Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Capítulo 2 – Parte 5 – A expressão artística nos alienados


continuação do texto...

A arte decorativa constitui, entre os alienados, uma forma muito comum e a mais prática de dar vazão aos seus pensamentos. Em regra geral, são nos muros e nos terreiros dos pátios dos pavilhões que eles pintam com carvão ou riscam com qualquer instrumento pontudo os seus desenhos. Essas decorações, na maioria, são pueris, e, às vezes representam símbolos religiosos como cruz, âncora, peixe, mão, pé, etc. Mas o que se nota mais frequentemente nessas decorações murais são os graffittis (1), sem grande valor artístico (figs. 53,54), porém muito importantes por representarem cenas que preocupam a imaginação do doente.
Uma outra manifestação artística, que somente encontramos desenvolvida na seção das mulheres, é a da fabricação de bonecas. O material empregado para este fim é constituído de trapos velhos e de papel. São, sobretudo, entre as alienadas as mais idosas que encontramos com carinho esse mister. Elas vestem, arranjam e enfeitam as bonecas com muita faceirice (fig.55). Todas possuem um nome próprio e uma fisionomia particular. As doentes gostam de suas bonecas, conversam com elas e se divertem dessa maneira com entusiasmo. São umas verdadeiras crianças grandes.
“Alguns alienistas, como Feré (2), explicaram o amor às bonecas por uma derivação do instinto materno, que, em lugar de dirigir-se para seu objeto natural, as crianças, torna-se definitivamente desviado. Até uma idade avançada a mulher reservará sua solicitude exclusiva para as bonecas ou a repartirá entre elas e os animais”.
Também entre os índios carajás o gosto pelas bonecas é bem apreciado como poderemos ver pela figura 56. O nº 19491 é um boneco de barro, representando um velho, obtido acima da Ilha do Bananal, em outubro de 1927, na excursão Dra. Snethlage. O nº 19494 representa um homem e tem a mesma proveniência que a peça nº 19491. O nº 19498, boneca de barro, representa uma mulher, igual proveniência que a peça 19491. Essas peças pertencem à rica coleção do Museu Nacional, cuja reprodução fotográfica que aqui damos, foi carinhosamente autorizada pelo professor Roquette Pinto, diretor do Museu.
A tatuagem é rara nos alienados. Entre nós, no Hospital de Juquery o número de loucos tatuados é muitíssimo reduzido. Dos 1800 internados deste hospital, apenas encontramos 5 tatuados. Eram todos estrangeiros, de nacionalidade síria.
Lombroso dizia que todo homem tatuado é um criminoso e que a tatuagem na infância é um sinal precoce de criminalidade, indício de anormalidade.
Modernamente tem-se combatido este ponto afirmativo do mestre italiano.
Os autores de agora atribuem o fato da tatuagem às causas extrínsecas. Entretanto, parece-nos que Lombroso não esteja muito fora da verdade. Pois sabemos que a tatuagem é estimada pelos loucos morais, prostitutas, soldados, marinheiros e vagabundos. Entre os criminosos ela é encontrada numa grande porcentagem. “O maior número de tatuados”, diz Correa de Toledo (1*), “encontramos entre os reincidentes no crime, que parecem ter verdadeiro prazer em inscrever um desenho no corpo todas as vezes que vão para a prisão. As associações malfeitoras a usam como sinal de identidade, tais como os Camorristas, que dando-lhes um valor oculto de título e merecimento, indicam conforme o número de fatos se se trata de um noviciado ou um mestre em sua arte”.
Nos povos primitivos e nos selvagens atuais a tatuagem constitui um motivo mais curioso de ornamentação epidérmica.
Spix e Martius, citados por Lubbock (2*), descrevem assim a tatuagem de uma mulher coroada: “Sobre a face ela tem um círculo e por cima deste círculo duas fendas; abaixo do nariz várias marcas semelhantes a um M; no canto da boca, no meio da bochecha, duas linhas paralelas e abaixo, nos dois lados, várias faixas direitas; abaixo dos seios e entre eles, sobre o peito, diversos seguimentos (ou segmentos?) de círculos se reatam entre si; em cada braço uma serpente. Esta beleza não trazia por todo vestimento senão um colar de dentes de macacos”.
Como vimos, a tatuagem é para o primitivo um ornamento de extrema beleza.
Os desenhos dos tatuados, conforme as tribos, apresentam em cada indivíduo formas ornamentais bem singulares.

