Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

A Expressão Artística nos Alienados Capítulo 7 – Parte 2


     Devemos assinalar que a linguagem psiquiátrica usada por Osório César nesta obra é da década de 20 do século XX.
     As notas de rodapé são do autor.

...continuamos com o texto de Osório Cesar...

     Moreau de Tours[1] conta-nos ter observado durante quase dois anos “um jovem pertencente a uma família na qual eram comuns os homens de inteligência, que caiu bruscamente, sem causa apreciável, em exaltação maníaca. Vários dias, antes e depois do acesso, ele passou uma grande parte do tempo a escrever e a compor versos. Todos os assuntos lhe serviam e fora difícil encontrar nas suas composições vestígios da moléstia que acabara de sarar e que o havia de acometer alguns dias mais tarde”.
     Vamos ver a história de um interessante poeta hipomaníaco e os seus mais curiosos poemas:

      A.[2], branco, brasileiro, 52 anos, casado, entrado em 25 de maio de 1918.
     Pai nervoso e melancólico. Teve um tio deprimido. Tem vários filhos, alguns dos quais psicopatas (débil um, quase idiota outro). O observado foi quase sempre um psicopata, tímido, desconfiado. Há 12 anos teve uma infecção venérea que diz ter sido sifilítica. Há 8 anos, esteve durante 8 meses internado no Instituto Paulista, de onde saiu bom. Somaticamente apresenta-se muito magro, com insônia rebelde; come pouco. Seu estado mental reveste o caráter de profunda depressão psíquica. É completamente alheio ao que se passa em torno de si, só se preocupando com a sua pessoa, e lastima-se constantemente. Com o sobrolho franzido, fácies melancólico, queixa-se de que está muito doente, de que é um desgraçado, arruinado e perseguido.
     Em 1919 foi novamente observado o paciente, achando-se em estado de grande prostração física e psíquica, grande depressão, ideias hipocondríacas, arrastando-se pelo chão, “a fim de penitenciar-se dos malefícios que praticara”, pois, por “sua causa a família toda havia sido lançada na miséria e todas as desgraças advindas ultimamente aos Taubateanos tinham emanado dele, paciente”. Teve crises de pranto, punha-se em atitude mística a implorar aos céus a remissão de seus pecados e negava-se a estender a mão a quem quer que fosse, certo de que isso lhe iria (não ao doente) causar males. Vivia deitado nos centros do pátio, isolado dos companheiros, descuidado de sua toilette e de suas funções fisiológicas.
Hoje o paciente acha-se em estado de hipomania; muito loquaz, amável em extremo, contador de anedotas, a criticar os enfermeiros, veste-se bizarramente, usa adornos extravagantes, como sejam uma grande medalha de papelão, pendente a uma grosseira corrente de arame (comenda da legião de Thoma, diz o doente); uma cartola de papelão, gravata vermelha, das mais carnavalescas, anel de chumbo, com mancha vermelha à guisa de pedra preciosa. Tagarela o mais que pode, contando com espírito fatos de sua vida passada; “namora” o dia todo o lado em que fica o pavilhão das mulheres e dirige, a uma das doentes, cantigas e trovas amorosas. Escreve o que dá o dia e não há papel que lhe chegue; qualquer ocorrência, por banal que seja, constitui motivo para seus versos. Faz discursos eloquentes às vezes e levantou, de uma feita, a candidatura de um dos nossos políticos à presidência da República[3].

     Esta observação feita pelo Dr. Francisco Marcondes, psiquiatra do Hospital do Juquery, data de 1924. Hoje o doente se apresenta calmo, porém a sua excitação intelectual ainda persiste. A inspiração poética neste doente tornou-se uma fonte inesgotável. Qualquer acontecimento, por mais banal que seja e de que ele ciente esteja, tanto basta para despertar o seu estro poético. Surge então uma dezena de sonetos e quadrinhas alusivas ao fato; muitas delas são até interessantes por trazerem um tom picante e jocoso que é peculiar ao seu estilo. Entretanto, na maioria das coisas que escreve, sente-se um lirismo com base erótica bem acentuada.
     Apreciemos esta sua composição:

               Mão quente, mão fria
                                                        (a alguém)
     Mão quente quer dizer coração frio...
     mão fria quer dizer coração quente...
ora, um dia, me abraso, de repente,
quando o meu braço no teu braço enfio.

Se, nesse tempo, as nossas mãos trançadas,
eram as tuas cálidas, ardentes,
só tuas mãos cada vez mais quentes...
eram as minhas gélidas, geladas...

Somos os mesmo após largos dias:
só tuas mãos cada vez mais quentes...
só minhas mãos cada vez mais frias...

     Os versos são bem cadenciados e a expressão é vivaz. Falta o último terceto que ele não quis fazer propositadamente. O tema não é original. Se não nos falha a memória, parece-nos que existe um soneto em língua portuguesa sobre este mesmo motivo. Em todo caso, não o poderemos afirmar. O que podemos garantir é que em A., desde que veio para Juquery, nunca vimos entre suas mãos produções literárias de nenhum poeta. Poesias iguais a essa ele as escreve aos milhares.
     “Mão quente, mão fria” foi dedicada a uma enfermeira do Hospital. A. é um namorador infatigável. A cada namorada que ele arranje, uma dezenas de poesias ele compõe. Nos versos que acabamos de citar, oferecidos a uma de suas namoradas, sentimos transparecer um sensualismo palpitante através de uma alma de velho.
     Escutemo-lo em

                                  Leviana

Leviana, ama o cocktail, adora o chá,
é inteligente, porém inútil; por que será?
Não tem alma, não faz o bem, porém é tão formosa,
é bem uma princesa, e tem perfume de rosa...

Todas as tardes ela passa... vai à Estação,
vai ver o seu caro Amor, o seu coração...
sua boca perfumada sabe rir, sabe enganar,
faceira, na sua toilette sabe bem se apurar...

Pobre de mim, para amá-la e compreendê-la,
eu tive um meio: encrustrei-a como estrela
cintilante no azul mais límpido do céu,
pois eu a adoro com egoísmo e seu véu...

