Devemos assinalar
que a linguagem psiquiátrica usada por Osório César nesta obra é da década de
20 do século XX.
As notas de rodapé
são do autor.
...continuamos com o texto de Osório Cesar...
Moreau de Tours[1]
conta-nos ter observado durante quase dois anos “um jovem pertencente a uma
família na qual eram comuns os homens de inteligência, que caiu bruscamente,
sem causa apreciável, em exaltação maníaca. Vários dias, antes e depois do
acesso, ele passou uma grande parte do tempo a escrever e a compor versos.
Todos os assuntos lhe serviam e fora difícil encontrar nas suas composições
vestígios da moléstia que acabara de sarar e que o havia de acometer alguns
dias mais tarde”.
Vamos ver a
história de um interessante poeta hipomaníaco e os seus mais curiosos poemas:
A.[2],
branco, brasileiro, 52 anos, casado, entrado em 25 de maio de 1918.
Pai nervoso e
melancólico. Teve um tio deprimido. Tem vários filhos, alguns dos quais
psicopatas (débil um, quase idiota outro). O observado foi quase sempre um
psicopata, tímido, desconfiado. Há 12 anos teve uma infecção venérea que diz
ter sido sifilítica. Há 8 anos, esteve durante 8 meses internado no Instituto
Paulista, de onde saiu bom. Somaticamente apresenta-se muito magro, com insônia
rebelde; come pouco. Seu estado mental reveste o caráter de profunda depressão
psíquica. É completamente alheio ao que se passa em torno de si, só se
preocupando com a sua pessoa, e lastima-se constantemente. Com o sobrolho
franzido, fácies melancólico, queixa-se de que está muito doente, de que é um
desgraçado, arruinado e perseguido.
Em 1919 foi
novamente observado o paciente, achando-se em estado de grande prostração
física e psíquica, grande depressão, ideias hipocondríacas, arrastando-se pelo
chão, “a fim de penitenciar-se dos malefícios que praticara”, pois, por “sua
causa a família toda havia sido lançada na miséria e todas as desgraças advindas
ultimamente aos Taubateanos tinham emanado dele, paciente”. Teve crises de
pranto, punha-se em atitude mística a implorar aos céus a remissão de seus
pecados e negava-se a estender a mão a quem quer que fosse, certo de que isso lhe
iria (não ao doente) causar males. Vivia deitado nos centros do pátio, isolado
dos companheiros, descuidado de sua toilette e de suas funções fisiológicas.
Hoje o paciente acha-se em estado de hipomania; muito loquaz,
amável em extremo, contador de anedotas, a criticar os enfermeiros, veste-se
bizarramente, usa adornos extravagantes, como sejam uma grande medalha de
papelão, pendente a uma grosseira corrente de arame (comenda da legião de
Thoma, diz o doente); uma cartola de papelão, gravata vermelha, das mais
carnavalescas, anel de chumbo, com mancha vermelha à guisa de pedra preciosa.
Tagarela o mais que pode, contando com espírito fatos de sua vida passada; “namora”
o dia todo o lado em que fica o pavilhão das mulheres e dirige, a uma das
doentes, cantigas e trovas amorosas. Escreve o que dá o dia e não há papel que
lhe chegue; qualquer ocorrência, por banal que seja, constitui motivo para seus
versos. Faz discursos eloquentes às vezes e levantou, de uma feita, a
candidatura de um dos nossos políticos à presidência da República[3].
Esta observação
feita pelo Dr. Francisco Marcondes, psiquiatra do Hospital do Juquery, data de
1924. Hoje o doente se apresenta calmo, porém a sua excitação intelectual ainda
persiste. A inspiração poética neste doente tornou-se uma fonte inesgotável.
Qualquer acontecimento, por mais banal que seja e de que ele ciente esteja,
tanto basta para despertar o seu estro poético. Surge então uma dezena de
sonetos e quadrinhas alusivas ao fato; muitas delas são até interessantes por
trazerem um tom picante e jocoso que é peculiar ao seu estilo. Entretanto, na
maioria das coisas que escreve, sente-se um lirismo com base erótica bem acentuada.
Apreciemos esta
sua composição:
Mão
quente, mão fria
(a alguém)
Mão quente quer
dizer coração frio...
mão fria quer
dizer coração quente...
ora, um dia, me abraso, de repente,
quando o meu braço no teu braço enfio.
Se, nesse tempo, as nossas mãos trançadas,
eram as tuas cálidas, ardentes,
só tuas mãos cada vez mais quentes...
eram as minhas gélidas, geladas...
Somos os mesmo após largos dias:
só tuas mãos cada vez mais quentes...
só minhas mãos cada vez mais frias...
Os versos são bem
cadenciados e a expressão é vivaz. Falta o último terceto que ele não quis
fazer propositadamente. O tema não é original. Se não nos falha a memória, parece-nos
que existe um soneto em língua portuguesa sobre este mesmo motivo. Em todo
caso, não o poderemos afirmar. O que podemos garantir é que em A., desde que
veio para Juquery, nunca vimos entre suas mãos produções literárias de nenhum
poeta. Poesias iguais a essa ele as escreve aos milhares.
“Mão quente, mão
fria” foi dedicada a uma enfermeira do Hospital. A. é um namorador infatigável.
A cada namorada que ele arranje, uma dezenas de poesias ele compõe. Nos versos
que acabamos de citar, oferecidos a uma de suas namoradas, sentimos
transparecer um sensualismo palpitante através de uma alma de velho.
Escutemo-lo em
Leviana
Leviana, ama o cocktail, adora o chá,
é inteligente, porém inútil; por que será?
Não tem alma, não faz o bem, porém é tão formosa,
é bem uma princesa, e tem perfume de rosa...
Todas as tardes ela passa... vai à Estação,
vai ver o seu caro Amor, o seu coração...
sua boca perfumada sabe rir, sabe enganar,
faceira, na sua toilette sabe bem se apurar...
Pobre de mim, para amá-la e compreendê-la,
eu tive um meio: encrustrei-a como estrela
cintilante no azul mais límpido do céu,
pois eu a adoro com egoísmo e seu véu...
Leviana foi também
oferecida a uma outra sua namorada. Realmente, não sabemos o que mais admirar
aqui. Se a composição singela, ingênua de inspiração, ou se a harmonia, o ritmo
dos versos. Que os versos tenham defeitos técnicos isso é lá com os mestres.
Mas ninguém poderá negar que eles revelam um estado d’alma expressionista. E é
quanto basta. “A poesia”, diz Grosse[4],
“é a expressão pela linguagem de fenômenos exteriores sob uma forma estética e
com o fim estético. Esta definição compreende tanto a poesia subjetiva, a poesia
lírica, que empresta uma expressão aos fenômenos do mundo interior, aos
pensamentos e aos sentimentos do eu, quanto a poesia objetiva, que descreve,
sob a forma épica ou dramática, os fenômenos do mundo exterior, dos fatos e dos
acontecimentos objetivos. Nos dois casos, a expressão serve de intuito estético;
o poeta quer excitar os sentimentos, unicamente os sentimentos. Desta maneira,
nossa definição separa de um lado a poesia épica e dramática, da descrição
didática e enfática. Toda poesia vem do sentimento e vai para o sentimento.
Está nisto o segredo de sua influência”.
Tal é o que
acontece com o nosso poeta.
[1] La
Psicologie morbide, pg. 423.
[2]
Observações Psychiatricas do Hospital do Juquery.
[3]
Candidatura esta que se realizou.
[4] E.
Grosse – Les Débuts de L’Art. Felix Lacan. Paris, 1902, pag. 177.
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