Notas de Osório Cesar:

1 – Os graffittis são ótimos elementos de informações históricas sobre a vida íntima e a arte popular na antiguidade. Foram observando os graffittis traçados nos edifícios que se conseguiram descobrir muitos motivos da história de Roma e de Pompeia.
2 – Citado por Vinchon, obra citada.   
1* - Contribuição ao estudo das tatuagens em medicina legal. Tese, São Paulo, 1926.
2* - Obra citada.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Capítulo 2 – Parte 4 – A expressão artística nos alienados.

...continuação do texto...

“Cada indivíduo”, diz Pilo (1), “no seu desenvolvimento próprio, repete em estética, como em fisiologia, o desenvolvimento da espécie, à maneira de rápida recapitulação. É assim que a criança tem gestos do homem primitivo e do selvagem, que o adolescente, o jovem, o adulto, o velho, o decrépito, sentem como sente uma raça numa fase correspondente de progresso e decadência”.
De antes, como sabemos, o nosso doente era soldado de polícia; o meio e os afazeres diários certamente nunca haveriam preocupado a sua atenção em semelhantes coisas se a moléstia do espírito não interrompesse o curso natural de sua vida.
Há pouco fizemos notar o curioso acabamento das mãos que o artista dispensou à estátua da figura 51. Procuremos analisar agora a causa que motivou na sua imaginação esse interesse.
As duas mãos acham-se em atitude de repouso e estão dispostas uma por cima da outra, mostrando os dedos bem estilizados. Sem possuir homogeneidade de linhas, as mãos tornam-se entretanto cheias de movimento e adquirem profunda independência do resto da escultura. Pensamos que esta atitude técnica de realismo e beleza, dada às mãos da estátua, reflete, provavelmente, um simbolismo sexual como recordação de práticas infantis. Apesar de não ter sido observada no Hospital a masturbação nesse doente, contudo, na infância, como ele próprio diz, esse vício foi seguidamente praticado. Entretanto, quem nos poderá afirmar que ele ainda hoje não se onanise? É coisa sabida que entre uma grande parte dos alienados, as práticas sexuais da infância são secretamente continuadas nos Hospícios, escapando assim à vigilância dos enfermeiros.
Estamos convencidos, pois, de que o desenvolvimento escultórico, dado por T., às mãos dessa estátua, representa para sua mentalidade artística o símbolo da vida sexual infantil.
“O simbolismo erótico, em sua origem”, diz Havelock Ellis (2), “não é intelectual, senão emocional; forma-se obscuramente, confusamente, sem grande consciência, talvez despossuído dela, já seja por obra e graça do grande choque de alguma prática geralmente infantil, ou por efeito de alguma meditação instintiva acerca das causas que mais intimamente se associam à pessoa sexualmente desejada, e então a sua formação é mais gradual”.
“Sob a emoção sexual, diz Masini, toda a nossa vida psíquica se transforma de um modo maravilhoso: quando o desejo nos fere a alma, os nossos sentidos, o nosso pensamento, os nossos sentimentos sofrem modificações profundas que nos afastam da realidade, transformando radicalmente o nosso eu consciente, até que se atenue e desapareça o fluxo passional, afastando então o véu do sonho e reconduzindo-nos à vida real. A criação artística é pois um fenômeno semelhante de exaltação das nossas faculdades psíquicas sob o impulso das energias sexuais as quais, como nós sabemos, prestam-se de um modo especial à sublimação e à transformação artística por uma  afinidade especial da natureza dos dois fenômenos” (1*).
O simbolismo das mãos encontra-se espalhado em todas as raças e em todas as épocas. Em sua origem, ele teve um caráter elevado e até algumas vezes divino. Assim, é evidente o simbolismo religioso que as mãos representam nas estrelas votivas de Judeia, de Fenícia, de Cartago (2*). “Na Andaluzia, nos países bascos, desviam-se os malefícios, mostrando-se a mão fálica (3*), isto é, a mão fechada com o polegar atravessado entre o índex e o médio” (4*).
“Le culte ou la supestition de la main”, diz Pommerol, “remonte à une haute antiquité. Ce culte semble avoir pris naissance chez les races sémitiques, et spécialement en Phénicie dont les marchands et les navigateurs l’ont importe dans le nord de l’Afrique, dans tout le bassin méditerraéen. Nous le trouvons em Gaule, durant l’époque romaine et de nos jours encore nous l’observons à l’état de superstition de tous les pays néo-latins. C’est certainement à l’influence de Carthage que nous devons de le constater au sein des populations algériennes. L’homme a compris de bonne heure le rôle éminemment utile de la main. Il a eu raison de l’adorer, de la diviniser, de lui attribuer toute sorte d’influence heureuse, car nul organe, après le cerveau, n’a plus contribué à distinguer l’homme de l abrute, à augmenter le bienêtre material et l’intelligence dans toutes les races humaines” (1**)
