo falava. Também não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não quis coabitar com o seu marido enquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim como havia no fundo das águas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi remetida encerrada dentro de um caroço de tucumã, bem cerrado, com proibição expressa aos condutores de que o abrissem, pena de perderem-se a si e a seus descendentes, e a todas as coisas. A princípio resistem à tentação, mas depois, a curiosidade de saber o que havia dentro da fruta os fez violar a proibição, e assim se perderam. Substituindo a fruta de tucumã pela árvore proibida, a curiosidade de saber pela tentação do espírito maligno, parece-me haver no fundo do episódio tanta semelhança com o pensamento asiático, que vacilo e pergunto se não será um eco degradado e transformado desse pensamento”. 


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Capítulo 1 – Parte 10 – A expressão artística nos alienados


...continuação do texto...

Confrontando-se, por exemplo, a escultura reproduzida na figura 31, arte de um africano (1), com a escultura da figura 50, arte de um demente paranoide, ver-se-á um idêntico princípio, uma estreita afinidade estética plasmada nessas duas artes.
O sentido da forma que o artista africano altera para nossos olhos, entalhando na madeira ou esculpindo na pedra suas estátuas com músculos deformados, é para a visão dele uma atitude estética natural. A sua arte não tem regras, não tem dogmas que a escravize. É sentimento que respira acima de tudo. É estranho realismo subjetivado. Por isso o artista somente compreende a beleza nesse modo representativo de deformidades. E, com a mesma mentalidade do artista africano, também julga a beleza o paranoide artista, quando modela em barro a sua estátua de fisionomia extravagante e de membros desproporcionados. Para esses artistas independentes, a arte representa a sublimação de um pensamento, de um ideal, materializado simbolicamente num pedaço de madeira ou num bloco de argila.
Os desenhos de animais têm todos uma feição grotesca e são estilizados com riscos paralelos e linhas quebradas, que lhes dão um cunho especial (fig. 33, 34). Esses desenhos mostram algumas analogias com os dos índios atuais do Brasil.
“Os desenhos dos índios da serra do Norte”, diz Roquette Pinto (Rondônia, pag, 258), “embora elementar, já apresentam alguns motivos interessantes, tirados da imitação das formas animais”.
“A circunferência, o triângulo, o quadrado aparecem desenhados em negro na superfície de algumas cuias”.
“Cobras e sáurios acham-se, às vezes, representados nos seus traços essenciais”.

Nota do texto:
1 – A escultura africana, pela sua naturalidade impressionista, tem sido modernamente motivo de real admiração por parte de muitos autores:
“...la sculpture africane”, diz Einstein (La Sculpture Africane. Trad. Franç. Pag.7, Paris, 1922), “presente des solutions cubiques d’une purété et d’une logique qu’on trouve rarement ailleurs. Elle cherche à résoudre les problèmes de concentration et de liason dans l’espace, et c’est de la sculpture égyptienne qu’elle as rapproche le plus dans à domaine”.
Como a arte egipciana, a arte africana, diz ainda o mesmo autor (obra cit. pag. 13), tem suas raízes no culto dos mortos, - o culto dos antepassados. A religião é o elemento preponderante de toda a produção artística dos negros.
A arte dos primitivos apresenta nos nossos tempos uma significação intelectual muito elevada. Ela tem sido a fonte de todo esse novo movimento escultórico da arte moderna. E tanto é assim que alguns críticos de arte não consideram mais a arte africana como sendo uma arte primitiva. Einstein, no seu livro citado, à pag. 8, se exprime deste modo a esse respeito:
“...l’art africaine nous révèle des nuances tout aussi finement marquees, et il faut pas se laisser induire en erreur par cette stéreotypée: l’art primitif des peuples sauvages”.

Comentários sobre o texto: 
1 - observa-se nessa menção bibliográfica de Osório Cesar já uma tendência, em 1922 (data da referência), de deixar-se de considerar a arte de povos nativos, de regiões tidas como selvagens, como uma arte “primitiva”.
2 - o autor "Einstein" mencionado na bibliografia é Carl Einstein (1885-1940), crítico de arte e estudioso de história da arte alemão que conviveu com importantes artistas e estudiosos da arte do início do século XX. Foi grande estudioso da arte africana. Aderiu a tendências políticas de esquerda europeias de seu tempo.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Capítulo 1 - Parte 9 - A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

No segundo grupo de nossa classificação estão os desenhos, as esculturas, as poesias, as músicas e as danças. As artes deste grupo poderemos comparar, dadas as semelhanças flagrantes que notamos nas suas confecções, com as artes primitivas, como sejam as dos índios de Marajó (1), as japonesas, as do século XII, a gótica e as dos negros centro-africanos (figuras 22 a 31).

Correspondente ao número (1) do texto há uma longa nota que segue abaixo:

