Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

A Expressão Artística dos Alienados - Conclusão

 

[devemos frisar que Osório César utiliza uma linguagem psiquiátrica e artística da década de 1920 do século XX]

 

          Pelo que acabamos de ver, o louco não é um indivíduo desprezível que mereça desinteresse da sociedade. Ele não é o homem que somente sabe dizer coisas engraçadas e atrapalhadas como um palhaço de circo; que só faz má ação; que se enfurece por “dá cá aquela palha”; que se zanga constantemente com todas as pessoas de casa por ser contrariado nos seus desejos; que rasga a roupa, quebra os pratos e bate nos pais e ameaça de morte os supostos inimigos. O louco, realmente, é tudo isso. Dentro do seu mundo circundante e do seu eu interior, ele tem o seu ponto de vista anormal. Fora daí, ele é um homem tão perfeito como qualquer outro. Veste-se bem, come, dorme, trabalha quando quer, discute as suas ideias e critica as alheias, diz “piadas” e produz, quando inspirado, obras de arte de valor inestimável. São poetas, oradores, desenhistas uns, e pintores, escultores, músicos, filósofos outros. E não se pense que a manifestação da arte nos alienados sejam produtos de estereotipias, sem nenhuma emoção, sem nenhum interesse, sem nenhuma significação, sem nenhuma finalidade. Longe disso. As representações de arte desses doentes são todas emocionais, pois elas são de caráter espontâneo e se dirigem para um fito único: a satisfação de uma necessidade instintiva. Elas representam descargas acumuladas de emoções, durante muito tempo no subconsciente adormecidas pela censura, em virtude de certos impulsos de ordem moral.

          É com carinho que os doentes estilizam um motivo qualquer em desenhos decorativos e guardam sempre consigo. Isso é comum, sobretudo, entre os dementes precoces catatônicos, que dificilmente se separam de seus desenhos. Noutros, por exemplo, na psicose maníaco-depressiva, em que as produções literárias são abundantíssimas, eles distribuem com prazer os produtos de sua inspiração aos que lhes são caros. Nós mesmos possuímos, na nossa coleção, cerca de 300 poesias de um desses doentes.

          Como nos indivíduos normais, a arte nos alienados também apresenta senões. Ora são erros gramaticais, incoerência de ideias, ora são neologismos, saladas de palavras etc., que deparamos nas suas composições literárias. Nas esculturas, nos desenhos, ora são expressões deformadas, proporções exageradas, ora são falhas de perspectivas e puerilidades. Mas, isso tudo é muito relativo. Para o nosso sabor, a escultura de um africano é detestável, sob o ponto de vista estético, da mesma maneira que a arte japonesa e arte dos índios norte-americanos. Igualmente encaramos a arte do louco. Entretanto, a coisa em si é muito diferente. Se deparamos, por exemplo, num poema de um esquizofrênico, vocábulos deslocados e períodos sem sentido lógico e se os estudarmos pacientemente, à luz da psicanálise, veremos esclarecidos, em grande parte, acontecimentos remotos passados na vida do doente, que o subconsciente desalojou de sua profundidade, vindo à tona, em forma de símbolos. O mesmo se dá com os seus desenhos (veja figuras 47 a 49).

          Fomos obrigados, neste nosso modesto trabalho, a forjar uma classificação da arte nos alienados. Somos inimigos de classificações. Achamos que todas elas pecam pela base e que o seu valor é apenas de ocasião, didático. Apesar disso, tivemos imperiosa necessidade de assim proceder, em vista do estudo comparativo que propomos tentar entre a arte dos alienados, do homem primitivo, a arte primitiva e a de vanguarda. Sem auxílio desse quadro, o nosso intento se tornaria quase impossível.  Portanto, a classificação que fizemos foi apenas um arranjo esquemático para compreensão clara de nossa exposição. Ela não constitui uma finalidade. Deve desaparecer.

           Outro ponto que urge ser aqui bem explicado é a distinção feita entre arte do primitivo e arte primitiva. Bem sabemos que para muitos leitores essa separação não tem razão de ser. Mas, procuraremos agora, tanto quanto possível, expor, em poucas palavras, o nosso ponto de vista.

          Para nós, há uma grande separação entre essas duas artes. Senão vejamos. No homem primitivo, ela é representada por desenhos toscos, incompletos e caricaturais de animais selvagens. Não há decorações de motivos vegetais. No sentido clássico de arte, essa manifestação pictural do primitivo não é bem arte. Ela é antes uma pré-arte. A arte primitiva é uma manifestação estética emocional, grosseira, deformada e estilizada, com motivos animais e vegetais. Como exemplo, temos a arte do século XII (Bizâncio), a gótica, a japonesa, a dos africanos e a dos futuristas. Daí a nossa distinção.