Sobre o simbolismo das mãos poderíamos encher muitas páginas de citações, que por certo tornariam enfadonho este nosso modesto trabalho. A representação simbólica do pensamento humano é tão antiga que a sua origem se perde na noite dos tempos. “El uso de los símbolos para la expressión grafica o plastica de las ideas, diz Naval (2**) es tan antigo como el arte, y a estas representaciones figuradas ha hecho contribuir el hombre toda classe de objetos naturales y artificiales, servindo-se de la Arquitectura, Pintura, Escultura y demas artes graficas en todo lugar y tempo desde la Prehistoria hasta el presente siglo”.
E, para terminarmos esta resenha, que já vai longe, acerca do simbolismo das mãos, daremos a palavra a Jules Baissac (3**).
“Le côté mâle Anu, le côté femelle Anah (4**) ou Anath avait pour symbole la main: nous verrons ultérieurement que le chirogénie ou enfantement par la main était un des traites de la maternité divine universelle. En Égypte, oú cette déesse d’importation couchito-sémitique a été reconnue par M. Birch (Gallery, II, pag. 100) juste sur des movements du règne d’Amnophis Premier de la dix-huitième dynastie, on trouve la ‘main de guerre’ de Ramsés-le-Grand désignée sous le nom d’Anta-m nekht ou ‘Anata dans as force’. Mais, outre l’aspect guerrier, qu’elle comunique presque partout à d’autres dénominations derivées de la même idée, la déesse Anath em avait sur le Nil un autre des plus caractéristiques avec ses attributs de cadesch, qui désignait une “prostituée sacrée” et de ken, qui signifie tout à la fois un sein maternel et le pudendum virile, ele était, comme à Babylone et comme l’Anaïtes des Sakaea, le double principe hermaphrodisiaque” (Rosellini, Monumenti storici civili e religiosi, LXVI dans il monumenti dell’Egitto e dela Nubia).
“La main d’Anu, dans cet état de choses, doit donc être tênue pour un des symbols de la fête hétairique des Tabernacles: symbole bissexuel dont les antiquités grécoromaines nous offrent eles-mêmes de nombreux spécimens. Dans la plupart de ceux qui nous restent, la main est réprésentée ou toute fermée, avec le pouce passé entre l’index et le medius, ou le medius en avant et tous les autres doigts repliés sur la paume. L’une et l’autre de ces figures étaient des emblemes obscenes” (1***).
No nosso doente, encontramos, além de um sentimento artístico fetichista, recordações de atos de sua infância, que surgem do subconsciente e que ele plasma no barro sob a forma de símbolo. Tal é a origem do acabamento escultórico das mãos da estátua da figura 51.
Freud (2***), estudando “uma recordação infantil de Leonardo da Vinci”, na análise de seu quadro “Santana, a Virgem e o Menino”, chega a conclusões interessantes por intermédio da psicanálise.
Leonardo, quando pintou esse famoso quadro, reproduziu ocultamente, entre as dobras do manto da Virgem, os caracteres de um corvo, que traduz, segundo Freud, uma recordação infantil da vida do célebre pintor italiano, ou então “uma fantasia ulterior transportada por ele à sua meninice”. E acrescenta: “As recordações infantis do homem não têm às vezes outra origem. Em lugar de se reproduzir a partir do momento em que ficam impressas, como acontece com as recordações conscientes da idade adulta, são evocadas ao cabo de muito tempo, quando a infância já passou, e aparecem então deformadas, falseadas e postas a serviço de tendências ulteriores, de maneira que não resultam estritamente diferenciáveis das fantasias”.
Enfim, a arte de T., é uma arte do primitivo; grotesca, fetichista, com representação simbólica sexual. Encontram-se nela semelhanças acentuadas com a arte futurista.
A técnica escultórica da estilização das mãos da estátua da figura 51 simboliza recordações de práticas sexuais infantis.
A manifestação artística neste doente, cuja educação intelectual é muito rudimentar, constitui também um eco atávico de lembranças fetichistas dos seus antepassados, somente agora aparecida em consequência do seu desequilíbrio mental.