1-
Na sua viagem ao Amazonas, em 1879, professor Hardt (Archivos do Museu Nacional. Vol. VI, 1885. "A origem da arte ou a evolução da ornamentação", pag. 95) teve conhecimento de que, numa pequena ilha chamada Pacoval, no lago Arary, situada na ilha de Marajó, existia um Túmulo dos antigos habitantes do lugar.
Examinando o Túmulo, dele se retiraram urnas funerárias, ídolos e outros objetos de terra cozida. “Muitos destes objetos”, diz o professor Hardt, “traziam ornamentos e fiquei realmente surpreendido ao ver nesta antiga louça amazônica, gregas espirais e outros ornamentos perfeitamente idênticos a algumas formas clássicas e da Grécia. O túmulo era antigo e a associação de objetos que continha, concordando com o que se acha nos túmulos norte-americanos, não oferece prova nenhuma de que os fabricantes de louça do Pacoval conheciam a arte na Europa”.
“Continuando as minhas investigações”, prossegue Hardt, “descobri que estes mesmos ornamentos se acham distribuídos por todo o mundo, mesmo entre povos de uma cultura muito baixa, e que formam parte da arte primitiva. Lembrei-me de que o homem em todo o mundo, tendo a mesma organização física e estando em contato com a mesma natureza, desenvolve-se segundo as mesmas leis, e que armas, invenções, modos de pensar, regras de construção das línguas, até mitos e ideias religiosas facilmente se desenvolvem independentemente entre povos longínquos. As necessidades do homem primitivo em todos os países são as mesmas, e é perfeitamente natural empregar independentemente métodos idênticos de satisfazê-los”.
Hardt encontrou na louça dos antigos índios de Marajó uma forma decorativa grega de um dos mais belos ornatos estéticos conhecidos, que se acha espalhado em todo o mundo. E até hoje, sustenta este autor, dentro das matas do Amazonas e do Orenoco, as mulheres gostam de pintá-lo nos seus “Camutis”. Também se encontra, comumente, nas louças dos índios do Brasil e do Peru, um desenho ornamental característico dos vasos Etruscos.
Uma das coisas que mais nos chamam a atenção na arte dos primitivos selvagens do Brasil é a ausência completa de ornamentações vegetais. Assim, nos utensílios encontrados em Marajó, os temas de estilizações estéticas são exclusivamente tomados do reino animal.
“É fato interessante que”, diz Hardt (obra cit.pag. 107), “ao passo que o homem e diversos animais são representados em relevo na louça de Marajó, é raro que sejam desenhados sobre uma superfície plana. A artista índia sabia bem a arte de modelar e era perita na ornamentação por meio de linhas simples, mas não se tinha adiantado na arte imitativa do desenho. Nenhuma folha, flor ou fruto é representado na louça antiga do Amazonas ou em relevo ou sobre uma superfície plana. Parece singular que, habitando uma região em que o reino vegetal oferece formas belas, o artista não escolhesse nenhuma destas para a ornamentação”.
Também estudaram a arte de Marajó, Ferreira Penna, Derbey e Ladislau Netto (Archivos do Museu Nacional. Vol. VI, 1885. “Investigações sobre a Archeologia Brasileira, pag. 317).
“Entre as preciosidades que havemos exumado”, diz Ladislau Netto, “os Snrs. Ferreira Penna e Derby, a princípio, e eu por último, do solo de Marajó, sobressaem algumas figuras de terra cotta, que nada mais nem menos são, segundo presumo, que os deuses penates dos construtores dos mundos daquela ilha; imagens que adoravam também os índios do Maranhão, de Pernambuco e de outras províncias do Brasil, assim como muitos outros povos da América. São estatuetas a que, na falta de melhor nome dei o nome de ídolos. Representam homens e mulheres, mas raras vezes sem alguma particularidade convencional, uma monstruosidade qualquer, ou na deformação da cabeça e da face, ou na supressão dos braços e pernas ou nas protuberâncias dorsais e torácicas próprias dos corcundas”. E mais adiante continua: “A estatueta mais distinta e ao mesmo tempo mais expressiva desta espécie, é a que figura uma espécie de polichinelo, de fisionomia chinesa, com a dupla tuberância torácica e dorsal do corcundismo. Esta estatueta, que eu mesmo desenhei sobre o bloco de madeira em que devia ser gravada, a fim de conservar-lhe todos os seus traços característicos, é um primor de expressão e de naturalidade, ainda que me pareça muito difícil afirmar se as saliências que aí figurei por malares assim devem ser considerados ou por olhos com mais razão havida (obra cit. Pag. 324)”.   
As representações zoomorfas na arte dos antigos habitantes de Marajó são mais bem estilizadas e de uma beleza esquisita. A reprodução que damos aqui (veja fig. 21) apresenta uma curiosa idealização zoomorfa, com dupla cabeça e dualidade simulada no próprio corpo do animal metaforicamente figurado.
“Este animal emblemático e um tanto enigmático”, diz Ladislau Netto, tem alguma coisa que relembra o símbolo chinês cheu ou chi, imagem da longevidade, a qual, segundo tradições e livros sagrados da China, foi criada ou inventada pelo famoso Fo-Hi, o Faramundo chinês a quem se deve a organização política do Celeste Império, cerca de 3.000 anos antes da era cristã e a quem esse símbolo divino, conforme o dizer das lendas asiáticas, foi revelado por um cavalo sagrado (obra cit. Pag. 244)”.
Como vimos, é por demais curiosa a semelhança das decorações desses objetos da arte cerâmica dos antigos índios do Brasil com as decorações e relevos das arte orientais e primitivas de toda a Europa. Na maioria dos vasos de Pacoval, estudados por Ladislau Netto, encontramos emblemas gravados exteriormente, que nos lembram motivos jônicos e também um pouco do misticismo Báltico. Isto nos faz pensar com a maioria dos autores, que os primeiros habitantes do Continente Americano foram representantes de uma raça desconhecida, emigrada do velho mundo, cujo sentimento artístico, muito desenvolvido, deixou traços patentes de sua passagem no Continente, como prova a arte antiga de Marajó. Essa gente, que mostra haver formado uma civilização adiantada – haja vista os monumentos do antigo México – desapareceu sem se saber como.
Henry Schoolcraft (Historial and statistical information, respecting the history, traditions and prospects of the Indian Tribus of the United States. Philadelphia, ano) considera os indígenas Americanos como destroços ou restos de diferentes raças, o que até certo ponto justifica, no dizer dele, as tradições dos povos americanos, que os representam vindos por mar para a América.
Quanto à veracidade deste pensar, até a presente data, ainda não estamos bem aparelhados, ou melhor, suficientemente armados para desvendarmos o mistério que ainda nos envolve. Entretanto, não parece de toda destituída de fundamento a hipótese de Schoolcraft.   


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Capítulo 1 – Parte 8 – A expressão artística nos alienados


continuação do texto...