     Leviana foi também oferecida a uma outra sua namorada. Realmente, não sabemos o que mais admirar aqui. Se a composição singela, ingênua de inspiração, ou se a harmonia, o ritmo dos versos. Que os versos tenham defeitos técnicos isso é lá com os mestres. Mas ninguém poderá negar que eles revelam um estado d’alma expressionista. E é quanto basta. “A poesia”, diz Grosse[4], “é a expressão pela linguagem de fenômenos exteriores sob uma forma estética e com o fim estético. Esta definição compreende tanto a poesia subjetiva, a poesia lírica, que empresta uma expressão aos fenômenos do mundo interior, aos pensamentos e aos sentimentos do eu, quanto a poesia objetiva, que descreve, sob a forma épica ou dramática, os fenômenos do mundo exterior, dos fatos e dos acontecimentos objetivos. Nos dois casos, a expressão serve de intuito estético; o poeta quer excitar os sentimentos, unicamente os sentimentos. Desta maneira, nossa definição separa de um lado a poesia épica e dramática, da descrição didática e enfática. Toda poesia vem do sentimento e vai para o sentimento. Está nisto o segredo de sua influência”.
     Tal é o que acontece com o nosso poeta.  


     


[1] La Psicologie morbide, pg. 423.
[2] Observações Psychiatricas do Hospital do Juquery.
[3] Candidatura esta que se realizou.
[4] E. Grosse – Les Débuts de L’Art. Felix Lacan. Paris, 1902, pag. 177.

sábado, 15 de dezembro de 2018

A Expressão Artística nos Alienados - Capítulo 7 - Parte 1


No início do capítulo 7, Osório César apresenta um sumário do que vai tratar no Capítulo.

A psicose maníaco-depressiva e o seu conceito médico atual. Manifestações de arte no maníaco (poesias) e no melancólico (poesias). A paralisia geral. O delírio de grandeza dos paralíticos gerais, a poesia e os desenhos. História psiquiátrica de Maupassant na Casa de Saúde do Dr. Bianche.
     
     A psicose maníaco-depressiva é uma moléstia mental conhecida e foi estudada desde Hipócrates.
     Naquele tempo ela era compreendida separadamente: mania e melancolia.
     A mania, segundo interpretação de Hipócrates, caracterizava-se por um delírio violento, agudo e crônico, e provinha da alteração do cérebro motivada pela bílis. A melancolia manifestava-se pela tristeza e pelo medo, quando o cérebro se desarranjava influenciado pela pituita.
     Essas ideias dominaram toda a medicina grega de antes até 80 anos depois da era cristã. Com Areteu da Capadócia é que surgiu a ideia de psicose maníaco-depressiva. Pois esse célebre médico grego “descreveu a mania e a melancolia, dizendo que esta era um começo ou uma espécie de semi-mania, admitindo a passagem da melancolia para a mania e vice-versa” (Roxo).
     A psicose maníaco-depressiva foi bem estudada nos nossos dias por Kraepelin.
     Desde 1899 que esse grande psiquiatra alemão reuniu numa só entidade mórbida a mania, a melancolia e as formas mistas. Sob a feliz designação de psicose maníaco-depressiva.
     Kraepelin admitiu nessa entidade psiquiátrica três grandes classes: estados maníacos, estados depressivos e estados mistos, os quais passaremos a descrever de acordo com o prof. Roxo no seu excelente “Manual de Psiquiatria”, à pág. 368 da 2ª ediç.:

     Nos estados maníacos abrangeu: “a hipomania, a hipermania (Tobsucht), formas delusórias e alucinatórias, formas delirantes”.
     Nos estados depressivos colocou: “a melancolia simples, o estupor, a melancolia gravis, melancolia paranoide, melancolia fantástica e melancolia delirante”.
     Nos estados mistos estudou: “a mania depressiva, a depressão agitada, a mania improdutiva, o estupor maníaco, a mania com furor e a mania inibida”.

     São três os sintomas fundamentais dos estados maníacos: humor alegre, associação rápida de ideias e movimentação exagerada.
     O prof. Roxo compara esse estado com o de um indivíduo que esteja no período inicial da embriaguez, particularmente da vínica. De fato, a comparação, aliás um tanto grosseira, dá realmente ideia desse estado de psicose. Em certos indivíduos o álcool atua de uma maneira curiosa, provocando alegria, otimismo, bom humor, escondendo a timidez e aguçando a inteligência. No maníaco passa-se o mesmo fenômeno. E o mecanismo é idêntico. Tanto num como no outro é a excitação cerebral que provoca a superatividade de funções. No alcoolista é o álcool que vai produzir nas células nervosas o fenômeno e no maníaco são, ou melhor devem ser as toxinas ou os hormônios glandulares os responsáveis pelos distúrbios das funções psíquicas.

     “Há um estado de excitação cerebral”, diz o prof. Roxo, “provocado por um maior afluxo de sangue para o lado do cérebro. Este afluxo não deve ser excessivo, porque então haveria a apoplexia cerebral, mas suficiente para superativar as funções psíquicas. Consequência da maior irrigação cerebral é a alegria, como a tristeza é o que se segue à anemia cerebral. A célula nervosa se sente mais nutrida, ativada em suas funções, e o produto disto é uma sensação de bem-estar que acarreta alegria. Esta chama tanto mais a atenção quanto mais triste e macambuzio era anteriormente o indivíduo".
     “Alegre, prazenteiro, muito afável, o maníaco entra a se despreocupar dos diversos contratempos da vida e a encarar tudo no melhor dos mundos. O indivíduo apreende as coisas muito rapidamente, mas o faz de modo superficial, pouco ponderado. Não há tempo para que o juízo crítico se exerça sobre o que vai reconhecendo”.
     “Apreende tudo pela rama, muito superficialmente e entra logo a discorrer sobre coisas de que tem noção incompleta. Torna-se loquaz e as palavras se precipitam, sem que muitas vezes as frases se completem. Encarando a rigor, há, como bem diz o prof. Afrânio Peixoto, antes uma fuga de palavras do que uma fuga de ideias”.