Notas de Osório César:

1 – Mario Pilo. Manual de Esthetica. Trad. Port. 1904, pag. 115.
2 – Estudios de Psicologia sexual. V. IV. O simbolismo erótico. Trad. Hesp. Pag.6. Reus, Madrid, 1913.
1* - Dott. M. U. Masini. – Gli Immorale Nell’arte. Giovanni Antonio Bazzi, detto il “Sodoma”. Archivio di Antropologia criminale, psichiatria e medicina legale. Torino, 1915. Vol XXXVI, fasc. III. Pag. 277.
2* - Perret. – Histoire de l’art, T.III, Phenice, Cypre, pag. 52,253 et 458. Cit por M. Pommerol. – Association française pour l’avancement des sciences, 19 session, pag. 229, Limoges, 1890.
3* - “O símile do culto fálico existe hoje bem vivo no meio social atual, pois outra coisa não é a superstição que atribui à figa o poder de conjurar certos males. Que vem a ser a mão fechada, com o polegar entre o indicador e o médio? Perdeu-se a ligação mental originária, isto é, a significação primitiva do objeto, mas ficou a feição física que lhe trai a origem. Sendo um simples objeto conjurador de males, a ética, hoje, não impede que ele ande junto com as medalhas pendentes do pescoço das crianças, das moças e até nas cadeias de relógios dos homens”. Franco da Rocha, obra citada, pag. 131.
4* - Fr. Michel. – Les races maudites. T. I. pags. 170-171. Citado por Pommerol.
1** - M. Pommerol – La main dans les symboles et les superstitions. Association française pour l’avancement des sciences 19e session. Limoges, 1890, pag. 529.  
2** - F. Naval. – Arqueologia y Bellas Artes, pag. 2 Ruiz Hermanos. Madrid, 1912.
3** - Les origines de la Religion, T.I. pag. 117, Decaux, Paris, 1877.
4** - Venos babylonica (Nota do Autor).
1*** - Jules Baissac – obra citada, pag. 118.

2*** - S. Freud – Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. Tomo VIII das obras completas da tradução espanhola, pags. 266 – 267. 