“O homem primitivo”, diz Worringer (1), “por sua livre atividade psíquica, cria símbolos de necessidade nas formas geométricas ou estereogeométricas. Aturdido e aterrado pela vida, procura o inanimado, o que não tem vida, porque nele vê eliminada a inquietude do futuro e afirmada a fixação perdurável. Criar arte significa para o homem primitivo iludir a vida e seus caprichos, fixar na intuição algo permanente que transcende dos fenômenos e onde fica superada a caprichosidade e a mutabilidade dos fenômenos. Parte, pois, da linha rígida, em sua essencialidade abstrata e inanimada, sentindo obscuramente seu valor próprio, inexpressivo – isto é, livre de toda representação vital – como parte de uma regularidade inorgânica superior a todo vivente. Nela encontra o homem primitivo – torturado pela caprichosidade da vida, e portanto da mutação – paz e sossego, porque ela é para ele a única expressão intuitiva do inanimado, do absoluto. Assim, o primitivo persegue as restantes possibilidades geométricas da linha, cria triângulos, quadrados, círculos, ressalta igualdades, descobre a regularidade e em suma, produz uma ornamentação que representa para ele não só o gozo do adorno e do brinquedo, senão uma tábua de valores que simbolizam a necessidade e, portanto, satisfazem as profundas aspirações de sua alma”.
O que acabamos de ver com relação à arte dos povos primitivos tem uma significação bem patente no que diz respeito à arte atual.
O homem primitivo nasceu profundamente supersticioso. Todos os fenômenos da natureza que ele observa têm uma expressão de terror manifesta na sua estreita mentalidade. Dessa maneira ele interpreta o trovão, o raio e as chuvas copiosas. Vem daí, talvez, a necessidade da criação do símbolo – origem da arte – para amenizar esse primeiro sofrer, representando já o esboço de uma filosofia elementar da vida. E essa filosofia é uma religião, como se verifica com os totens e tabus (2).

Citações do texto:
1 – La esencia del Estilo Gótico. Trad. Hesp. Pag. 29. Madrid, 1925.
2 – Tabu: palavra polinésia que tem duas significações opostas: 1) sagrado, consagrado; 2) inquietante, perigoso, impuro. Freud analisa o problema pela psicanálise, isto é, com os dados fornecidos pelo exame da parte inconsciente de nossa vida psíquica. O processo do tabu se assemelha ao processo das proibições obsessionais entre os nervosos. A proibição principal, tanto entre os nervosos como no tabu – é o delírio de tocar. – Um homem que se comunica a um tabu, torna-se tabu (pg 51). O tabu manifesta-se nas sociedades contemporâneas. A condição de “homem livre” caracteriza e dá ideia do tabu selvagem, “o tabu dos senhores” (pg.62) – vivem os senhores de certas monarquias dependentes exclusivamente de seus súditos. Hoje adorado como Deus, pode ser morto amanhã como criminoso. Mas nós não temos o direito de ver nesta mudança de atitude de um povo uma prova de inconstância ou uma contradição; bem ao contrário; o povo permanece lógico até o fim (pg. 66). O tabu é uma fórmula social de tendência sexual, que é também o traço característico da nevrose (pg. 104). S. Freud. Totem e Tabu, Payot, Paris.

...continuando o texto...

A arte de hoje tem as suas raízes extensamente ligadas na do primitivo. Cada dia ela vai caminhando para essas representações primitivas, que são simbólicas, constituídas por linhas curvas, quebradas e simétricas, produzindo uma atitude mental materializada em forma grosseira, deformação da natureza, justamente como a arte do primitivo, que traduz sentimento e uma expressão da vida mais consoladora e humana.
“Na vida intelectual do culto moderno”, diz Lafora (1), “podemos surpreender constantemente intenções e volta aos períodos primitivos da vida humana. Nos sonhos hipnóticos, no pensamento esquizoide e na criação artística, vemos analogias extraordinárias com a vida mental das civilizações primitivas e com as da evolução mental da criança”.
“Na vida mental podemos dizer que existe uma ontogenia ou evolução individual, que reproduz as fases da filogenia, ou evolução da espécie, isto é, que a evolução mental do homem desde as raças primitivas até as organizações humanas modernas, e assim como na constituição anatômica do cérebro humano encontramos regiões semelhantes às dos inferiores da série animal ,e outras regiões de estatura superior peculiares do homem, assim também nas funções mentais do cérebro, podemos supor que há regiões de onde surgem as ideias primitivas e inferiores herdadas da série animal, que originam os mecanismos mentais primordiais, e outras regiões de onde assentam as ordenadas funções conscientes e elevadas do homem progressivo moderno”.

Citação do texto:
1 – Estudio psicológico del cubismo y expressionismo, Arquivos de Neurologia, tomo III, Nº 2, pag. 121.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Capítulo 1 - Parte 7 - A expressão artística nos alienados


Continuação do texto...

Entre as crianças anormais o estudo dos desenhos tem particular significação para interpretações das psicoses de fundo sexual. São simples os desenhos dessas crianças e pouca diferença fazem dos desenhos dos escolares normais.
Fizemos o estudo das representações gráficas dos anormais do Pavilhão de Menores do Hospital do Juquery e chegamos à seguinte conclusão:
Entre 30 doentes, apenas conseguimos que 10 desenhassem, espontaneamente, sem modelo.
Esses desenhos são assim distribuídos:
1) R., de 21 anos, imbecilidade, desenhos de figuras humanas muito mal representadas (fig.12) idênticos ao de uma criança anormal de 4 anos.
2) B., 12 anos, imbecilidade, desenho sem forma bem caracterizada. Tem vaga aparência de uma representação animal (fig.13).
3) J., 14 anos, psicose epiléptica, desenho de figura humana, melhor caracterizado do que os anteriores (fig. 14). Os cinco riscos embaixo e de cada lado da figura representam dedos. Em cima da cabeça, a bola do meio representa o cabelo e os dois pequenos pontos, ao lado, piolhos.
4) V., 14 anos, psicose epiléptica, desenho regularmente acabado de uma figura humana (fig. 15). Como o anterior, este pode ser comparado ao de uma criança normal de 5 anos.
5) S., 15 anos, psicose maníaco-depressiva, desenho regular, mostrando uma figura humana vestida e uma casa com duas janelas e uma porta (fig. 16). Igualmente como o anterior, pode ser comparado a desenhos de crianças normais de 6 a 7 anos.
6) R., 12 anos, nevropata (encefalopatia infantil) desenho de um navio, mais ou menos bem feito (fig. 17). 
7) A., 15 anos, imbecilidade, nunca aprendeu a ler nem escrever. Desenho de riscos desordenados e em espirais, sem nenhuma significação pictórica (fig. 18).
8) J., 11 anos, imbecilidade, nunca aprendeu a ler nem a escrever. Desenhos de riscos esféricos e desordenados, sem significação pictórica (fig. 19).
Os dos últimos menores, também imbecis e analfabetos, fizeram rabiscos desordenados, como os anteriores.
Os 20 restantes anormais, imbecilizados em grau avançado, foram incapazes de produzir qualquer desenho por mais simples que fosse.
Os que desenharam as suas produções gráficas espontâneas, como vimos, foram formas humanas. As representações de origem vegetal (flores, frutos, etc) não verificamos em nenhum desses desenhos. Também não encontramos figuras obscenas nas garatujas desses pequenos anormais. 
É bem curiosa a semelhança que existe entre essas artes. Também não ficaria mal se colocássemos aqui a arte futurista. 
Por isso é que “nas realizações preconcebidas, nas intenções sistematizadas”, diz Porciúncula Moraes, “o novo, em arte, tem mais de três mil anos”.
“Aceitando que cada artista vê o mundo a seu modo, procurando, portanto, formas estranhas, formas originais para expressar novas sensações, é levado assim a nos dar o novo verdadeiro, o novo legítimo, o novo atualíssimo, que é o pessoal. Donde se conclui que a arte das crianças (podemos também acrescentar  –  dos primitivos e dos alienados) é nova novíssima. Como a maioria delas despreza a terceira dimensão, essa maioria se manifesta francamente futurista”.