     Em relação às manifestações artísticas dos maníacos, somente depois que a fase de agitação começa é que eles manifestam as suas ideias, os seus pensamentos e as suas impressões, ora por intermédio da escrita, compondo poemas em prosa e verso, ora por intermédio da plástica, modelando em barro ou massa de pão os motivos de sua imaginação criadora.
     Mas é sobretudo na oratória que eles se distinguem. Constantemente excitados, eles apresentam gestos instáveis, alegria desbordante e ironia contínua; fazem discursos cheios de ênfases, com assonâncias de palavras e jogos de ideias surpreendentes.

     "O maníaco fala muito depressa e Isserlin verificou conseguir ele pronunciar 180 a 200 sílabas num minuto, ao passo que uma pessoa sã não conseguirá proferir mais de 150 (Roxo)”.

     Como oradores, são fogosos, gesticulam abundantemente e são incansáveis. Passam meses inteiros, muitas vezes no meio de um sol ardente, pronunciando os seus estapafúrdios discursos. Falam alto, gesticulam com imponência desassombrada, desandando num palavrório desconcertante em que entra de tudo: política, filosofia, religião, medicina, direito, matemática, geografia, etc. Um verdadeiro caleidoscópio verbal. E o mais interessante é que tomam atitudes cômicas, funambulescas nas suas pregações.
     A indumentária dos maníacos é bastante curiosa. Vestem-se com as roupas às avessas, calças arregaçadas até as coxas; chapéu enfeitado com coisas berrantes. Nessa extravagante postura conseguem eles passar dias e noites a falar e andar sem um momento de descanso sequer, mostrando assim sua resistência inacreditável.
     A fuga de ideias que se manifesta nesses doentes em todos os graus possíveis traz sempre um cunho erótico.
      Como exemplo vejamos o apanhado abaixo que tomamos de um maníaco do Hospital do Juquery:

     “Eu vinhe de Belém vinho de mesa vinho de sima e de Fábrica. Escrevem tudo nem casa fiz. O que Deus faz escreveu na China Guindarte e Annita. Mais nada Ribeirão Preto. Estrada de Ferro Cia. Engleza. Nunca dão para ela mas dão. É porque você não quer dá. Perte de Macaco. Pentear Macaco. O preto não chorava. Camcoro d’alma. Quando ele quis desse a mão de pilão os passarinhos voaram todos. Gamela ajente tem vergonha na casa de fora. Eu seu mesmo desarranjado. Aquele freguês que ia pelando o mar. Eram jovens bonitas que se iludiam umas as outras. Era minha mãe com a camisa bonita”.

     Os desenhos nesses doentes são raros e quando eles se manifestam são quase sempre de caráter erótico, representados por símbolos rabiscados desordenadamente, que formam no papel manchas muitas vezes incompreensíveis. Esses desenhos dão-nos conhecimento exato da fuga de ideias que se processa no doente. O mesmo acontece com os seus escritos, cujas palavras se sucedem umas atrás das outras, sem nenhum nexo, sem nenhuma relação lógica.

     “Há diversas gradações nos estados maníacos. O prof. Afrânio Peixoto[1] apresenta uma classificação da mania, em que admite como formas: mania mitis, mitissima, de Hoche e Hecker; hipomania, de Mendel; mania clássica, média, de Peixoto; mania grave, agitada, confusa, hipermania, de Peixoto”.

     Pela classificação de Kraepelin, como vimos atrás, a hipomania está em primeiro grau, encaixando-se nesta a mania mitis, mitissima.

     “Na mania mitis há apenas uma ligeira excitação cerebral, com os predicados essenciais da mania, isto é, humor alegre, associação rápida de ideias, e movimentação exagerada. O doente não chega a ter necessariamente de ir para um asilo e no meio social apenas sente uma certa logorreia, volubilidade e precipitação”.
     “A hipomania é um pouco mais, é uma mania sem delírio, uma loucura raciocinante, como dizem os franceses”.

     É justamente nessa fase que os doentes escrevem os seus trabalhos filosóficos, literários, ou de seus livros de poesias. Aparece então neles uma sensação ótima de bem-estar e, prazenteiros em demasia, metem-se numa atividade fora do comum para o trabalho intelectual.
     É da lavra de um hipomaníaco do Hospital do Juquery este soneto admirável:

                                       Sudanita
                             (A Sabbado D’Angelo)

Do “Sudan” as baforadas solta
O insano imerso em saudade infinda;
E, em espirais, o fumo em revolta,
Nos mostra em busto a cigana linda!

Lenço rubro, em cabeleira solta,
Cachos pendentes, seu colo finda;
Ostentando das mamas em volta,
Facha amarela de seda da Índia!

E eu durmo... e, em pouco, minh’alma anseia.
Fogo de amor no meu peito ateia,
E a cigana em freme o corpo agita!

E gozo então delícias sem par,
Do colo róseo o odor sugar,
Inebriante de Sudanita!

     Esse doente há dois anos que se encontra em estado de hipomania. Os seus escritos são numerosos. Não só faz versos, como também trabalhos de psicologia e contos literários.

  








[1] Esses dados retiramos da importante obra nacional do prof. H. Roxo “Manual de Psychiatria”, pag. 373 da 2ª edição. 

domingo, 16 de setembro de 2018

Capítulo 6 – Parte 6 – A Expressão Artística nos Alienados


...continuação do texto de Osório César. Sempre observamos que se trata de Psiquiatria dos anos 1920...