Comentário sobre o texto:

Conforme já comentado em outros trechos do livro de Osório César, deve-se entender o trecho acima reproduzido dentro do que era considerado como conhecimento científico na década de 1920. De qualquer forma ele chama a atenção para a produção artística dos doentes mentais de então, correlacionando-as à arte e aos estudos da época. 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Capítulo 2 – Parte 3 – A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

Voltando ao nosso artista vemos, efetivamente, que a concepção da fig. 51 encerra motivos surpreendentes de originalidade para um estudo comparativo com a nova orientação estética.
À primeira vista, o que mais nos chama a atenção na escultura de T. é a deformação mórbida de seus membros.
Uma cabeça muito grande, face lisa, fisionomia de máscara; o nariz grande, quase grego; boca aberta (1), grande; lábios grossos; olhos grotescamente deformados; as mãos, porém, artisticamente modeladas (2).
Tudo isto dá ao conjunto escultórico uma expressão rítmica curiosa. Não podemos negar que, apesar do grosseiro acabamento e das deformidades exóticas das obras deste artista, têm elas, contudo, alguma coisa de estranho, de agradável, e que causa também admiração.
As deformidades na arte não se encontram somente entre os loucos e entre os artistas modernos. Vemo-las igualmente estudadas nos artistas desde a mais remota antiguidade. Assim, podemos apreciar na arte egípcia figurinhas de bronze representando monstruosidades de várias espécies.
“La plus ancienne école d’Egypte”, dizem Charcot e Richer (3),” l’école memphite, nous a laissé parmi plusieurs chefs-d’oevre une statue qu’il convient de placer ici en première ligne, c’est celle du nain Khoumhotpou, aujourd’hui au musée de Boulaq”.
Maspero descreve deste modo essa estátua: “La main a la tête grosse, allongée, contornée de deux vastes oreilles. La figure est niaise, l’oeil ouvert étroitement et retroussé vers les tempes, la bouche mal fendue. La poitrine est robuste et bien développée, mais le torse n’est pas em proportion avec le reste du corps. L’artiste a eu beau s’ingénier à em voiler la partie inférieure sous une belle jupe blanche, on sent qu’il est trop long pour les bras e pour les jambes. Le ventre se projete em pointe et les hanches se retirent pour faire contrepoids au ventre. Les cuisses n’existent guère qu’à l’etat rudimentaire; et l’individu entier, porte qu’il est sur des petits contrefaits, semble être hors d’aplomb et prêt à tomber la face contre terre”.
E também na arte grega, nas célebres figurinhas de Tanagra, vemos, entre as mais antigas, grosseiros simulacros de divindade talhados a machado num tronco, afetando em geral a forma quadrangular, com dois cotos por braços e uma vaga aparência de face humana (1*).
Esse espírito analítico de deformidades existe, pois, como acabamos de ver, na arte, em todos os tempos e em todos os povos como exuberância criadora de um realismo encantador. Além do mais, ele mostra um subjetivismo transcendental desenvolvido por uma técnica cuja liberdade é de um primitivismo ingênuo.
A qualidade dominante na arte de T., é o seu forte individualismo fetichista.
“Santo Antonio da Rocha” é o título que ele deu à estátua. É digna de nota a tendência plástica religiosa manifestada neste doente. E a explicação que procuramos dar a isto é a seguinte: T., apesar de haver nascido no Brasil, é de origem africana. Na África, a crença nos feitiços é muito espalhada. “Ainda hoje”, diz Taylor (2*),” a África ocidental é o país dos feitiços. O viajante os encontra em todos os caminhos, junto a todos os vales, à porta de todas as casas; com isso fazem colares que o homem leva sempre; os feitiços evitam a enfermidade ou a produzem, quando são esquecidos; ocasionam a chuva; enchem o mar de peixes que se deixam apanhar pelas redes do pescador; descobrem e castigam os ladrões; dão valor a seus adoradores e combatem contra os seus inimigos; enfim, nada há que os feitiços não possam fazer ou desfazer, à condição de que se encontre o feitiço conveniente”.
O sentimento religioso origina-se de um período primitivo da humanidade. Este período é o do fetichismo. Vejamos como Ribot (3*) se exprime a este respeito: “A primeira etapa é a do fetichismo, polidemonismo, naturalismo: termos que referentes à história das religiões, não são contudo completamente sinônimos, porém correspondem a um mesmo equivamente psíquico: a adoração de um objeto, vivo ou não, que é percebido, isto é tomado como concreto, ao mesmo tempo corpo e alma, ou melhor, animado, julgado como benévolo ou malévolo, útil ou prejudicial; porque é uma opinião pouco justificada a que pretende que o adorador de um pedaço de madeira ou de uma pedra só veja um objeto puramente material”.
E mais adiante esse mesmo autor (1**) explica a gênese dessa crença: “Essas formas primitivas da crença religiosa nasceram da tendência do selvagem, da criança quiçá do animal superior, a considerar tudo como animado, a atribuir desejos, paixões, vontade a tudo que se movimenta, representando a natureza segundo sua própria natureza. Este antropomorfismo resulta do despertar do pensamento raciocinante sob sua forma mais visual: a analogia, origem primeira dos mitos, da linguagem, das artes, até das ciências”.
Em virtude dessa herança atávica religiosa, será lícito pensar que estas esculturas modeladas em barro por T., com virtudes místicas, nada mais são que o resultado da explosão de crenças fetichistas de seus antepassados, somente agora despertada em razão de seu estado mental. 
Para o estudo da arte nos negros, como para outras raças de civilização primitiva, as crenças religiosas constituem fontes indispensáveis ao seu perfeito conhecimento.(Obs.1)
No tocante à significação das manifestações primitivas da cultura artística dos negros, representada principalmente por essas interessantes esculturas em madeira, Nina Rodrigues escreve o seguinte: "Não são ídolos, como se poderia acreditar à primeira vista, como o supõe o vulgo, como o têm afirmado cientistas e missionários que se deixam guiar pelas aparências e exterioridades. Os negro  da costa dos Escravos, seja, os de língua yorubana ou nagô, sejam os de língua gegê, tshi ou gà, não são idólatras. Entraram em uma fase muito curiosa do animismo, em que as suas divindades já partilham as quantidades antropomórficas das divindades politeistas, mas ainda conservam as formas exteriores do fetichismo primitivo. Changô, por exemplo, o deus do trovão, é certamente um homem-deus encarnado, mas que para se revelar aos mortais frequentemente reveste ainda a forma fetichista do meteorito" (2**).   