quinta-feira, 5 de julho de 2012

Capítulo 1 – Parte 6 – A expressão artística dos alienados


Continua o texto...

A arte na criança apresenta o mesmo caráter simbólico e representativo da arte do primitivo. Ela é simples e desprovida em grande parte de fantasia.
A imaginação da criança, como a do primitivo, é realista em extremo. Os seus desenhos se limitam em arremedar a natureza com representações de cenas da vida diária.
De 3 a 7 anos os desenhos desses pequenos observadores se resumem em rabiscos com aparências de animais e na maioria com forma humana. Em grande parte são desenhos muito simples e despidos de decoração.
Após os 10 anos é que se verificam, principalmente nos meninos, desenhos de flores e frutos, bem cuidados e com esmero decorativo. Assemelham-se muito os desenhos de crianças com os das raças primitivas e com os desenhos dos alienados, principalmente os dos dementes precoces.
“Na primeira e na segunda infância”, diz Spencer (1), “verifica-se uma absorção de sensações semelhantes à que caracteriza o selvagem”.
“A criança que destrói os seus brinquedos, que fabrica figurinhas com terras, que dirige seus olhos para todas as coisas e pessoas, dá provas de muita perceptividade e de uma reflexão relativamente débil. A mesma analogia existe na tendência à imitação. As crianças repetem em seus brinquedos cenas da vida dos adultos e dos selvagens e, entre outros atos de imitação, repetem as ações de seus hóspedes civilizados.”
“O espírito da criança carece da faculdade de distinguir entre os fatos inúteis e úteis; o mesmo acontece ao selvagem”.
Mais adiante continua Spencer: “A criança de nossa raça é como o selvagem, incapaz de concentrar sua atenção em algo complexo ou abstrato. O espírito da criança, como o do selvagem, não tarda em divagar por puro esgotamento, quando tem que se ocupar de generalidades e de proposições complicadas. Tanto num como noutro, são débeis as faculdades intelectuais superiores; é claro que precisam ideias que se não compreendem senão mediante concurso dessas faculdades, e se possuem algumas são muito poucas. As crianças, como os selvagens, têm em suas línguas algumas palavras de abstração menos elevadas e não têm nenhuma das mais elevadas. Desde cedo a criança sabe muito bem o que é cachorro, gato, cavalo, boi; mas não possui nenhuma ideia do animal, independentemente da espécie; passam-se anos sem que o abstrato entre em seu vocabulário. Assim, tanto na criança como no selvagem, faltam os mesmos instrumentos de um pensamento desenvolvido”.
Nos primeiros meses de idade, o que mais impressiona a sensibilidade da criança é o barulho, são os objetos brilhantes e as cores muito vivas (o vermelho, por exemplo). É a primeira manifestação de arte que a criança experimenta. Depois de um ano, mais ou menos, é que começa a aparecer uma certa afinidade pela música e sobretudo pelo desenho. Este tem agora a sua primeira manifestação caracterizada por rabiscos, garatujas com significação simbólica, constituindo para a criança divertimento precioso encher folhas e mais folhas de papel do que lhe dita o inconsciente. Dos dois anos e meio para cima, são as representações humanas e de animais domésticos que fazem o seu grande prazer gráfico. É neste período que ela mais se assemelha aos selvagens atuais. Seu desenho é sintético; constitui apenas uma tosca caricatura dos objetos que lhe rodeiam. Depois vem o período imitativo, dos 10 anos em diante, no qual as reproduções gráficas são mais cuidadas, estilizadas e já ornamentadas com objetos do mundo vegetal (folhas, flores, etc.). As tendências artísticas nas crianças desta idade são infelizmente ainda hoje, principalmente entre nós, sacrificadas, em virtude da má orientação dessas disciplinas nas escolas. A criança não tem liberdade artística nenhuma. Limita-se a copiar servilmente a natureza, reproduzindo os modelos que os mestres lhes dão. O resultado disto é que elas sempre fazem coisas semelhantes, sem originalidade e despedidas do cunho pessoal, o que não deveria ser. O ensino do desenho precisaria ser completamente livre. Nada de modelo. A criança espontaneamente reproduziria as imagens com ela sentisse realmente, sem a preocupação de linhas, proporções e nem perspectiva. Só assim veríamos surgir a arte sã, independente e subjetiva. Isto que acabamos de dizer não constitui uma novidade. No México, o ensino do desenho nas escolas públicas segue este princípio. A figura 11 é um desenho livre de um escolar do México. Representa um Cristo crucificado. Encontram-se nele individualidade e originalidade. À primeira vista parece tratar-se de um desenho hindu, tal é a delicadeza e o rendilhado da estilização que ele representa. A figura do Cristo é muito original. A cabeça contorcida mostra somente o perfil. Os cabelos anelados caem sobre o pescoço. Braços muito longos pregados à cruz. Uma tanga, espécie de toalha bordada, prende-se à cintura. A liberdade que o pequeno artista mexicano teve para exprimir o seu sentimento de beleza foi tanta que a sua imaginação criou uma inédita figura de Cristo, tão interessante como a dos artistas da Renascença.
Victor Mercante (1*), nas suas investigações experimentais sobre os sentimentos estéticos da criança, chegou a um resultado bem curioso. Em 280 crianças ele tirou as seguintes conclusões, que resumimos aqui:
1 – Os sentimentos estéticos nas crianças são manifestações instintivas e não produtos de análises mentais.
2 – Há um pequeno grupo de indiferentes (classificação Binet), em sua maior parte retardados.
3 – nos adolescentes (classificação Baldwin) não existem senão sentimentos estéticos inferiores.
4 – A idade e o estudo, dentro do círculo primário, são fatores que não orientam tendências estéticas elementares nem estabelecem nas variações do afeto a ordem progressiva notada no desenvolvimento das demais aptidões.
5 – O sexo, pelo contrário, inclui diferenças notáveis. O sentimento estético da mulher é flutuante e dispersivo, enquanto o do homem é fixo e reconcentrado.
6 – o significado dos gráficos indica que as cores orientam melhor a afetividade do que o tamanho e a posição.
7 – Tratando-se de matéria inerte e formas simples, parece lógico o supor-se que a simetria arrasta e centraliza os gostos. Mas esta centralização não é absoluta e os sentimentos afetivos sofrem desagregações importantes que se deve ter em conta uma classificação distributiva de alunos. A evocação é, em geral, o elemento mais poderoso na orientação dos afetos.
8 – No tocante a tamanhos, as crianças preferem o pequeno ao grande, sem que a instrução e nem a idade determinem um princípio de variabilidade nos juízes.
9 – No tocante às cores, os homens preferem o verde e as mulheres o vermelho. O amarelo apresenta uma percentagem de gostos mais acentuados nas mulheres do que nos homens.
As conclusões de Mercante estão bem observadas.
Também Reja (1**) estudando a evolução do desenho na criança, observou que ela apresenta três fases distintas:
A primeira fase se limita a garatujas informes, a confusões e linhas, onde a criança acredita ver os elementos do objeto que deseja representar; a segunda fase, que constitui o estilo pueril propriamente dito, se distingue por toscos esquemas, balbucios de um simbolismo incipiente; a terceira fase de transição para um novo período mental, onde se inicia uma nova direção: a da cópia realista da natureza.
“Existe nas crianças (2) uma certa lei natural, um ‘canon’ podemos dizer, quanto à representação das formas mais comuns. Em milhares delas, as interpretações coincidem num mesmo sistema de estilização. A figura humana, por exemplo, envolvendo da síntese dos palitos é assim representada: a cabeça por um círculo, o tronco por uma elipse, dois palitos para as pernas, com extremidades quadradas representando os pés, ordinariamente em sentidos opostos, dois para os braços com ramificações nos extremos para os dedos, isso em número indeterminado... à vontade do artista... Alguns, observando mais a anatomia, partem as pernas e os braços, atendendo às principais articulações. Outros, cogitando de detalhes, juntam dois pequenos círculos ou simplesmente pontos para os olhos, um traço vertical para o nariz e um horizontal para a boca. Ainda outros cogitam das orelhas, dos cabelos e dos dentes, dependendo essas diferenciações da idade, do adiantamento e principalmente da tendência artística seguida... Quando executam composição onde haja superposição de planos, não admitem corpos opacos. Absolutamente. Numa figura de chapéu, a cabeça deve ser vista em transparência: é lei inflexível”.   