          Comparamos a arte de certos alienados (dementes precoces catatônicos) com a dos homens pré-históricos e com a criança de 4 a 6 anos (veja figuras 1 a 3). Supomos que há uma profunda identidade entre a essência dessas artes. Dementes precoces catatônicos há (constituem a maioria) que desenham como crianças de 4 a 6 anos. Entretanto, esses indivíduos, quando normais, receberam boa instrução intelectual. Após a doença e quando ela se adiantou, a inteligência dos acontecimentos adquiridos desapareceu e ficou somente a inteligência do primitivo, a instintiva. Houve processos de retrogradação. Daí o modo de desenhar desses doentes, idêntico ao do homem das cavernas e ao das crianças de 4 a 6 anos. Nestas, a inteligência adquirida é ainda muito rudimentar para poder abafar a inteligência do primitivo, que nessa idade (raras exceções, Mozart, por exemplo), domina o espírito da criança, pelas manifestações instintivas.

          Vimos também que certas manifestações artísticas (escultura, por exemplo, veja figuras 50,51) de dementes precoces paranoides, se assemelham muito com as produções artísticas primitivas, como sejam as esculturas africanas, as bizantinas e as do estilo gótico (veja figuras 60 a 63).

          Nesses doentes, a inteligência dos acontecimentos adquiridos nos fica embotada, não desaparece nem retrograda. Há aqui apenas parada na evolução da inteligência. O indivíduo não aprende nada mais de novo. Fica estacionário (se a doença não evoluir para a demência precoce catatônica, o que pode acontecer muito mais tarde). Dessarte, o doente, com os conhecimentos adquiridos, formula uma série de coisas absurdas (para nós, está claro) em torno de um fato muita vez banal, trazendo alucinações, ideias delirantes de grandeza ou de perseguição. Vêm disso criações fantásticas de sua imaginação, esculturas deformadas, desenhos simbólicos etc.   

          Uma outra manifestação de arte que encontramos nos alienados é a que comparamos com a arte comum. A arte nesses doentes não oferece nenhuma modificação patológica. Embora o psiquismo dos doentes se ache alterado, a sua arte é normal (certos parafrênicos, veja figuras 36 a 40).

         Finalmente, estudamos um grupo de arte (comum em certas fases da demência precoce e da parafrenia) que muito bem pode ser comparado com a arte de vanguarda.

          Essa manifestação artística é a mais frequente nos manicômios. Ela é, de todas, a mais interessante. É calcada inteiramente em símbolos.

          Nas mulheres, o sentimento artístico não parece ser vulgar nos manicômios[1]. Nunca vimos literatas, escultoras e nem poetisas. A dança, entretanto, surge, algumas vezes, entre as maníacas, com ritmo esquisito, mas cadenciado, e que dá impressão de dança de selvagens.

          Assim, pelo estudo que acabamos de fazer, embora muito incompleto, sobre “A expressão artística nos alienados: contribuição para o estudo dos símbolos na arte”. Observamos que esses infelizes habitantes das “Casas de Orates” também possuem emoções, também se preocupam com arte. Os símbolos de suas manifestações artísticas constituem, como vimos, material precioso para estudo da gênese das psicoses. Os símbolos entre os alienados representam o subconsciente revelado. Dessa maneira, explica a teoria de Freud, a origem das neuroses. E, ao contrário do que pensa a psicologia antiga, é ele absolutamente dinâmico.

          Freud separa do inconsciente o pré-consciente e o inconsciente propriamente dito. Daremos, em seguida, a descrição dessa divisão, como a resumir o professor Franco da Rocha, que é a mais clara e completa das que temos notícia.

          “O psiquismo inconsciente se divide em dois sistemas[2]: 1) – o inconsciente propriamente dito, cujos elementos, em número infinito, não adquirem jamais a qualidade de consciente; 2) – o pré-consciente, constituído de menor número de elementos, que podem, como os anteriores, influir sobre os fenômenos de consciência e, mais ainda, suscetíveis de se tornarem conscientes”.

          “O primeiro é o mais vasto e o que se fixa, desde a infância, nas primeiras quadras da existência. Aí estão as forças diretrizes do pensamento e dos atos: os instintos e as mais fortes tendências do indivíduo. O segundo, muito mais limitado, constitui uma zona limítrofe entre o inconsciente e o consciente; abrange todos os fenômenos de distração, devaneio, inspiração, sonho noturno, que são revelações subjetivas da realidade interna ignorada. São, como na flora dos nossos campos, os ramúsculos, folhas e flores das árvores subterrâneas que as constantes queimadas recalcam e obrigam a viver, como raízes, no subsolo”.