     O caso que vamos relatar aqui é curioso por se tratar de um indivíduo que desenha regularmente, conhece música, faz versos e toca bem violão.
     Vejamos a sua história psiquiátrica:

     M.R.(1), 20 anos, branco, solteiro, brasileiro. Entrado no Hospital de Juquery em 15 de maio de 1924.
     De seu balanço genealógico, sabe-se que seu avô materno foi alienado.
     As primeiras perturbações mentais foram observadas em fins de 1923; esse primeiro desequilíbrio durou 2 meses, voltando o doente à calma, subitamente, para de novo mostrar-se agitado, turbulento, perigoso, cometendo uma longa série de atos desatinados e destruidores, em fevereiro deste ano. Sua infância correu sem graves acidentes de saúde; seu desenvolvimento físico e psíquico foram normais; seu espírito foi lúcido, de inteligência muito viva, observação meticulosa, atenção pronta, de grande atividade física e psíquica, mas sempre de gênio inquieto, sem perseverança, quase sem espírito crítico, a sua mocidade tem sido movimentada, rica de atos extravagantes e excêntricos; arquiteta grande número de planos de vida por um prisma de otimismo e confiança; quase todos os seus atos são precipitados, e os seus conceitos são inconsequentes. As suas narrativas são vivas, denunciando grande jogo de imaginação; a sua memória é exaltada, recorda-se com facilidade e precisão de imagens remotas, nomes, datas, etc. A associação das ideias é perfeitamente regular, sem exposição precipitada e confusa; responde a tudo com extrema facilidade e precisão; seu espírito é lúcido e bem orientado no tempo e no espaço. Seus conceitos são lógicos, bem encadeados, mas não são razoáveis no maior número das vezes, pela falência da faculdade de crítica que inibe qualquer ponderação justa. Os seus atos também tornam-se extraordinários e extravagantes pela mesma falta do juízo crítico; para o doente tudo o que faz é natural e perfeitamente racional. Muito habilidoso, e com desenvolvido sentimento artístico, toca admiravelmente violão e desenha com perfeição; observa-se um fato muito interessante quando toca violão; em meio de qualquer música de execução difícil, ele enxerta variações de sua própria imaginação, de incrível beleza e ritmo de notável originalidade. De agitação motora moderada, o doente é um contínuo inquieto, passa os dias em plena atividade, preocupando-se com tudo que afeta a sua atenção, sempre muito pronta ao serviço de sua observação muito viva, mas sempre muito inconstante. O doente é inquieto, mas as suas atitudes são normais, não há maneirismo, estereotipias, etc. O seu humor é alegre e expansivo, é delicado e obediente; mas algumas vezes torna-se exaltado e mesmo violento. Não apresenta delírio e nem perturbações perceptivas. O seu sono é tranquilo e prolongado. Não observamos grandes alterações de sua emotividade. Sentimentos éticos presentes, sem baixa e nem perversões; as suas aflições são moderadas, e guarda atitude normal para com a sociedade; não pratica atos imorais e nem pronuncia termos obscenos. Fala corretamente, sem dificuldades de articulação, a sua dicção é ótima. Marcha firme e bem orientada, todos os seus movimentos voluntários são bem coordenados.
     Diagnóstico: Loucura Moral. Excitação maníaca.

     Nesse doente, a manifestação artística se observa sob vários aspectos: desenho, pintura, música e poesia. Possuímos grande coleção de desenhos de M. Quase todos esses desenhos são de caráter obsceno. Exceção de uma meia dúzia deles, cenas caricaturais, humorísticas, que lhe revelam senso artístico acurado para essa disciplina.
     A fig. 78, por exemplo, é uma composição bem curiosa. Representa um “caipira” fumando cigarro. Fisionomia expressiva, sombreado inteligentemente cuidado e atitude otimamente compreendida, dão a essa figura a realidade do tipo estudado.
     A fig. 79 é um desenho de um busto de mulher mostrado de perfil. Afora alguns exageros de proporção, como no pescoço e na parte superior do dorso, o desenho é bom. Nota-se que a preocupação maior do autor foi a de acentuar nessa figura a forma dos seios, imprimindo-lhes um tanto de sensualidade.
     A fig. 80 é um desenho defeituoso, desproporcionado e de caráter lascivo. Se bem que estejam nessa figura os caracteres sexuais femininos notadamente marcados, entretanto observa-se nela qualquer coisa de andrógino, tal a masculinidade do tórax e do pescoço e também a expressão da cabeça. Nesse nu que não é artístico o autor só se preocupou em realçar com mais luxúria do que nas figuras anteriores, as zonas erógenas do sexo feminino.
     A fig. 81 representa um indivíduo sentado onanizando-se. A composição é bem feita.
     No desenho da fig. 82, o caráter dominante é a obscenidade. São dois indivíduos em atitude sexual. Desenho mal feito.
     Aqui está, pois, um caso bem curioso. Esse doente, que conserva no Hospital sentimentos éticos, atitudes normais perante os seus camaradas e não pratica atos indecentes, no entanto desenha grande número de quadros francamente obscenos.    

1 – Dos Archivos Psychiatricos do Hospital do Juquery. Anno 1924.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Osório César – Capítulo 6 – Parte 5 – A expressão Artística nos Alienados


No texto abaixo, é interessante notar a posição de Osório César em oposição às ideias de Lombroso, sobre o criminoso nato. Assim também em relação aos que classificam a chamada "loucura moral" entre os quadros constitucionais. 

...continuação do texto de Osório César...