No rodapé constam:
1 – Los dados de la Sociologia. Trad. Hesp. Tomo I. pág. 137.
1* - Sentimientos estéticos del Nino. Arquivos de Psiquiatria y Criminologia. Ano V, janeiro-fevereiro, 1906. Buenos Aires.
1** - Reja – L’Art dês fous – cit. Por Nombela – Arquivos de Psiquiatria y Criminologia. Maio – Junho de 1909, pág.311.
2 – Porciúncula Moraes – O ‘canon’ universal das crianças e a sua tendência futurista. “O Jornal”, Maio, 1928.

Comentários sobre o texto:
Ao mesmo tempo em que o autor repete tendência da época na interpretação entre aspectos cognitivos e psíquicos em diferenças entre masculino e feminino, conforme já notamos anteriormente, ele aponta para fatores limitantes da criatividade no ensino de então e cogita a respeito de outras possíveis formas pedagógicas que pudessem ser mais estimuladoras da arte espontânea.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Capítulo 1 - parte 5 - A expressão artística dos alienados


...continuando o texto...

Na caverna de Isturitz, Passemard (2) encontrou dois fragmentos de chifre de rena com inscrições decorativas provenientes do período Magdaleniano. São desenhos de linhas onduladas, profundas e em número de quatro. (O desenho é original e de uma simplicidade ingênua. Passemard julga tratar-se de uma expressão puramente decorativa e obra de um artista livre, esperto e inventivo).
A sua música (3) era composta de sons agudos e graves, sem melodia, estridentes, que se assemelhava ao guincho de certos animais. “L’art préhistorique – diz Lalo (4) – si remarquable par son exactitude realiste lorsqu’il s’agit de representer des animaux, est gauche, incomplet, mauvais observateur et comme paralysé lorsqu’il s’agit de representer des hommes: au point qu’on a cru devoir interpreter la plupart des types humains des cavernes, ou comme des caricatures, ou comme des représentations de sorciers déguisés em bêtes. Même disproportion chez les Japonais: ils pratiquent um dessin et um coloré merveilleusement riches, souples, scrupuleusement fidèles à l’égard des animaux et des végéteux; ils sont au contraire relativement pauvres d’invention et même d’observation à l’égard des hommes: anatomies embryonnaires, gestes forces et laides physionomies des masques aux rictus stéréotypés, visages conventionnels, aux traits semblables jusqu’à l’identité: il y a um contraste frappant entre cette aptitude prodigieuse à observer directement la nature, et cette sorte de repugnance où ce manque d’intéret relatif pour l’êtude directe de l’humanité”.
Esse esboço de arte do primitivo encontramos identificado tanto nos idiotas e nos imbecis como nos selvagens atuais e nas crianças de 4 a 6 anos, como já vimos as representações gráficas. Esta é uma das razões pelas quais pensamos que uma só mentalidade dirige essas diversas manifestações artísticas. Assim, a criança de 4 a 6 anos que rabisca numa parede uma figura tosca de animal; o idiota ou o imbecil que traça no chão, desordenadamente, com um palito de fósforo, uma figura de homem; o selvagem atual que pinta a sua pele com cores vivas, possuem todos uma só mentalidade artística, uma estética simbólica do primitivo. 