          “Vê-se por aí que Freud teve receio da linguagem comum da psicologia: evitou o termo subconsciente e criou o pré-consciente para substituí-lo. Tem para isso suas razões, embora admita todos os graus possíveis de transição entre o inconsciente e o consciente”.

          “Os elementos do sistema II são sujeitos a instâncias deformadoras, isto é, a funções que exercem uma espécie de crítica mental sobre aqueles que tendem a transpor o limiar da consciência. O conjunto dessas funções, que se interpõe na zona ideal entre o consciente e o inconsciente, e serve como de prisma para não deixar passarem os elementos sem os ter primeiro deformado, chama-se censura. Esta é uma força modificadora do nosso psiquismo, adquirida por meio da educação. Os limites do pré-consciente marcam a zona de ação da censura, que, como um prisma psíquico deformador, constitui um sistema de forças antagônicas em relação ao sistema I de forças instintivas do indivíduo. Assim, variando seus limites de influência, de acordo com as condições da cultura social, coletiva e individual, ela circunscreve a personalidade do homem adulto e civilizado. A censura age mais ou menos energicamente sobre a infinidade dos nossos pensamentos, afrouxando de quando em quando sua ação, no correr de um devaneio, por exemplo, para permitir a entrada no pré-consciente (por contrabando) de alguns fragmentos do inconsciente colocado no limiar desse vasto sistema. Ele se fortalece no decurso da vida individual e, no homem socialmente aperfeiçoado, é o índice das coerções da moral e da ética”.

          “A censura é o primeiro elemento da instância consciente, como adaptação à vida social. Apesar de serem os nossos pensamentos quase exclusivamente dirigidos pelo inconsciente, a consciência, para Freud, posto que seja um órgão imperfeito de percepção, pode modificar sensivelmente o curso dos fenômenos psíquicos, e é isso que distingue o homem do animal. Ela age dando importância a alguns elementos, enfraquecendo outros, fazendo, enfim, modificações na distribuição de sua carga afetiva, prazer ou dor. Por meio da atenção, da vontade, da dialética, a consciência pode trazer um certo grau de equilíbrio nessa distribuição de energia afetiva, de modo a modificar os resultados das forças instintivas inconscientes. A cultura, a pedagogia, a higiene moral podem, até certo ponto, alargar o campo de ação da consciência. Do mesmo modo, a psicoterapia também age, canalizando e utilizando num sentido racional as representações ou atos até então penosos ou inúteis ao indivíduo. Para os adeptos da escola, é esse exatamente o resultado da psicanálise”[3].

          Assim, pelas considerações que acabamos de ver, acerca do psiquismo inconsciente, a doutrina de Freud veio revolucionar a psicologia, criando métodos originais para o verdadeiro conhecimento dos fatos remotos da vida do indivíduo. E é principalmente por intermédio dos sonhos, onde a simbologia freudiana se mostra de uma riqueza insuperável, que a psicanálise vai buscar o grande material para o seu estudo. Os símbolos são, em sua maioria, de significação sexual (veja página 33).

          Nos alienados, os símbolos gráficos têm o mesmo significado que os símbolos oníricos nos indivíduos normais. “Nous pouvons[4], par le symbole, comprendre les sentiments des aliénés même dans la démence precoce, à condition de découvrir par la psychanalise la clef de leur simbolisme particulier”.

          “Grâce au transfert des éléments affectifs de l’object à son symbole, si net dans le cas de vénération fétichiste, le symbolisme permet une réalisation figurée des déssins que les circonstances rendent irréalisables sans leur forme originale et, par suíte, une certaine satisfaction. Le symbolisme comme une fonction absolutement essentialle de notre esprit, peut s’exercer automatiquement et échapper au controle de la conscience. Il donne un moyen de forcer la censure en vie de la création d’um monde imaginaire qui réalise, sous des symboles non interprétés, les dessins refoulés dans l’inconscient: tel est le cas de rêve”.

          “A simbolização, que é hoje a única linguagem do inconsciente dinâmico”, diz Franco da Rocha[5], “já foi em épocas remotíssimas o único processo mental de nossos antepassados; é uma sobrevivência da estrutura anacrônica do pensamento. O modo atual de pensar não pode romper por encanto seus vínculos com o passado”[6].   



[1] Exceção feita, como vimos na página 66, de um demente precoce do Hospital de Juqueri. Em todo caso, a cultura artística dessa doente já datava de muito tempo antes de começada a psicose.

[2] Franco da Rocha. O pansexualismo na doutrina de Freud. São Paulo, 1920.

[3] Obra citada, páginas 7-10.

