Continua o texto de Osório César...
Lembremos que o texto é da década de 20 do século XX...
É no período
inicial da paralisia geral que a fecundidade intelectual se mostra mais
intensa.
A paralisia geral
é uma terrível moléstia mental de origem sifilítica. Atualmente é a moléstia
mental melhor conhecida sob o ponto de vista anátomo-clínico. Foi
admiravelmente estudada por Bayle em 1822, em sua tese Arachnitis chronica.
A sintomatologia
da paralisia geral é bem característica. A moléstia tem uma evolução longa. No
começo ela passa quase que desapercebida. O indivíduo apresenta ligeira mudança
de caráter; humor alegre e prazenteiro. A autocrítica vai pouco a pouco
desaparecendo e o doente começa a praticar coisas desconcertantes com o seu
meio de vida. Assim, se o indivíduo é pobre, se é um pai de família honesto e
respeitador, começa a gastar desabridamente, sem pensar nos filhos e, ao mesmo
tempo, a apregoar fortuna que não existe. A sua moral decai completamente. É o delírio
de grandeza, é o delírio erótico que dão o toque de alarme à terrível moléstia.
Muito antes desses fenômenos se acentuarem, o paralítico geral vai passando na
sociedade muitas vezes como um homem espirituoso, inteligente e realizador de
ótimos negócios. Esse período pode durar muito tempo. É o período chamado pelos
psiquiatras de “pré-paralítico”, “pré-delirante” (Christian), período
médico-legal de Legrand de Saulle. Depois, pouco a pouco, esses fenômenos vão
se acentuando de uma maneira assustadora ao lado de outros sintomas
característicos da moléstia, como a disartria[1],
a desigualdade pupilar, etc, sobrevindo logo as crises epileptiformes que
denunciam a marcha fatal da moléstia.
O delírio de
grandeza, que constitui um dos sintomas capitais para o diagnóstico da
paralisia geral, é geralmente de forma expansiva. Esse delírio, por vezes, toma
colorido especial e o seu conteúdo é tirado diretamente da profissão do
indivíduo. Destarte, se o doente é escritor, os seus livros são os melhores do
mundo; a suas edições são de trezentos milhões de exemplares; os seus livros foram
traduzidos em todas as línguas da terra. Se é comerciante, ele diz que tem relações
com todas as casas bancárias do mundo, que a sua riqueza não tem conta e fala
somente em trilhões de moedas de ouro. É o delírio megalômano dos paralíticos
que não possui limites.
Conheci um doente
paralítico geral no Hospital do Juquery, que tinha curioso delírio erótico de
grandeza. Quando conversávamos, ele sempre me dizia: “Dr., eu tenho trezentas
mil mulheres, todas novas e lindas sem par. O senhor pode escolher as que o
senhor desejar, eu as faço presente. O meu membro é maior do que o Himalaia. Eu
sou capaz de estar numa só noite com todas as mulheres do mundo”. No entanto,
esse pobre doente se achava numa miséria física lastimável, em estado
caquético.
Por aí podemos ver
o absurdo do seu delírio expansivo.
“Todos os médicos
sabem”, diz Moreau de Tours, “que é precisamente numa época onde tal indivíduo
mostrou disposições intelectuais sem ninguém as haver suspeitado anteriormente,
que a moléstia o surpreendeu: se é um homem de estudo, mais facilidade no
trabalho intelectual, espontaneidade, imprevisto, originalidade nas ideias, nas
concepções, esplendor na imaginação; se é um homem de negócios, mais capacidade,
mais resolução nas especulações, mais segurança desta vez nos sucessos tão
necessários para conduzir o bem das empresas difíceis... Tais são, comumente,
os fenômenos psíquicos que, entre a maior parte dos paralíticos gerais, denunciam
o prelúdio da moléstia”.
Falando sobre a
poesia e os paralíticos gerais, diz Régis[2]:
“No começo desta terrível afecção, a inteligência, antes de soçobrar, arremessa
frequentemente um último e vivo clarão. Nessa fase prodrômica de ‘dinamia
funcional’, os doentes, possuídos por uma estimulação irresistível, produzem,
com uma abundância e um calor incríveis, obras de toda espécie. Muitos desses
trabalhos sentem já a demência iminente; a maior parte, entretanto, possui
algum valor e, seja na escolha do motivo, seja no caráter ultra expansivo dos
sentimentos, seja na vivacidade da forma e da expressão, trazem nitidamente a
marca da exaltação mórbida que lhe deu nascença”.
[Referências colocadas por Osório César]
[1]
Na disartria há dois tipos: o trêmulo e atáxico, o parético e espasmódico. No
primeiro há incoordenação da palavra e grande tremor, sendo ela entrecortada,
hesitante e incerta. No segundo, é ela mais vagarosa, mais soletrada, mais
cantada e mais firme (Roxo).
[2]
Poésie et Paralysie Générale – L’Encéphale, pag. 175. Março – Abril, 1906.
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