No rodapé constam as referências:
2 – E. Passemard – Dessins sinueux sur bois de renne de la caverne d’Isturitz, Basset-Pyrénées. Bulletin de la societé Préhistorique Française. T.XXII n.3 Mars, 1925, pags. 135-136.
3 – A música sempre existiu, em toda parte, antes de toda cultura propriamente dita e mesmo entre os animais (O. Spengler – A decadência do Ocidente, 2 vol. Pag.24, trad. Esp.)
4 – L’Art et la religion. Revue Philosophique, N. 9-10, pag.279, Paris 1919. 

sábado, 2 de junho de 2012


Capítulo 1 – Parte 4 – A Expressão Artística dos Alienados

Assim prossegue o texto de Osório Cesar:

As produções estéticas dos alienados, como vamos ver mais adiante, apresentam em parte concepções originais, harmoniosas e agradáveis; em parte, porém essas produções são grosseiras, falhas, incoerentes e revelam feitio acentuadamente primitivo. 
Baseados, pois, na falta de homogeneidade das produções artísticas dos alienados, somos forçados, para melhor orientação deste estudo, a traçar aqui um quadro comparativo dessas produções. Dividiremos esse quadro em quatro grupos, seguindo ordem cronológica, de acordo com a evolução das artes, e colocaremos em cada um deles, seriadamente, os seus diversos ramos.

QUADRO DA CLASSIFICAÇÃO DAS ARTES NOS ALIENADOS
                               (ESTUDO COMPARATIVO)
1º GRUPO: ARTE DO PRIMITIVO: DESENHO; MÚSICA.
2º GRUPO: ARTE PRIMITIVA: DESENHO; ESCULTURA; DECORAÇÃO; POESIA; MÚSICA; DANÇA.
3º GRUPO: ARTE CLÁSSICA: DESENHO; PINTURA; ESCULTURA; DECORAÇÃO; POESIA; MÚSICA; DANÇA.
4º GRUPO: ARTE DE VANGUARDA: DESENHO; PINTURA; ESCULTURA; DECORAÇÃO; POESIA; MÚSICA; DANÇA. 

Devemos assinalar que, hoje em dia, o termo “arte primitiva” tem sido rejeitado por ser considerado pejorativo e eurocêntrico. Têm sido usados os termos “arte tribal”, ou “arte etnográfica”, ou “arte nativa”, e outros similares.

As manifestações artísticas dos alienados que classificamos no primeiro grupo, constam de desenhos rudimentares, de caráter simbólico (figura 1), cuja semelhança apresentada com os desenhos pré-históricos (figuras 2 a 4), com desenhos de povos primitivos (figuras 5 a 7) e com os desenhos de crianças de 4 a 9 anos (figuras 8 a 10) é positivamente notável. 



Continuando o texto do primeiro capítulo:

A composição desses desenhos lembra a infância da humanidade, época indeterminada, em que o homem se abrigava em cavernas, cobria-se com peles de animais bravios e cujos utensílios eram fabricados com pedras duras como o sílex e com pedras ígneas, dando-lhes conforto e prazer à sua atribulada existência. 
Nesse remoto período o homem era pescador, caçador, e desconhecia a agricultura.
A sua arte decorativa (1) era constituída por ideogramas e por representações de animais desenhados toscamente com fragmentos de ossos e pedras nas paredes e nos tetos das cavernas.

No item de número (1) consta o seguinte texto no rodapé:
A origem da arte é tão antiga como antiga é a origem da humanidade.
A arte nasceu com o primeiro homem. A mais remota manifestação  de arte que se conhece pertence à idade da pedra. Dessa época são dignos de admiração os desenhos de animais gravados em ossos e em pedras os quais, segundo os autores, apresentam quiçá, maior antiguidade que as estátuas egípcias. Cada povo tem sua predileção ornamental. Assim, Lubbock (Les origines de la Civilization, pg 36, trad. franç. 1873, Paris) diz que encontramos frequentemente bons desenhos de animais, datando da idade da pedra e que esses desenhos desaparecem quase inteiramente no período da idade da pedra polida, durante a idade do bronze, e que durante essas duas últimas épocas a ornamentação consiste unicamente em diferentes combinações de linhas direitas e curvas e em desenhos geométricos. E é nessa desigualdade de épocas que Lubbock acredita na existência de uma diferença de raça na população da Europa ocidental. Em favor da opinião de Lubbock estão os Esquimós, bons desenhadores, enquanto os Polinésios, gente muito mais adiantada em outros pontos de vista, muito engenhosa nos enfeites e na ornamentação de suas armas, no entretanto, são incapazes de desenhar figuras de animais e de plantas.
Grosse (Les débuts de L'Art. Felix Alcan, 1902) considera a arte dos primitivos como um fenômeno e uma função social. 

sábado, 5 de maio de 2012

Capítulo 1 – Parte 3 – A Expressão Artística dos Alienados


A arte nos alienados tem sido objeto de apurados estudos por parte de alguns psiquiatras. Assim, entre os inúmeros trabalhos aparecidos de 1876 até hoje, podemos citar os seguintes (3):

Nesta referência número 3 está escrito no rodapé:
“No fim deste trabalho, na parte referente à bibliografia, daremos uma lista desenvolvida dos autores e das obras aparecidas até hoje, concernentes ao assunto”.

Continuando o texto:

Simon (4) em 1876 publicou uma curiosa análise de desenhos, pretendendo especificá-los em cada caso para chegar como meio, a um diagnóstico certo de moléstias mentais.
Lombroso (5) em 1889 reuniu as produções artísticas de 107 doentes que começaram a pintar ou esculpir depois da moléstia. Ele foi o primeiro observador que chamou a atenção para a semelhança da arte de alguns alienados com a arte primitiva e considerou, genuinamente, as obras artísticas desses alienados como uma espécie de atavismo à infância da humanidade. Lombroso observou que há doentes que mostram capacidades originais de inovação: esta originalidade, diz ele, chega às vezes à singularidade, à rareza, a qual é todavia explicável logicamente quando se aprofundam nas ideias dos doentes e se compreendem a liberdade e a largueza com que se move a sua fantasia.

