Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Capítulo 1 – Parte 11 – A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

Quanto aos poemas dos alienados, os seus versos são ora ternos, cheios de um lirismo encantador; ora são satíricos, picantes, e ora de uma prolixidade enervante, como veremos mais adiante. Igualmente, encontramos nos poemas dos selvagens da América do Sul, nos das tribos australianas e nos negros centro-africanos a mesma intenção lírica, o mesmo estilo daqueles poemas.
Entre os poemas heroicos dos índios da América do Sul transcrevemos para aqui o Iatokê, poema dos índios Parecis (1) da serra do Norte, cuja beleza está na simplicidade da descrição.
O poema Iatokê (2) celebra o “salto” do rio Jurema, que os Parecis, numa antiga luta, conquistaram aos Uaikoakorê. Kamaizokolá é o nome do referido salto:

IATOKÊ                                                IATOKÊ (tradução)

Natiô atiô kamaizokolá                   Meu nome é kamaizocolá
Natiô atiô ualokomá atiô                Eu sou o mesmo ualokoná
Natiô kamaizokolá                          Meu nome é kamaizocolá
Nêê-êná êmá makoé etá                Nenhum homem se banha aqui,
Nêê-êná kamaizocolá                     Eu sou kamaizocolá
Oné nauê kotá zanezá                    Este rio bom é o maior de todos
Nêê atiô kamaizocolá.                    Meu nome é kamaizocolá.

Uma lenda muito curiosa dos Parecis é Ualalocê, cuja música reproduzimos na figura 35.


UALALOCÊ

Akutiá – han, nohin ôkerê
Ulkuman uizoná nêtéu
Ukuialaná kamalalô
Niáhaká nokin-ê kamalalô
Motiá saiá Arité okanatiô
Kozákitá kôlôhôn unitá nêtêu
Niahaká akaterê kerarê
Estribilho
Há! Há! Noáianauê! Uh!

Segundo a tradução de Roquete Pinto (obra cit. pag.132) o “Ualalocê” narra um episódio  da vida de um índio kamalalô.
“Indo passar na floresta, viu um homem trepado num pé de tarumá, supondo que fosse um índio, disse-lhe:
- Ariti, dá-me uma fruta de tarumá?
E o homem respondeu:
- Kamalalô pensa que eu sou Ariti. Eu sou ‘pai do mato’...”

Vejamos agora uma das mais belas lendas tapuias dos nossos sertões:

MAI PITUNA OIUGUARE âNA (1*)
(Como a noite apareceu)

“No princípio não havia noite – dia somente havia em todo tempo.
A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais; todas as coisas falavam.
A filha da cobra grande, contam, casara-se com um moço.
Este moço tinha três fâmulos fieis. Um dia ele chamou os três fâmulos e lhes disse: - Ide passear porque minha mulher não quer dormir comigo.
Os fâmulos foram-se e então ele chamou sua mulher para dormir com ele.
A filha da cobra grande respondeu-lhe: - Ainda não é noite.
O moço disse-lhe: - Não há noite; somente dia.
A moça falou: - Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo, vamos buscá-la lá, pelo grande rio.
O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os a casa de seu pai para trazerem um caroço de tucumã.
Os fâmulos foram, chegaram em casa da cobra grande, esta lhes deu um caroço de tucumã bem fechado e disse-lhes: - Aqui está, levai-o. Ei-o! Não o abrais, senão todas as coisas se perderão.
Os fâmulos foram, e estavam ouvindo barulho dentro do coco de tucumã assim: ten, ten, ten, ... Xi... (1**) era o ruído dos grilos e dos sapinhos que cantam de noite.
Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a seus companheiros: vamos ver que barulho é este?
O piloto disse: - Não; do contrário nos perderemos. Vamos embora, eia, rema.
Eles foram e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tacumã e não sabiam que barulho era.
Quando estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco e o abriram. De repente tudo escureceu.
O piloto então disse: - Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa já sabe que nós abrimos o coco de tucumã; eles seguiram viagem.
A moça, em sua casa, disse então a seu marido: Eles soltaram a noite, vamos esperar a manhã.
Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque se transformaram em animais e em pássaros.
As coisas que estavam espalhadas pelo rio se transformaram em patos e peixes. Do paneiro gerou-se a Onça; o pescador e sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e o bico de pato; da canoa, o corpo do pato; dos remos, as pernas do pato.
A filha da cobra grande, quando viu a estrela d’alva, disse a seu marido: - A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da noite.
E então ela enrolou num fio e disse-lhe: - Tu será cujubin.
Assim ele fez o cujubin, pintou a cabeça do cujubin de branco, com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho, com urucu, e então disse-lhe: - Cantarás para todo o sempre quando a manhã vier raiando.
Ela enrolou o fio, sacudiu  cinza em cima dele e disse: - Tu serás inhambu, para cantar nos diversos tempos da noite e da madrugada.
De então para cá todos os pássaros cantaram em seus tempos e de madrugada para alegrar o princípio do dia.
Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes: - Não fostes fieis: - abriram o caroço de tucumã, soltaram a noite e todas as coisas se perderam, e vós também que vos metamorfoseastes em macacos, andareis para todo sempre pelos galhos dos paus".

(A boca preta e a risca amarela que eles têm no braço dizem que é o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã que escorreu sobre eles quando o derreteram) (1***).

Notas:

1 – Os índios Parecis, segundo Roquete Pinto, representam, neste momento, a mais interessante população selvagem do mundo.

2 – Tradução de Roquete Pinto. Obra cit. Pag. 133.

1* - Couto de Magalhães. O selvagem, pag. 162.

1** - Quando os selvagens narram esta parte, imitam o zumbido dos insetos que cantam à noite (nota de Couto de Magalhães, obra cit.)

1*** - Nota de Couto de Magalhães. Obra citada.

Adendo:

Comentário de Couto de Magalhães, situado nas páginas 162 e 163 do livro “O Selvagem” de 1876, a respeito dessa lenda por ele referida:

“Esta lenda é provavelmente um fragmento do Gênesis dos antigos selvagens sul- americanos. É talvez o eco degradado e corrompido das crenças que eles tinham, do como se formou esta ordem de coisas no meio da qual vivemos, e, despida das formas grosseiras com que provavelmente as vestiram as avós e as amas de leite, ela mostra que por toda parte o homem se propôs resolver esse problema – de onde é que nós viemos? Aqui, como nos Vedas, como no Gênesis, a questão no fundo é resolvida pela mesma forma, isto é: no princípio eram todos felizes; uma desobediência num episódio de amor, uma fruta proibida, trouxe a degradação. A lenda é em resumo a seguinte: no princípio não havia distinção entre os animais, o homem e as plantas; tudo falava. Também não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não quis coabitar com o seu marido enquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim como havia no fundo das águas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi remetida encerrada dentro de um caroço de tucumã, bem cerrado, com proibição expressa aos condutores de que o abrissem, pena de perderem-se a si e a seus descendentes, e a todas as coisas. A princípio resistem à tentação, mas depois, a curiosidade de saber o que havia dentro da fruta os fez violar a proibição, e assim se perderam. Substituindo a fruta de tucumã pela árvore proibida, a curiosidade de saber pela tentação do espírito maligno, parece-me haver no fundo do episódio tanta semelhança com o pensamento asiático, que vacilo e pergunto se não será um eco degradado e transformado desse pensamento”. 


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