Notas de Osório Cesar:

1 – É preciso notar-se nas duas figuras o feitio especial da boca e do nariz que são acentuadamente sexuais. Ball cita um caso muito interessante de um indivíduo atacado de loucura erótica que desenhava representações simbólicas dos órgãos sexuais. Nos perfis que fazia imitava com bastante exatidão o tipo grego: as aberturas do nariz eram extremamente grandes com o fim de que permitissem a introdução do órgão sexual masculino.
2 – É muito original a maneira como esse artista modelou as mãos de sua estátua. Deu a elas um realismo espantoso. Dentro de sua própria imaginação o doente estilizou o mais que pode esse órgão, dando vidas aos seus nervos e a sua musculatura. Mais adiante explicaremos o simbolismo dessa estilização.
3 – Obra citada, pag. 15.
4 – C. Maspero – L’Archiologie égiptienne, pag. 213.
1* - João Barreira – A arte grega. Pag. 338. Lisboa, 1923.
2* - La civilisation primitive. Trad. Franc, pag. 207. Tome II.

3* - Th. Ribot. La Psicologia de los sentimentos. Trad. Esp. Jorro, pag.393. Madrid, 1924.  
1** - Th. Ribot. Obra citada, pag., 393.
2** - Kosmos, agosto, 1904. 

Observações e comentários:

Obs. 1 - Conforme já comentado anteriormente, devemos saber que nos anos 1920 a Ciência considerava os povos africanos, os povos indígenas, bem como outros povos nativos, como sendo "povos primitivos", em virtude da adaptação da Teoria da Evolução ao estudo antropológico dos povos, a partir de um assim chamado "eurocentrismo". Tal visão passou a ser contestada nas últimas décadas. 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Capítulo 2 – Parte 2 – A expressão artística nos alienados


...continuação do texto...