Nas referências de números 4 e 5 há as citações de rodapé:
4 – L’imagination dans la folie. Étude sur lês dessins, plans, description et costumes dês alienées. Ann. med. Psychologiques, 1876.
5 – Sull’arte nei pazzi. Arch. Di Psichiatria e scienze legale, 1880.

Morselli (1) em 1894 também se preocupou com os desenhos dos alienados.
Em Portugal, Julio Dantas (2) publicou em 1900 uma interessante monografia sobre as produções artísticas do Hospício de Rilhafolles.
Rogues de Fursac (3) em 1905 reuniu em volume algumas produções artísticas de vários alienados.

Nas referências de números 1, 2 e 3 há as citações de rodapé:
(observação: o autor reiniciava a numeração das notas de rodapé a cada página)
1 – Manuale di semiotica delle malattie mentale. Milano, 1894.
2 – Pintores e Poetas de Rilhafolles. 1900. Lisboa.
3 – Les écrits et les dessins dans les maladies nerveuses et mentales, Paris, 1905.

Dos muitos trabalhos aparecidos ultimamente, mencionaremos ainda os seguintes: H. Prinzhorn, “Das bildnerische Schaffen der Geisteskranken”, publicado no Zeitschrift f. d. ges. Neurologie und Psychiatrie, Berlin, 1919. “Bildnerei der Geisteskranken”, do mesmo autor, obra notável, rica em observação, constituindo um grosso volume de 361 páginas, com muitas reproduções de desenhos em cores, pelo que representa o trabalho mais completo, neste gênero, destes últimos tempos. “Bildnerei der Gefangenen”, também do mesmo autor, trabalho recente, publicado em 1926. “Ein Geisteskranker als Kunstler”, de Morgenthaler, obra saída em 1921, na Alemanha, onde se encontra já a aplicação da psicanálise na interpretação dos trabalhos artísticos de um esquizofrênico. “L’art et la Folie” de Vinchon, publicado pela livraria Stoch, de Paris, em 1925. 

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Capítulo 1 – Parte 2 – A Expressão Artística dos Alienados

O insano também não é um ser desafeiçoado e sem iniciativa pelas coisas de arte. Do mesmo modo que no indivíduo normal, a imagem, o pensamento formado no cérebro do alienado cria, em determinados casos, uma atitude estética bem curiosa.
Os poetas, os desenhistas, os escultores, etc., são artistas que frequentemente deparamos nos manicômios. E a nossa admiração se extasia quando encontramos com qualquer das produções desses artistas insanos e nelas vemos estilizadas, segundo a psique de cada um, concepções filosóficas, literárias ou plásticas, de uma ideação algumas vezes surpreendente.
Esses grandes artistas, na grande maioria, são todos homens.
Nas mulheres alienadas as produções artísticas (literatura, desenho, pintura, escultura e música), pelo menos nos nossos hospícios são escassas. Temos observado, no Hospital do Juquery, que entre as mulheres internadas, somente um pequeno grupo das mais calmas, essas produções de arte se resumem em objetos manuais, como sejam cestas de palha, crochet, bordados, etc., e raramente trabalhos decorativos, como flores de papel e cestas com flores fabricadas de massa de pão. (1)

Na observação de número (1) o autor escreve no rodapé:

Exceção feita de uma demente precoce do Hospital do Juquery, antiga internada, pintora paisagista, de que mais adiante falaremos.

Continuando o texto:

Não parecem ser frequentes nessas doentes, trabalhos literários, esculturas, pinturas murais, etc., por mais insignificantes que sejam.
“Se voltarmos as vistas para os tempos primitivos, [diz Havelock Ellis] (2), podemos estar perfeitamente seguros de que os desenhos toscos de homens, animais e de objetos naturais que se encontram nos instrumentos primitivos e nas rocas, são trabalhos de homens. Hoje em dia o impulso para desenhar, pintar e trabalhar – o impulso artístico em sua forma mais primitiva, - é muito mais acentuado nos meninos e homens do que nas meninas e mulheres. Nos colégios e nas prisões, esta diferença é decisiva. Por isto pode-se dizer que as mulheres são menos imaginativas do que os homens”.

No item de número (2) o autor escreve no rodapé:

Estudios de Psicologia sexual, vol. 1, trad. Hesp. Madrid, 1913.

Continuando o texto:

“A mulher alienada, [observa Toulouse], tem absoluta falta de invenção no conceito das ideias delirantes; não demonstra nada da riqueza de extravagância manifestada pelos homens. As características de grandeza que afetam tão amiúde os homens são raras nas mulheres, e então são visualmente de um caráter débil e vulgar, limitando-se em sua maior parte à região do tocado, ou a uma herança secreta suposta”.

Comentário sobre o texto:
Observa-se algo próprio desse período no que concerne à então suposta diferença entre homem e mulher em relação a pendores artísticos. Como esses estudiosos são citados por Osório César sem crítica aos mesmos, é provável que ele concordasse com essas visões.
É bastante interessante assinalarmos que entre 1 e 2 anos após a publicação desse livro, Osório César passou a viver com Tarsila do Amaral, com a qual viajou à União Soviética.
Podemos nos perguntar como ficaram esses conceitos a partir da estreita convivência com artista tão singular como Tarsila. Por outro lado, provavelmente conhecedora do livro de Osório, o que Tarsila teria pensado desses conceitos... 

terça-feira, 20 de março de 2012

Capítulo 1 - parte 1 - A Expressão artística dos Alienados

A Expressão artística nos alienados (1)
Capítulo I

O número (1) ao rodapé da página indica a seguinte nota:

Nas mais antigas etimologias a palavra alienado, nabi em hebreu, é sinônima de profeta, como igualmente em sânscrito nigrata.

