...continuação do
texto...
Quanto aos poemas dos alienados, os seus versos são ora
ternos, cheios de um lirismo encantador; ora são satíricos, picantes, e ora de
uma prolixidade enervante, como veremos mais adiante. Igualmente, encontramos
nos poemas dos selvagens da América do Sul, nos das tribos australianas e nos
negros centro-africanos a mesma intenção lírica, o mesmo estilo daqueles
poemas.
Entre os poemas heroicos dos índios da América do Sul
transcrevemos para aqui o Iatokê, poema dos índios Parecis (1) da serra do
Norte, cuja beleza está na simplicidade da descrição.
O poema Iatokê (2) celebra o “salto” do rio Jurema, que os
Parecis, numa antiga luta, conquistaram aos Uaikoakorê. Kamaizokolá é o nome do
referido salto:
IATOKÊ
IATOKÊ
(tradução)
Natiô atiô kamaizokolá Meu nome é kamaizocolá
Natiô atiô ualokomá atiô Eu sou o mesmo ualokoná
Natiô kamaizokolá Meu nome é
kamaizocolá
Nêê-êná êmá makoé etá Nenhum homem se banha aqui,
Nêê-êná kamaizocolá Eu sou kamaizocolá
Oné nauê kotá zanezá Este rio bom é o maior de
todos
Nêê atiô kamaizocolá. Meu nome é kamaizocolá.
Uma lenda muito curiosa dos Parecis é Ualalocê, cuja música
reproduzimos na figura 35.
UALALOCÊ
Akutiá – han, nohin ôkerê
Ulkuman uizoná nêtéu
Ukuialaná kamalalô
Niáhaká nokin-ê kamalalô
Motiá saiá Arité okanatiô
Kozákitá kôlôhôn unitá nêtêu
Niahaká akaterê kerarê
Estribilho
Há! Há! Noáianauê! Uh!
Segundo a tradução de Roquete Pinto (obra cit. pag.132) o
“Ualalocê” narra um episódio da vida de
um índio kamalalô.
“Indo passar na floresta, viu um homem trepado num pé de
tarumá, supondo que fosse um índio, disse-lhe:
- Ariti, dá-me uma fruta de tarumá?
E o homem respondeu:
- Kamalalô pensa que eu sou Ariti. Eu sou ‘pai do mato’...”
Vejamos agora uma das mais belas lendas tapuias dos nossos
sertões:
MAI PITUNA OIUGUARE âNA (1*)
(Como a noite apareceu)
“No princípio não havia noite – dia somente havia em todo
tempo.
A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia
animais; todas as coisas falavam.
A filha da cobra grande, contam, casara-se com um moço.
Este moço tinha três fâmulos fieis. Um dia ele chamou os três
fâmulos e lhes disse: - Ide passear porque minha mulher não quer dormir comigo.
Os fâmulos foram-se e então ele chamou sua mulher para dormir
com ele.
A filha da cobra grande respondeu-lhe: - Ainda não é noite.
O moço disse-lhe: - Não há noite; somente dia.
A moça falou: - Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo,
vamos buscá-la lá, pelo grande rio.
O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os a casa de seu
pai para trazerem um caroço de tucumã.
Os fâmulos foram, chegaram em casa da cobra grande, esta lhes
deu um caroço de tucumã bem fechado e disse-lhes: - Aqui está, levai-o. Ei-o! Não o abrais, senão todas as
coisas se perderão.
Os fâmulos foram, e estavam ouvindo barulho dentro do coco de
tucumã assim: ten, ten, ten, ... Xi... (1**) era o ruído dos grilos e dos
sapinhos que cantam de noite.
Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a seus
companheiros: vamos ver que barulho é este?
O piloto disse: - Não; do contrário nos perderemos. Vamos
embora, eia, rema.
Eles foram e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do
coco de tacumã e não sabiam que barulho era.
Quando estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa,
acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco e o abriram. De repente
tudo escureceu.