     Estudemos agora a arte na loucura moral.
     Que é loucura moral? “É uma situação degenerativa, diz J. de Mattos [1], caracterizada pela ausência ou perversão dos sentimentos de piedade e de probidade, que na sua forma elementar constituem o mínimo de senso moral indispensável à vida coletiva”. Ótima definição. Clara. Sintética. Exatamente fiel ao quadro nosológico, que os autores clássicos dessa afecção mental traçaram. Vejamos como descreve G. Ballet [2] o tipo de loucura moral: “Os loucos morais manifestam o mais das vezes, desde criança, suas tendências perversas. Profundamente egoístas e desconfiados, de uma falta de coração absoluta, essas crianças, diz muito bem Schüle, não possuem nada de criança. Não estimam a ninguém; as carícias os importunam; são insensíveis às repreensões como aos elogios, à dor como à alegria de seus pais; a desobediência e a mentira são para eles como uma necessidade, da qual não podem se afastar. Excessivamente vaidosos, já cheios de si, não podem tolerar uma direção qualquer e fazem o contrário do que se procura obter deles. São facilmente irritáveis. Pela menor contrariedade têm violentos acessos de cólera que se acompanham de movimentos impulsivos mais ou menos perigosos. Invejosos, rancorosos, vingativos, procuram fazer mal àqueles de quem pensam ter queixas e são muito capazes de preparar-lhes subreptícias e pacientemente vinganças que levam até a ferocidade. Mas, são também friamente maus sem nenhum motivo, divertindo-se em torturar os animais e em bater nos seus camaradas mais fracos. Na escola, são extremamente preguiçosos, de maneira que nada aprendem e ficam sempre fazendo-se os últimos da classe, fazendo-se expulsar de todos os estabelecimentos para onde vão. Nem a doença, nem a violência podem dominar esses caracteres ingovernáveis, sempre prontos à revolta e, muitas vezes, os pais são obrigados a colocá-los em estabelecimentos especiais de repreensão, ou em casas de correção, de onde eles saem, aliás, mais viciosos ainda”.
     A esse conjunto de fatos, que constitui grave desvio do senso moral, caracterizado pela perversão dos sentimentos afetivos, sem perturbação notável da inteligência, alguns psiquiatras até hoje ainda consideram autonomia nosológica, conservando assim a denominação que Pritchard criou, em 1835, de loucura moral (moral insanity).
     Muito se tem discutido e escrito acerca dessa afecção. E isso em várias disciplinas. Na Medicina. Na Jurisprudência. Modernamente, depois que se conhecem bem os estados mentais de muitas psicopatias, a loucura moral tem perdido bastante o sentido nosológico de moléstia constitucional, que os tratados dão. Ninguém hoje deve pensar como Lombroso, que assinalou os caracteres do louco moral como sendo iguais aos do criminoso nato – tipo este criado por ele, para designar taras constitucionais de indivíduos portadores de acentuadas anomalias físicas e psíquicas. Lombroso dividiu os criminosos em loucos epilépticos, loucos morais, criminosos natos, criminaloides e criminosos por paixão. Em qualquer deles, admitia um fundo epilético essencial. Toda gente sabe que o criminoso nato não existe. Afrânio Peixoto diz que o louco e o criminoso não diferem entre si. Este nada mais é do que aquele, após haver cometido o crime. – Perfeitamente exato.
     A loucura moral é uma síndrome e não uma moléstia constitucional. Haja vista os inúmeros casos hoje melhormente observados, de sequelas de encefalites, responsáveis por esses caracteres incorrigíveis de indivíduos que apresentam os sintomas da loucura moral.
     Na classificação da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, a “moral insanity” tem sido colocada, por vários psiquiatras, no Nº 13, sob o título de outras psicopatias constitucionais (estados atípicos de degeneração). Não podemos concordar que a loucura moral caiba nesse grupo da referida classificação. Não se nasce louco moral da mesma maneira que não se nasce criminoso.
     Outrora era encaixada no velho grupo das monomanias de Esquirol, essa forma degenerativa dos sentimentos morais. Depois foi desmembrada daí por Esquirol, para tomar o nome de monomania intelectual, visto observarem-se certos atos delituosos em indivíduos, sob influências de concepções delirantes. Em seguida vieram as denominações de monomania instintiva, monomania raciocinante. Esta, por sua vez, tomou diversos nomes, de acordo com os psiquiatras da época. Assim, para Pinel, mania do caráter; para Brierre, loucura da ação; para Morel, loucura instintiva; para Trelat, loucura lúcida; finalmente, para Pritchard, loucura moral.
     As manifestações artísticas nos loucos morais não são raras. Elas se apresentam na maioria das vezes bem equilibradas e com um cunho de originalidade distinto.


Observações e referências de Osório César:
1 - Elementos de Psiquiatria, pag. 530. Porto, 1911.
2 - Traité de Pathologie Mentale, pag. 646. Paris, 1903. 

domingo, 23 de outubro de 2016

Capítulo 6 – Parte 4 – A Expressão Artística nos Alienados


...continuação do texto, em que Osório Cesar continua o relato do mesmo paciente... (sob o título “Um literato excêntrico do Hospital do Juquery)

     Ouçamo-lo quando fala de si próprio:

     Eu não escrevo palavreamento de cruzado Palavreado. Minha opera está toda engastada. – Qual diamante que artístico ourive engarça em raros anéis – no veículo tangível e impalpável, da Frase Retangular...
     Meu Estilo é meu; as ideias que voam sobre ele me pertencem, com a prioridade individual e inconfundível de minha Personalidade...
     Egolatria? Por quê? Porque sou original? – Porque combato a Pinacotecomania reinante e usada por os Medíocres?
     Se alguém me qualificasse de tal, por o menos, terá de confessar, a meu favor, a garantia inconsútil de meu próprio ponto de vista literário. E essa Concessão – a fortiori – constitui meu mais espontâneo triunfo sobre os amanuenses fabricadores de enigmas cruzados de Literatura de Encruzilhada...
                                                                                 Março de 1926.

     Temos aí a prova de um desenfreado egocentrismo próprio dos cérebros desequilibrados como é o seu.
     Em todos os escritos de L. o que mais nos chama a atenção, além dos inúmeros neologismos de sua autoria, são o palavreado revolucionário, sempre o mesmo contra tudo e todos que discordem do seu modo de pensar, e o seu egocentrismo exagerado.
     Vejamos agora um dos seus últimos trabalhos, “Siete aforismos sobre Arte”, inspirado no busto de bronze do Prof. Franco da Rocha, obra do escultor Pinto do Couto, a quem ele dedica o referido trabalho. É um trabalho interessante, no qual ele dá expansão à sua exuberante verbosidade.

Siete aforismos sobre Arte
Especial homenage al artista Pinto do Couto,
             mi luminoso amigo.
                                             São Paulo, 3 – 4 – 1928.
                                                                 L.