[4] Laforgue-Allendy. La Psychanalyse et les nevroses. Payot, Paris, 1924, p. 184.

[5] Obra citada, página 97.

[6] “Na autobiografia de um paranoico instruído (mais propriamente parafrênicos) julgou Freud ter encontrado as relações de ideias delirantes do paciente com as criações mitológicas da humanidade de outras eras. Na obra de S. Reinach (Cultos, Mitos e Religiões) achou ele um mito que explicaria os atos anormais do alienado em questão, atos esses que não são raros nesses doentes, porquanto os tenho observado em diversos dos meus pacientes. Tal é a fixação do olhar contra o sol. Sempre supus que essa prática tivesse, talvez, por fim, remover alucinações visuais. É possível que seja isto verdade, o que não exclui a interpretação de Freud, contra a qual não tenho objeção séria. Eis o mito: os antigos naturalistas diziam que só as águias, como habitantes das mais altas camadas do ar, tinham íntimas relações com o sol, o céu e o raio. E mais, que as águias submetiam seus filhos a uma prova de origem: obrigavam-nos a encarar o sol antes de serem reconhecidos como legítimos. Se não podiam encarar o astro sem piscar, eram lançados fora do ninho. O doente de Freud gabava-se de ser descendente da mais alta nobreza celeste. Dizendo que podia encarar o sol impunemente, sem ser ofuscado, não fazia ele mais do que repetir uma expressão mitológica, para firmar suas relações com o sol, de acordo com o seu delírio de grandeza. É perfeitamente possível que assim seja”. (S. Freud. Psychoanalystiche Bemerkungen uber einen Fall von Paranoia. Neurosenlehre, 1913) citado por Franco da Rocha, às páginas 97-98.

sexta-feira, 25 de março de 2022

A Expressão Artística nos Alienados – Capítulo 7 – Parte 8

  

...continua Osório César...

 

     Os desenhos nos paralíticos gerais, em certos casos, apresentam caracteres originais. Como exemplo citamos a figura 83. Positivamente, esse desenho foi feito no período de excitação intelectual do doente. Ele representou nessa interessante composição todo um mundo de imaginação que o seu cérebro sentiu passar naquele momento, através de seu delírio de grandeza. A figura do centro do quadro tem uma intenção mística. Ela está vestida à maneira de um grande sacerdote e traz a cabeça aureolada por um disco luminoso. Em torno a esta figura, que apresenta proporções extravagantes, veem-se pequenos animais e vegetações ornando a composição. Tudo isto faz-nos pensar num delírio dispersivo e exuberante.



 

domingo, 3 de outubro de 2021

A Expressão Artística nos Alienados - Capítulo 7 - Parte 7

  

...continua Osório César, citando noções da psiquiatria de sua época...

(1929)

 

     Poderemos citar também aqui, como exemplo típico de fecundidade intelectual na paralisia geral, o caso do consagrado novelista francês, Guy de Maupassant. Contaremos a sua história para melhor constatarmos a sua capacidade produtiva literária durante os períodos da terrível moléstia que o prostrou.

     Guy de Maupassant nasceu em 5 de agosto de 1850. Seu pai era dotado de um caráter fraco, instável e de uma mediocridade intelectual não duvidosa. Sua mãe era uma neuropata; foi internada por sofrer de “paroxismos de furor, por ataques terríveis”; tentou suicidar-se com laudanum e por estrangulamento. Hervé, único irmão de Guy de Maupassant, seis anos mais moço do que ele, foi um “raté” [fracassado] e morreu com 33 anos, paralítico geral.

     Durante os períodos de infância e adolescência de Guy de Maupassant, a sua saúde foi boa. Aos 13 anos ele frequentou o seminário d’Yvetot. Depois foi internado no Liceu de Rouen, onde acabou os seus estudos. Terminada a guerra de 70-71, na qual ele tomou parte, Maupassant volta a Paris. Esteve empregado no Ministério da Marinha e em seguida agregado ao gabinete de M. Bardoux, Ministro da Instrução Pública. Em 1880 ele abandona este seu emprego, depois do sucesso alcançado pela Boule de Suif. Segundo os seus biógrafos, a sua vida patológica já havia começado desde 1872. Nessa época ela se caracteriza pela neurastenia, excessos sexuais e de bebidas alcoólicas. Em 1882 aparece Fou? Na coleção Mademoiselle Fifi. Desde então, ele começa a ter medo da morte e esta ideia o acompanha como uma obsessão por toda a sua vida.