O piloto então disse: - Nós estamos perdidos; e a moça, em
sua casa já sabe que nós abrimos o coco de tucumã; eles seguiram viagem.
A moça, em sua casa, disse então a seu marido: Eles soltaram
a noite, vamos esperar a manhã.
Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque se
transformaram em animais e em pássaros.
As coisas que estavam espalhadas pelo rio se transformaram em
patos e peixes. Do paneiro gerou-se a Onça; o pescador e sua canoa se
transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e o bico de pato; da
canoa, o corpo do pato; dos remos, as pernas do pato.
A filha da cobra grande, quando viu a estrela d’alva, disse a
seu marido: - A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da noite.
E então ela enrolou num fio e disse-lhe: - Tu será cujubin.
Assim ele fez o cujubin, pintou a cabeça do cujubin de
branco, com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho, com urucu, e então
disse-lhe: - Cantarás para todo o sempre quando a manhã vier raiando.
Ela enrolou o fio, sacudiu
cinza em cima dele e disse: - Tu serás inhambu, para cantar nos diversos
tempos da noite e da madrugada.
De então para cá todos os pássaros cantaram em seus tempos e
de madrugada para alegrar o princípio do dia.
Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes: - Não
fostes fieis: - abriram o caroço de tucumã, soltaram a noite e todas as coisas
se perderam, e vós também que vos metamorfoseastes em macacos, andareis para
todo sempre pelos galhos dos paus".
(A boca preta e a risca amarela que eles têm no braço dizem
que é o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã que escorreu sobre eles
quando o derreteram) (1***).
Notas:
1 – Os índios Parecis,
segundo Roquete Pinto, representam, neste momento, a mais interessante
população selvagem do mundo.
2 – Tradução de Roquete
Pinto. Obra cit. Pag. 133.
1* - Couto de
Magalhães. O selvagem, pag. 162.
1** - Quando os
selvagens narram esta parte, imitam o zumbido dos insetos que cantam à noite
(nota de Couto de Magalhães, obra cit.)
1*** - Nota de Couto de
Magalhães. Obra citada.
Adendo:
Comentário de Couto de
Magalhães, situado nas páginas 162 e 163 do livro “O Selvagem” de 1876, a
respeito dessa lenda por ele referida:
“Esta lenda é
provavelmente um fragmento do Gênesis dos antigos selvagens sul- americanos. É
talvez o eco degradado e corrompido das crenças que eles tinham, do como se
formou esta ordem de coisas no meio da qual vivemos, e, despida das formas
grosseiras com que provavelmente as vestiram as avós e as amas de leite, ela
mostra que por toda parte o homem se propôs resolver esse problema – de onde é
que nós viemos? Aqui, como nos Vedas, como no Gênesis, a questão no fundo é
resolvida pela mesma forma, isto é: no princípio eram todos felizes; uma
desobediência num episódio de amor, uma fruta proibida, trouxe a degradação. A
lenda é em resumo a seguinte: no princípio não havia distinção entre os animais,
o homem e as plantas; tudo falava. Também não havia trevas. Tendo a filha da
Cobra Grande se casado, não quis coabitar com o seu marido enquanto não
houvesse noite sobre o mundo, assim como havia no fundo das águas. O marido
mandou buscar a noite, que lhe foi remetida encerrada dentro de um caroço de
tucumã, bem cerrado, com proibição expressa aos condutores de que o abrissem,
pena de perderem-se a si e a seus descendentes, e a todas as coisas. A
princípio resistem à tentação, mas depois, a curiosidade de saber o que havia
dentro da fruta os fez violar a proibição, e assim se perderam. Substituindo a
fruta de tucumã pela árvore proibida, a curiosidade de saber pela tentação do
espírito maligno, parece-me haver no fundo do episódio tanta semelhança com o
pensamento asiático, que vacilo e pergunto se não será um eco degradado e
transformado desse pensamento”.
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