                                                     I

     Exteriorizar y expressar La Belleza es la sublime mission de todo Artista; es decir de aquél Predestinado que siénte, dentro de si, la llama de um ideal magestuoso y fecundo...
     Aquél fuégo interno que aniquila El Deseo , produce la gestación misteriosa de la Obra Artistica, que al objetivarse, refresca y musicalisa la plácida región de los ensueños...
     En ese oculto reino del Yo, el alma del que crea, siénte la lhuvia de la inspiración caer sobre su vision, que se convierte por taumaturgia, en e lacto vigoroso y estable de La Realización Estética...
     En aquél Párto milagroso y transcendental, todo, hásta el Dolor, se transfigura en extasis delelitable y emoción definitiva...
     Las Rosas de La Meditación abren sus pétalas en el jardin del Alma, y un hálito de Eternidad levantasse, vigorizando la ilusión placentera del Artista... En aquél momento, el hombre que crea siénte las emanaciones de La Gloria, saturando su vida Subjectiva...
     Todos los eflúvios vitales de La Satisfacción y el Exito, son inhalados por El Ensoñador en ese dia divino, en que su aspiración se realiza, y su sueño se estatifica...
No existe emoción comparable á la experimentada en el Instante Precioso del Alumbramiento Bello-Artistico. El hombre, al crear, está por encima de La Natura, y saboreando la motivazión de su concepción ideal, se auto-diviniza!...

                                    II

     Toda Obra de Arte és um poema cristalizado...
     Todo Artista és el Cantor épico de La Sinfonia, multicolor y multiforme, de su proprio Cerebro...
     La Poesia, La Escultura, La Música, La Pintura, que són sinó la sonora encarnación del Tódo, vibrando en Lo infinito?...
     No si concibe la Harmonia Cósmica sin Las Bellas-Artes; asi como tampoco se puéde contemplar El Universo, sin el ritmo que el Artista verídico le imprime...
     El Arte informa La Taumaturgia más gloriosam de Los Siglos y El Espacio!... El constituye el único Oasis en el Desierto que atraviesa La Especie, y... su eterna influencia, qué de ser la sóla Garantia del Existir. La Vida sin El Arte: - Lúgubre equivoco mortuário!...

                             III

     En Arte hay que caminhar siémpre, nunca descansar. El Artista que mucho reposa y poco estudia, retrocede, y por conseguinte, atrofia su idiosincracia. El Arte, como todo, necessita y exige constancia y practica...
     Es por eso que todo Artista, laborioso y ágil logra culminar en su ideal Artistico...
     Los Grandes Escultores, de Miguel Angelo a Rodin, de Praxiteles a Canova, de Bernini a Sorolla y Teixeira Lopes, etc, etc, que fuerón, sino Grandes Apasionados de la meditación estudiosa, verdaderos auto-modelos de gloriosa tenacidad?...
     Aquellos Poetas del Marmol no hubiesen llegado a la cima de La Consagración sin antes haber sido perseverantes artífices de su voluntad operatriz...
     De ahi su Gloria modelada en el bronce immortal... de la admiración Universal!...

                      IV

     Adonde principia la decadencia del Arte?
     - Principia em el dia em que el Artista deja de renovar su ideal, es decir, abandona y olvida los preceptos salutares de La Renovación Estética, única fuente de deleite artístico, sólo y perene manantial de Placer Subjectivo...
     El conservantismo, en El Arte, resulta contraproducente y... peligroso.
     La Rotina és inadmisible en Obras de Belleza...
     La Vénus de Milo, por ejemplo, no constituye modelo estático... Ella sugiere al artista Moderno la grandiosidad de la plastica, péro, siempre dentro el limite de la evolución dinamica, de las diversas Escuelas...
     No hay modelo quieto. Tódo en Arte es cambiante y renovatriz.
     Si asi no fuese, la Originalidad creadora se reduciria a conservar indefinidamente... lo que constituye un Absurdo...

                                         VI

     La única razón de la existencia del Arte, és la Belleza...
     No háy porqué indagar ótra causa, en materia Artistica...
     Tódo Artista possue un modus Estético, péro la finalidad del Arte, és siempre una: la producción de Belleza!...

                                   VII

     La Plasticidad, La Armonia, La Exactitud, El Ritmo: he ahi los componentes misteriosos del Arte al exteriorizarse... La Obra Artistica, debe contener todos los ingredientes estéticos de la Forma y Lugar, de acuerdo con las reglas de La Sonoridad Musical permanente.
     Si, porque todo Arte tende a encantar, y al transladar la musicalidad inherente al Ideal, el Artista solo ansia estereotipar, el sueño immortal de la Belleza!...
     Esa la razón porque todas las Escuelas, - Clasica, Romantica y Moderna poseen uma única finalidad: la impresión eternizable de La Producción Bella, en los moldes inconfundibles de La Emoción, quintaesenciada, estable y verídica. No háy tendencia ó dirección exclusiva, artisticamente.
     La que existe és la enfocación original, de la Vision Sublime, dentro cauce, tambien original, de la Personalidad Creatriz. Voilá tout...
     Gloria, pués, al Arte, y Loor al Artista ETERNAMENTE!...

***

     Entre os grandes poetas franceses do século passado, o egocentrismo era uma manifestação quase comum nos seus escritos, dando aparência de um franco desequilíbrio mental. Daí o aparecimento do célebre livro de Nordau “La Dégénération”, que tanto deu o que falar aos revolucionários da arte nova. Desses poetas, Rimbaud foi um dos mais excêntricos. A sua vida, ambulatória, foi um “malentendu”, como disse o prefaciador de suas obras.
     Eis aqui um de seus escritos:

                    Délires II [1]

     A moi, L’histoire de une de mês folies.
     Depuis longtemps je me vantais de posséder tous les paysages possibles, et trouvais dérisoires les célebrités de la peinture et de la poésie modernes.
     J’amais les peintures idiotes, dessus de portes, décors, toiles de saltimbanques, enseignes, enluminures populaires; la littérature démodée, latin d’église, livres érotiques sans ortografe, romans de nos aïeules, contes de fées, petits livres de l’enfance, opéras vieux, refrains niais, rhytmes naifs.
     Je rêvais croisades, voyages de découvertes dont on n’a pas de relations, republiques sans histoires, guerres de religion étouffées, révolutions de moeurs, déplacements de races et de continentes: je croyais à tous les enchantements.
     J’inventai la couleur des voyelles![2] – A noir, E blanc, I rouge, O bleu, U vert. – Je réglai la forme et le mouvement de chaque consone, et, avec des rythmes instinctifs, je me flattai d’inventer um verbe poètique accessible, un jour ou l’autre, à tous les sens. Je réservais la traduction.
     Ce fut d’abord une étude. J’écrivais des silences, des nuits, je notais l’inexprimible. Je fixai des vertiges.