     No seu livro Au Soleil, volume publicado em 1884, vemos-lhe torturado por aquela obsessão:

     La vie si courte, si longue, devient parfois insupportable. Elle se déroule toujours pareille, avec la mort au bout… Quoi que nous fassions, nous mourrons! Quoi que nous croyions, quoi que nous pensions, quoi que nous tentions mourrons... On se sent écrasé sous le sentiment de l’immortalle misère de tout, de l’impuissance et de la monotonie des actions”.

[tradução: “A vida, seja curta ou longa, torna-se às vezes insuportável. Essa se desenvolve sempre parelha com a morte à espreita... O que quer que façamos, nós morremos! O que quer que creiamos, que pensemos, que tentemos, morremos... A pessoa se sente esmagada sob o sentimento da imortal miséria de tudo, da incapacidade e da monotonia das ações”]

     Paul Bourget, que foi íntimo de Maupassant, observou desde essa época “de cruelles hallucinations” no seu amigo. Em 1887 aparece Le Horla, que é o livro mais interessante da segunda fase intelectual de Maupassant. Nota-se nele um produto da imaginação de um cérebro anormal. É mui digna de nota a riqueza de documentação psiquiátrica que esse livro apresenta nos seus capítulos. Em Le Horla deparamos com um imenso repositório de ideias delirantes, de falsas interpretações, de ideias de negação e de enormidade.

     Em suma, é um livro sentido, em que os fenômenos alucinatórios são descritos fielmente da própria imaginação do autor.

     Le Horla não morreu, ele atravessou as portas bem fechadas, ele resistiu ao incêndio: “Alors... alors... il va donc falloir que je me tue, moi!”

[tradução: “Então...então... se faz necessário que eu me mate, eu!”]

Quem leu Le Horla, livro emocionante, cheio de desespero, de agonia, obsessão de um cérebro alucinado, poderá melhor avaliar o sofrimento e o pavor que tanto preocuparam Maupassant da ideia do fim. Falando sobre esse livro, disse Lagriffe[1] “...il leur parut étrange, sans signification et sans portée, mais aujourd’hui il nous apparait comme le plus beau et le plus navrant cri de désespoir qui jamais ait été jeté par une intelligence demeurée géniale malgré la maladie”.

[tradução: “parecia-lhes estranho, sem significação e sem finalidade, mas hoje nos parece como o mais belo e mais comovente grito de desespero que jamais foi lançado por uma inteligência genial, apesar da doença”.]

     Em 1891 é quando sua moléstia mais se acentua. Numa carta escrita nessa época por Maupassant, ele descreve o resultado da consulta que fez a Déjerine, cujo fac-símile encontra-se na obra de Lombroso[2], atestado patente da natureza do mal que o prostrou. A escrita é desigual e um pouco trêmula, há excitações, erros grosseiros de ortografia e as letras são mal-formadas. Notam-se ideias de grandeza a propósito de sua peça Musotte. Enfim, em 1892, Maupassant foi internado na casa de Saúde do Dr.  Blanche, em Passy, logo depois das suas duas tentativas de suicídio.

     A história de Maupassant na Casa de Saúde de Dr. Blanche é uma história simples, como veremos da descrição que dela fez Angeli[3]:  

     “Il passait des heures entières dans le jardin, régardant les fleurs et les plantes… Tous les phénoménes de la vegetation l’attiraient spécialement; il voyait une vie obscure dans ces fleurs et dans ces plantes et il exprimait cette vision avec des phrases puériles d’une tristesse infinie”.

[tradução: “Ele passa horas inteiras no jardim, olhando as flores e as plantas... Todos os fenômenos da vegetação o atraem especialmente; ele via uma vida obscura entre essas flores e plantas e exprimia essa visão com frases pueris de uma tristeza infinita”]

     “Le médecin qui le soignait a recuelli beaucoup de ces phrases sur um petit carnet qui j’ai eu la bonne fortune de voir chez le comte Joseph Primoli. Les plus souvent, il était préoccupé de la profundeur de la terre et du préjudice que les ingénieurs lui portaient. Cette idée se repete souvent comme une ritournelle, dans ces notes brèves: voilà les ingénieurs qui foillente la terre, les ingénieurs qui creusent...”

[tradução: “O médico que o tratou recolheu muitas dessas frases sobre um pequeno caderno que eu tive a sorte de ver com o Conde Joseph Primoli. Mais frequentemente, ele estava preocupado com a profundeza da terra e do prejuízo que os engenheiros lhe causavam. Esta ideia se repete frequentemente como uma canção que retorna em suas notas breves: eis is engenheiros que fabricam a terra, os engenheiros que escavam...”]

     “Les dernieres paroles sont comme une confession et comme un voeu: Des tenébres! Oh! Des tenébres!”

[tradução: “As últimas palavras são como uma confissão e como um desejo: Trevas! Oh! Trevas!"] 