No início do capítulo I, o autor faz um breve resumos dos assuntos a serem abordados com o seguinte texto:

Falso conceito na apreciação da “loucura”. Interpretação exata da psicologia do alienado. Ergoterapia. A arte nos loucos. Breve resenha histórica do que se tem escrito até hoje. Ensaio de um quadro para a classificação das artes nos alienados. Estudo comparativo entre as artes nos alienados, das crianças, dos povos primitivos e a arte primitiva (século XII, japonesa, africana, etc.). O valor dos símbolos nas manifestações artísticas dos alienados para a interpretação psicanalítica.

A seguir transcrevemos o texto propriamente dito do capítulo I.

Quase toda gente pensa que um Hospício é lugar fechado onde passam a vida inteira os pobres doentes do espírito sem nada dizer, sem nada fazer, que não sejam coisas desassisadas.
Falar de um louco, dizia Esquirol,  é, para o vulgo, falar de um homem que aprecia mal as suas relações com o mundo exterior, a sua posição e o seu estado; que se entrega aos atos mais desordenados, mais extravagantes, mais violentos, sem motivo, sem combinações prévias, sem premeditação...
Este conceito, felizmente, não é de todo verdadeiro. Quem entrar num manicômio e procurar conversar atentamente com os doentes, ouvir com interesse suas queixas, as suas curiosas histórias, notará, certamente, que, entre uma grande parte deles, o raciocínio é lógico, a linguagem correta e a imaginação, por vezes, exuberante. O alienado é simplesmente isto: “é um doente cujas perturbações do espírito são um obstáculo, transitório ou permanente, à sua adaptação à sociedade na qual ele deve viver”(2).

Ao item (2) corresponde a referência:

Dr. P. Voivonel – La Raison chez les fous, pags. 14-15, Paris, 1927.

Continuando o texto:

Nem todo alienado, porém, é aquele doente que a maior parte do povo julga ser: um pobre ente humano desprovido de atividade psíquica normal e que passa a vida inteira dizendo tolices sem poder se ocupar em coisas úteis à comunidade. Não. Isto é uma falsa ideia. O alienado, como a experiência demonstra, é um doente que, submetido a um regime moderado de trabalho, auxiliado com um tratamento carinhoso dos médicos, enfermeiros e ajudantes, é capaz de um esforço útil e produtivo.
Sobejamente conhecida é hoje a eficácia dos “Asilos Colônias”, onde o regime do trabalho moderado entre os alienados tem sido preconizado com ótimo resultado. E, entre nós, justiça seja feita, este método terapêutico tem sido usado com excelente proveito.
A este respeito assim se exprime o professor Franco da Rocha: “O insano que trabalha e vê o resultado de seu suor, sente-se mais digno; sai da condição ínfima de criatura inútil e eleva-se a seus próprios olhos; adapta-se a um modus vivendi que lhe suaviza grandemente a desgraça. A consciência do próprio valor pessoal revive no indivíduo que, de outro modo, seria uma carga pesada e inútil para a parte sã da sociedade. Experiência de mais de dez anos tem me demonstrado o que acabo de dizer e permite-me subscrever as opiniões que estão exaradas em motes no começo deste livro. A ocupação ao ar livre, que lhes concede a aparência de liberdade, e em muitos casos não só aparência, mas ampla liberdade, diminui-lhes extraordinariamente a angústia, a ansiedade, o mal estar que os atormenta na prisão sem trabalho” (Hospícios e Colônias do Juquery, S.P., 1912).
O alienado, como qualquer indivíduo normal, odeia o regime de prisão. Temos visto, mais de uma vez, esquizofrênicos que se revoltam a ponto de agredirem os guardas dos pavilhões contra as suas permanências nos pátios das enfermarias no “dolce far niente”. Entretanto, esses doentes, fora, no trabalho áspero do campo, na agricultura, por exemplo, governam-se perfeitamente bem. Não queremos dizer em tese que todo e qualquer alienado seja suscetível dessa adaptação de vida. Contudo, poderemos afirmar com segurança que esse processo de terapêutica é o que melhor resultado tem dado, principalmente nas diversas formas de demência precoce, na catatônica, por exemplo, como se verifica pelas estatísticas manicomiais dos países em que ele é praticado.
Na América do Norte, onde a ergoterapia se encontra muito desenvolvida, são verdadeiramente dignos de nota a importância e o carinho com os quais os doentes são tratados por este método.
Dr. Pacheco e Silva, diretor do Hospital do Juquery, no seu Relatório apresentado ao Secretário do Interior (A Assistência a alienados nos Estados Unidos e na Europa, S.P., 1926), quando de volta de sua viagem de estudos aos Estados Unidos da América do Norte e à Europa, falando sobre o “Chicago State Hospital” diz o seguinte:
“É um magnífico e enorme Hospital, com uma população hospitalar de 3810 almas. Os doentes, em sua grande maioria crônicos, são entretidos por cerca de 60 professores especializados, que procuram despertar o interesse dos alienados para os trabalhos manuais, jogos, etc. A seção de ergoterapia tem grande desenvolvimento e compreende diversas seções: fábricas de cestas e cadeiras de vime, tapetes, cortinas, bordados, brinquedos de madeira, etc. São impressionantes os resultados obtidos nesse hospital com o emprego da terapêutica pelo trabalho, sobretudo em relação aos dementes precoces, que, de apáticos e  indiferentes, se tornam operosos, recobrando a iniciativa perdida”.

Conforme se depreende do texto até aqui, Osório César usa uma conceituação própria dessa época a respeito de povos de tradição não europeia que eram considerados como “povos primitivos”, bem como formas de arte não europeia, com sendo “arte primitiva”. Tal conceituação era elaborada por forte influência da Teoria da Evolução sobre todas as esferas científicas e sociais e não apenas as biológicas. Observa-se também a referência e “reverência” feita por César a Pacheco e Silva, que viria a desenvolver, mais tarde estrito relacionamento com tendências conservadoras mais próximas de regimes ditatoriais. Portanto, devemos situar Osório César na ambientação de então, nos anos 1920.
Podemos observar já de início uma abertura do autor a uma visão mais ampla do doente psiquiátrico que ia além de uma caricaturização reducionista da condição desses indivíduos, dando a eles traços similares aos indivíduos considerados “normais”. A menção a Franco da Rocha indica a posição de destaque desse professor nesse momento.