     Podemos considerar Rimbaud como um dos precursores do futurismo.  


Notas de Rodapé de Osório César:


[1] Oeuvres de Arthur Rimbaud, Mercure de France, Paris.
[2]Voyelles”. É o soneto mais célebre do poeta francês.
    A noir, E blanc, I rouge U vert O bleu, voyelles,
    Je dirai quelque jour vos naissances latentes.
   A, noir corset velu des mouches éclatantes
   Qui bombillent autor des puanteurs cruelles,
  
  Golfe d’ombre; E candeur des vapeurs et des tentes,
  Lance des glasiers fiers, rois blancs, frissons d’ombelles;
  I pourpres, sang craché, rire de lévres belles
  Dans la colére ou les ivresses penitentes;
 
 U, cycles, vibrements divins des mers virides,
 Paix des pâtis semés d’animaux, paix des rides
 Que l’alchimie imprime aux grands fronts studieux;

O, supprême clairon plein de strideurs étranges,
silences traversés des Mondes et des Anges:
- O l’Omega, rayon violet des ses Yeux!  

sábado, 4 de junho de 2016

Capítulo 6 - Parte 3 - A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

[Osório César refere agora um texto do mesmo paciente a respeito de Freud]

     Apreciemos agora a sua crítica de um livro de Freud:

    (A psicanálise aplicada à Vida Cotidiana – Edição de Payot. Paris, 1924).