     Guy de Maupassant morreu de paralisia geral no dia 6 de julho de 1893, depois de um ano e meio de sua internação na Casa de Saúde do Dr. Blanche.

      



[1] Lucien Lagriffe – Guy de Maupassant. Etude de psychologie pathologique. Annales médico-psychologiques. Nº 2, 1908, pag. 223-224.

[2] Albert Lombroso - Souvenir sur Maupassant. Bocca. Roma. 1905.

[3] Diego Angeli – Didacus, 1895, citado por Lombroso, pag. 516.

domingo, 26 de setembro de 2021

A Expressão Artística nos Alienados – Capítulo 7 – Parte 6

  

Lembremos que a doença que era chamada de Paralisia Geral, nessa época, correspondia à sífilis cerebral. Na época de Osório César já se conhecia o treponema pallidum que era o agente causal dessa moléstia. Mas ainda não tinha se desenvolvido o tratamento que surgiria a partir da penicilina tempos depois.  

 

Continua Osório César...

 

     Vejamos, como exemplo, os versos de um paralítico geral, homem de letras, antigo pensionista de Ville-Évrard:

“Quel crime ai-je commis pour être solitaire?

Je ne vois sous mes yeux que des fous torturés

Et des brutes frappant leurs corps défigurés.

Je n’ai d’autres recours que prier et me taire:

Oh! Seigneur, si je vous ai toujours bien servi,

Brisez l’asile infame où mon âme agonise.

Si ma captivité plus longtemps s’éternise,

Que dois-je faire, ô maitre, em qui ma foi survit?

J’ai, calme et réfléchi, suporte les injures

De tous les médecins liant ma volonté,

Et je sens s’élever dans mon Coeur irrité,

Une haine de fou pour ces docteurs parjures.

Laches! Vous ferez bien de ne pas provoquer

D’un seul affront de plus ma fierté qui s’indigne;

Car d’un seul de mes poings, avec ma force insigne

Je ferais d’un seul coup votre tête craquer.”[1]

[Tradução a seguir]

[Qual crime eu cometi para ser solitário?

Só vi sob meus olhos loucos torturados

E brutos sacudindo seus corpos desfigurados

Eu não tive outros recursos que orar e me abafar:

Oh, Senhor! Se eu sempre lhe bem servi

Acalma o asilo infame onde minha alma agoniza

Se minha escravidão por muito tempo se eterniza

Que devo fazer, oh mestre, para que minha fé sobreviva?

Eu tenho, calma e refletidamente, suportado as injúrias

De todos os médicos ligando minha vontade

E eu sinto se elevar no meu coração irritado

Uma raiva de louco por esses doutores todo dia.

Covardes! Vocês fariam bem de não provocar

Com mais uma afronta meu orgulho que se indigna;

Porque de um só de meus punhos, com minha força insigne

Eu faria de um só golpe vossa cabeça rachar.]

 

 



[1] Comunicado por Sérieux. Citado por Antheome et Dromond. Obra cit. Pag. 253.

domingo, 28 de março de 2021

A Expressão Artística nos Alienados – Capítulo 7 – Parte 5

  

Continua o texto de Osório César...

Lembremos que o texto é da década de 20 do século XX...

 

     É no período inicial da paralisia geral que a fecundidade intelectual se mostra mais intensa.

     A paralisia geral é uma terrível moléstia mental de origem sifilítica. Atualmente é a moléstia mental melhor conhecida sob o ponto de vista anátomo-clínico. Foi admiravelmente estudada por Bayle em 1822, em sua tese Arachnitis chronica.

     A sintomatologia da paralisia geral é bem característica. A moléstia tem uma evolução longa. No começo ela passa quase que desapercebida. O indivíduo apresenta ligeira mudança de caráter; humor alegre e prazenteiro. A autocrítica vai pouco a pouco desaparecendo e o doente começa a praticar coisas desconcertantes com o seu meio de vida. Assim, se o indivíduo é pobre, se é um pai de família honesto e respeitador, começa a gastar desabridamente, sem pensar nos filhos e, ao mesmo tempo, a apregoar fortuna que não existe. A sua moral decai completamente. É o delírio de grandeza, é o delírio erótico que dão o toque de alarme à terrível moléstia. Muito antes desses fenômenos se acentuarem, o paralítico geral vai passando na sociedade muitas vezes como um homem espirituoso, inteligente e realizador de ótimos negócios. Esse período pode durar muito tempo. É o período chamado pelos psiquiatras de “pré-paralítico”, “pré-delirante” (Christian), período médico-legal de Legrand de Saulle. Depois, pouco a pouco, esses fenômenos vão se acentuando de uma maneira assustadora ao lado de outros sintomas característicos da moléstia, como a disartria[1], a desigualdade pupilar, etc, sobrevindo logo as crises epileptiformes que denunciam a marcha fatal da moléstia.  