     Preliminarmente: - Freud é tão sutil, que toca os limites da acuidade e sendo da análise micro-subjetiva; ou, também, é tão Grande seu poder indudedutivo, e sua visão analítica, que, por isso mesmo, degenera em sutileza psicopatológica, de fato, emaranhada.
     As obras do ilustre Precursor da Psicanálise são inabordáveis, como todo o demasiado profundo. Já disse, eu, algures, que Freud é um tanto prematuro, desde logo que suas Teorias, - por outra parte famosas – não encontram na maioria, terreno intelectual adaptável... O espírito humano contemporâneo, apesar de sua enorme cultura, não está, para mim, suficientemente preparado, para digerir concepções tão fundas, e tão radicalmente súbitas... De outra maneira, e para usar a linguagem freudiana, o subconsciente intelectual, o subsolo subjetivo da generalidade dos Leitores é incapaz de fazer germinar a semente portentosa, de semelhantes Teorias... Só um pequeno núcleo de Artistas e Intelectuais de escol pode ler, mastigar, e digerir as doutrinas do ilustre Professor de Viena. E a razão é óbvia: - o genial que voa é só acessível aos que têm asas no organismo espiritual. É o caso de Nietszche, e todos os escritores que, por sobrepassar o nível geral, desequilibram, com suas concepções originais, (no presente caso, Freud) – o acervo comum dos conhecimentos adquiridos. O qual, não quer dizer que o século atual seja estritamente incapaz: aquela observação simplesmente significa que, intelectualmente, os tempos correm, são ainda impreparados para receber modificações no status quo, por mil razões sociológicas, eminentemente conservadora... Repito: só a Elite pode ler certos autores que, como Freud, derrubam e devastam princípios consuetudinariamente amitidos como dogma...   
     Realmente. No reino do Interior Humano, a evolução apreensível é lenta, e quaisquer tentativas de explicação satisfatória resultam contraproducentes e antecipadas. A razão? – Estar o Cérebro e seus reflexos, por agora, numa permanência quieta; o que dá lugar a um estado embrionário de estudos aventurados e hipotéticos, que as Massas não admitem sejam radicais, casualmente por seu conservantismo constitucional e ancestral!
     Que é a Ciência da Alma? Conjecturas mais ou menos científicas, que as Multidões querem que não evoluam rapidamente. Por que? Por o móvel do Medo (motivo freudiano) de ver o arraigado decair!
     Que é o Eu e sua Mecânica?
     Um Labirinto, até hoje insondável, precisamente por o temor de receber novas concepções, verdadeiramente evolutivas e competentes. Quem? A mesma Multidão, que, em todo caso, é a maioria!
     A Ciência Subjetiva, ao não poder ser apanhada por o Laboratório, se converte em Dúvida Ortodoxa, ou em Fé automática. É o triunfo do Fanatismo multicor e hereditariamente teológico! Triste Verdade que apavora o ânimo e a ânima científica! Mais... Que fazer? Esperar casualmente que se consolidem os estudos e investigações cerebrais para a Ciência e Porvir Próximos!
     Os mais célebres Cérebros fracassaram em seu intento de explicar à engrenagem cortiçal, e fracassaram por o preconceito de abaixo, e dizer, por a omissão ignorante da Coletividade, sempre em direção teimosa ao quietismo. Aquela teimosia é obra da Propaganda teológico-religiosa, sempre inclinada a não deixar passar o preconizado por os verdadeiros Pensadores, homens máximos que baixo quaisquer aspecto, derrubam diafragmas místico-sociais!
     Os investigadores científicos – malgre os esforços fanáticos – continuam em seu labor em busca da Pesquisa Provável do como e porque cranial!
     A Fisiologia, a Histologia e a Anatomia Patológica do Cérebro são coisas certas: - constituem Teoremas evolutivos fixos de conhecimento definitivo. A parte Físico-Química do Córtex também está no terreno das aquisições biológicas seguras... Mais... A Psicologia in intra do Espírito, essa... não aparece. O mecanismo intelectual per se da Alma... escapa. A perspicada filosófica faliu, ao querer definir e adquirir as noções precisas e matemáticas do Eu... Desde os Helênicos, investigadores e fundadores de teorias e sistemas (Platão e sua escola, Sócrates e a sua) até os modernos bandeirantes da Investigação espiritual (Kant e os seus, Bergson, Balmes e as mil escolas hodiernas) – todos hão fracassado nesse ponto misterioso do mecanismo vital e psíquico da constituição íntima da Psique!
     Paradoxo? Por que? – As fontes da Alma não estão, por ventura, ocultas à mesma Alma? Parodiando Pascal, não se pode assegurar, como Postulado da deficiência humana, que o Cérebro tem razões que o próprio Cérebro desconhece e ignora?
     Os grandes Filósofos e célebres Psicólogos que hão feito, senão recuar perante a Esfinge polilateral e poliforme do Porque Cerebral?
     O mesmo Platão, com suas ideias suprassensíveis; o próprio Kant, com seu apriorismo duvidoso; o tão meneado Descartes, com suas equívocas e ferrenhas conclusões; Freud, Maudsley, Cl. Bernard, Wirchow, com suas inovações fundamentais e preciosas... quem, dentre eles e o que há podido alicerçar axiomaticamente o modus operandi certo, genuíno, matemático e legítimo do Córtex? Ninguém!
     Porque, se é certo que os grandes Biologistas e Filósofos hão esclarecido, relativamente, é entrada do aparelho Psíquico; esses Filósofos, Biólogos e Fisiologistas não hão obrado ainda o milagre divino da Patologia Psicológica completa, certeira, precisa, invulnerável do Eu!
     Repito: - Só aproximadamente se podem explicar as misteriosas gestações do dínamo energético do Cérebro... E esse, apesar dos pesares de Séculos e Séculos de labor!
     A “Psicopatologia da Vida Cotidiana” de Freud é um livro, senão revelador por o menos fortemente original, e cosmopolitamente profundo. Na Literatura Médico-Analítica, e mesmo aquele volume majestoso, uma verdadeira rareza, pois... não está o Público enjoado de ler erudição barata e insubstancial? – Não há fecundidade mais fastidiosa, em verdade, que aquela dos Psicólogos Patologistas, que, dia a dia, enchem as Livrarias de volumes de pura ciência... bibliográfica! O Livro de Freud é um conforto para os Estudiosos (de Inteligência forte) à vez uma necessidade de Biblioteca cultural!
     Nos diversos capítulos da Obra, Freud estuda a “vie courante” interpretada à luz de sua psicanálise... O qual quer dizer somente que o Célebre Autor aborda os fenômenos por o lado de suas manifestações essencialmente psíquicas.
     Ditos fenômenos os localiza no campo estrito da Contaminação inconsciente, em relação, naturalmente, com a esfera do Consciente. Estas palavras consciente e inconsciente, com seus afinos linguísticos e psicológicos, hão sido o tema de moda mais em voga nestes últimos tempos, devido às preconizações do próprio Freud. De passo, há que advertir que quaisquer estudantes de preparatórios, quaisquer meninas lidas têm esses vocábulos na ponta da língua, para todo uso. He aí um ato de Psicologia inconsciente... Ou melhor, fica nesse detalhe apontada a Sintomatologia duma Decadência verbal de inconsciência coletiva...
     Se, como se sabe, as Doutrinas Freudianas são coisas ásperas, como explicar que todo mundo tenha, na conversa, essa profunda doutrina, para todo e em todo? A razão cai baixo à ação condenatriz dessas mesmas premissas científicas que estigmatizam, como verbalismo inócuo e fatal, o prurido inconsciente de falar sobre tudo, sem dar-se conta de que a língua é a pior inimiga do Consciente!
     A motivação freudiana e altamente culta, sadia e meritória, para estar-se usando à larga mão e língua por os deserdados do Talento, que por aí andam, em maioria revoltante!
     Os processos mentais, tratados com maestria por o Colosso de Viena, não são para misturas verbais dos Palavreiros que, escudados com uma fácil literalice, querem (coitados) enxergar Problemas e Fenômenos, ainda em gestação experimental. Há que gritar bem alto: As obras e análises freudianas são, exclusivamente, para os supercompetentes!
     Analisando as “meprises” e “reprises”, estudando os “Conflitos” internos; aclarando “estradas” subjetivas; classificando as ações “refoulés”, catalogando as funções de “associação” e “excitação”, Freud é assombroso! Localiza, por assim dizer, o “inconsciente” e “consciente” num plano visual para a Consciência de Leitor preocupado. Enfim, Freud perturba ao estudar as forças “perturbatrices”. É uma Vertigem aquele Homem. Faz até mal ler-lo sem premeditação Consciensuda. Eu não sei se os Psiquiatras, - tão amigos de encontrar síndromes degenererativas, onde há gênio – eu não sei, repito se ao ler Freud, se terão vingado – ao ver sua incompetência de apanhá-lo, - chamando de Louco!
     O livro que me ocupa não trata de fator sensual – Chave de Ouro de Freud.
     A razão está em que neste Volume o autor não trata senão de reflexos “manqués, lapsus verbais e de Memória e atenção, tratados segundo o experimentado pelo próprio autor... É uma espécie de autoanálise esta notável obra do celebérrimo Freud...        “1926”

     O seu estilo, como acabamos de ver, é bem característico e tem um cunho de originalidade pessoal. O ritmo das palavras é cadenciado e a música agradável ao ouvido. Como expressão é encantadora a sua prosa. Ela é quente e vibrante. Nesse artista degenerado, cuja produção literária é assombrosa, o que mais nos chama a atenção para o seu desequilíbrio mental são: a disposição desordenada de suas ideias anarquistas e a egolatria desassombrada na apreciação de sua individualidade.