     O delírio de grandeza, que constitui um dos sintomas capitais para o diagnóstico da paralisia geral, é geralmente de forma expansiva. Esse delírio, por vezes, toma colorido especial e o seu conteúdo é tirado diretamente da profissão do indivíduo. Destarte, se o doente é escritor, os seus livros são os melhores do mundo; a suas edições são de trezentos milhões de exemplares; os seus livros foram traduzidos em todas as línguas da terra. Se é comerciante, ele diz que tem relações com todas as casas bancárias do mundo, que a sua riqueza não tem conta e fala somente em trilhões de moedas de ouro. É o delírio megalômano dos paralíticos que não possui limites.

     Conheci um doente paralítico geral no Hospital do Juquery, que tinha curioso delírio erótico de grandeza. Quando conversávamos, ele sempre me dizia: “Dr., eu tenho trezentas mil mulheres, todas novas e lindas sem par. O senhor pode escolher as que o senhor desejar, eu as faço presente. O meu membro é maior do que o Himalaia. Eu sou capaz de estar numa só noite com todas as mulheres do mundo”. No entanto, esse pobre doente se achava numa miséria física lastimável, em estado caquético.

     Por aí podemos ver o absurdo do seu delírio expansivo.

     “Todos os médicos sabem”, diz Moreau de Tours, “que é precisamente numa época onde tal indivíduo mostrou disposições intelectuais sem ninguém as haver suspeitado anteriormente, que a moléstia o surpreendeu: se é um homem de estudo, mais facilidade no trabalho intelectual, espontaneidade, imprevisto, originalidade nas ideias, nas concepções, esplendor na imaginação; se é um homem de negócios, mais capacidade, mais resolução nas especulações, mais segurança desta vez nos sucessos tão necessários para conduzir o bem das empresas difíceis... Tais são, comumente, os fenômenos psíquicos que, entre a maior parte dos paralíticos gerais, denunciam o prelúdio da moléstia”.

     Falando sobre a poesia e os paralíticos gerais, diz Régis[2]: “No começo desta terrível afecção, a inteligência, antes de soçobrar, arremessa frequentemente um último e vivo clarão. Nessa fase prodrômica de ‘dinamia funcional’, os doentes, possuídos por uma estimulação irresistível, produzem, com uma abundância e um calor incríveis, obras de toda espécie. Muitos desses trabalhos sentem já a demência iminente; a maior parte, entretanto, possui algum valor e, seja na escolha do motivo, seja no caráter ultra expansivo dos sentimentos, seja na vivacidade da forma e da expressão, trazem nitidamente a marca da exaltação mórbida que lhe deu nascença”.

 

 



[Referências colocadas por Osório César]

[1] Na disartria há dois tipos: o trêmulo e atáxico, o parético e espasmódico. No primeiro há incoordenação da palavra e grande tremor, sendo ela entrecortada, hesitante e incerta. No segundo, é ela mais vagarosa, mais soletrada, mais cantada e mais firme (Roxo).

[2] Poésie et Paralysie Générale – L’Encéphale, pag. 175. Março – Abril, 1906.

quinta-feira, 4 de março de 2021

A Expressão Artística nos Alienados – Capítulo 7 – Parte 4

  

A tradução não faz parte do texto original.

...continua Osório César...

 

      A melancolia também empresta à arte alguns momentos de atenção. Sob o nome de melancolia designou Pinel todo o delírio parcial, qualquer que fosse a sua natureza, alegre ou triste, expansivo ou depressivo. O termo tem hoje [em 1929] uma significação diversa. Segundo a escola de Kraepelin, como vimos atrás, a melancolia não é mais aceita como entidade mórbida independente, sendo encaixada na psicose maníaco-depressiva, de que constitui a forma melancólica, assim como a mania representa a forma maníaca. Naturalmente não queremos falar aqui dos doentes deprimidos, acompanhados de relaxamento profundo de todas as faculdades intelectuais, onde só se encontra absoluta esterilidade de imaginação artística.

      A esses muito bem podem ser aqui encaixadas as palavras do rei D. Duarte[1] no “Leal Conselheiro”, sobre a “melancolia-temperamento”: os doentes “só cuidam das coisas tristes, do aborrecimento de si, de outrem, com desesperança de todo o bem e grande suspeita dos males não requeridos, semelhando por sua frialdade e secura a terra seca de águas, que fruto bom e proveitoso não pode gerar”.

     É justamente entre os casos atenuados de melancolia, nos estados crepusculares, onde existe vislumbre de ideação, que vamos encontrar, algumas vezes, manifestações de arte.

     Como exemplo, escutemos estes harmoniosos versos intitulados “Pluie” [Chuva]:

Le ciel gris s’ennuie:

Une fine pluie

Pénètré mes os,

Et ma chair frissone.

La cloche qui sonne

L’enroue sous les eaux.

La pluie fine verse

Son onde. Et l’averse

Impassiblement

Mouille toute chose,

L’insecte et la rose.

Je vois vaguement…

Mon âme transie

Par l’humidité

Erre d’aventure,

Frémissante et pure

Dans l’air hébété.[2]

[Tradução livre:

“O céu cinza se entedia

Uma fina chuva

Penetra meus ossos

E minha carne treme.

O sino que soa

Se entedia sob as águas.

A chuva fina dirige

Sua onda. E o aguaceiro

Impassivelmente

Molha todas as coisas,

O inseto e a rosa

Eu vejo vagamente

Minha alma transida

Pela umidade

Vagueia em aventura

Tremente e pura

No ar atordoado”]

 

   



Referências originais de Osório César:

[1] Obra citada na página 129.

[2] Coleção do Asilo de Marselha. Citado por Antheaume et Dromard. Obra citada na página 268.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

A Expressão Artística nos Alienados Capítulo 7 – Parte 3

 

Neste livro Osório César usava linguagem psiquiátrica dos anos 20 do século XX.

As traduções não fazem parte do texto original. Os rodapés sim.

 ...continuamos com o texto de Osório César...


     Para Leconte de Lisle a poesia é: “...à ciseler des archaismes, à pendre précieusement des effets de lumière et de pluie, des bouts de paysage oriental avec figures...”

[tradução livre: “trabalhada pelos arcaísmos, sustenta preciosamente os efeitos da luz e da chuva, de relances de paisagem oriental com figuras...”]

     E para que tudo isso se realize o que é preciso? Ser poeta e ter inspiração. “L’étincelle est l’inspiration, sorte d voix intérieure qui semble dicte, au poéte ce qu’il doit écrire”[1]

[tradução livre: “a faísca é inspiração, tipo de voz interior que parece dita ao poeta que a deve escrever”]

     É o que os antigos diziam:

     “Est Deus in nobis, agitante callescismus illo”.

 [tradução livre: “Há um Deus em nós por cujo movimento somos agitados”]

     Ouçamo-lo agora em

 

     Mulher Divina

 

Mulher divina, vos canto um hino,

eu sou um velho porém sou menino...

Ai! Bem sei apreciar a beleza

de quem é a rainha da gentileza.

  

Formosa, quando viestes ao mundo,

houve um contentamento profundo:

Os pássaros bem alegre trinavam,

os anjos, em coro, no Céu cantavam.

 

Cantavam um hino de alegria

por haver nascido a ideal Maria,[2]

brilhava a estrela matutina

quando chorou a divinal menina.

 

     Encontra-se de tudo nesta poesia: sentimento, espontaneidade e simplicidade. Vejamos finalmente uma das suas últimas produções:

 

     Entrei no Juquery

 

Eu entrei no triste Juquery

onde não canta a jurity,

entrei com lágrimas no olhar

porque eu vi que vinha penar.

 

E depois de um longo tempo,

que para mim foi um tormento,

aqui, feliz, tornei a nascer:

ao protetor vou agradecer.

 

Meus agradecimentos, Doutor,

me fizestes um grande favor:

eu estava na sepultura:

me destes vida, formosura...

 

Formosura, sim, quem tem saúde

pode tocar seu alaúde,

cantar ao violão, ao luar,

fazer uma morena chorar.

 

     Destarte, a sua poesia apresenta um estilo simples e de sabor primitivo, sem preocupação de forma, semelhante àquelas dos poetas espontâneos, dos cancioneiros d’Ajuda, dos trovadores medievais, dos nossos rimadores sertanejos e das cantigas populares.

     É o que explicam Antheaume et Dromard no seguinte trecho:[3]

“O espírito poético, agindo à maneira daquele das crianças e dos primitivos, não evoca senão as percepções elementares no estado nascente, e utilizada, se assim se pode dizer, em sua ganga bruta. Os símbolos, as metáforas, as comparações, as alegorias, se casam à cadência dos versos e à música da rima, assim como à harmonia geral e imitativa das palavras, para concorrer a um conjunto de representações capazes de sugerir todos os atributos da ideia dominante, ou melhor, da impressão final”.

 

 



[1] Henri Vigen – Le talento poétique chez les dégénérés. Thése de Bordeaux, 1904.  

[2] Refere-se a uma enfermeira do Hospital.

[3] Obra citada na página 129.