A obra artística é uma criação da fantasia, como bem disse Lazar (1). Esta questão de moldes, de medidas de “cannons”é o enclausuramento, é a morte, por assim dizer, do artista criador.
A arte para ser genial tem que ser livre.
“A beleza estética que (2) imediatamente se desprende da natureza, suscita na alma do artista, propensa ao êxtase, verdadeiras torrentes de sensações. Estas, por sua vez, emprestam seus elementos para a integração fantástica, produzindo, por assim dizer, a imagem virtual. Mas, do mesmo modo que a imagem refletida no espelho das águas correntes varia, quebra-se ou desaparece segundo a intensidade e a direção do movimento, assim também vai mudando esta imagem no espírito do artista, e, em definitiva, é distinta da imagem refletida pela água imóvel, que vem a ser a imagem da recordação. Apesar da sua mobilidade, encontra-se, entretanto, em íntima conexão com a natureza da qual procede. Na imagem concreta, deste modo lograda, se contêm todos os elementos formais, porém o processo que conduz aos meios de expressão está determinado de antemão”.
A beleza não é uma manifestação de escola, criada para uma admiração universal. Ela é só questão de temperamento.
A estética futurista apresenta vários pontos de contato com a dos manicômios. Não desejamos com isto censurar essa nova manifestação de arte; longe disso. Achamo-la até muito interessante assim como a estética dos alienados. Ambas são manifestações de arte e por isto são sentidas por temperamentos diversos e reproduzidas com sinceridade.
Picasso (3), o grande artista da palheta, nos seus quadros cubistas, representa uma individualidade original, longe dos preconceitos acadêmicos e que tanto tem influenciado a geração de seu tempo. Falando dele, Gordon (1*) assim se exprime: “Em considérant l’art de Picasso du point de vue psychologique, nous pouvons dire que son art represente une grande sensibilité et une fertilité plutôt qu’une recherche réfléchie, determinée et bien dirigée d’une conception esthétique individuelle. Personellement je pense qu’en présentant um tableau l’on ne doit pas s’intéresser à ce qu’il represente, mais aux sensations qu’on éprouve en l’étudiant et em l’analysant. Une peinture a plus de caracteres comuns avec um morceau qu’avec une photographie em couleurs. L’Art ne doit à notre avis reconnaitre aucune autorité, mais seulement la verité”.
Apreciemos também a figura 52, que é a reprodução de um interessante mármore de Alexandre Archipenko, esse russo revolucionário, cuja arte, nestes últimos anos, tem impressionado o grande mundo intelectual. A descrição que desse trabalho faz Hildebrandt (2*) é a seguinte:
“Todo el movimento de la mujer está en el centro del bloque que oferece uma aparência de calma. No por eso los câmbios de dirección están menos marcados; pero, a fin de no aminorar la impressión de concentración, los membros están acusados solamente por um relieve poco pronunciado. Vease, por ejemplo, como está trabajada la cabeza de la figura 52: el cuello no aparece sino como uma transición del torso a la cabeza inclinada adelante; los cabelos no hacen más que enquadrar el rosto circumscripto por uma sola linea marcadíssima. En este mismo rosto no hay más que dos acentos y de direcciones contrarias: la nariz recta en relieve poco acusado y el ojo sin pupila en forma de almendra. Em lo demás también se ha limitado a señalar solamente lo essencial y, sobre todo, las articulaciones que ha hecho ressaltar sobremaneira”.
Poderemos dizer aqui, como disse Voivenel (3*), que: “ao lado do salão dos independentes, o salão dos asilos de alienados não faria a má figura que pensam”.

Notas de O. Cesar:

1 – Béla Lázár – Los pintores impressionistas. Tradução espanhola da 2ª edição.
2 – Béla Lázár – obra citada, página 10.
3 – Picasso foi o mestre do cubismo; ele iniciou o movimento dessa escola, desejando, segundo Lafora, obter a expressão histórica dos volumes, sobre a inspiração das esculturas africanas.
1* - Alfred Gordon – La Psychologie de L’Art Moderne. Annales Médico Psychologiques, pag. 223. Masson. Paris, 1926.
2* - Hans Hildebrandt – Alejandre Archipenko. – Editora Internacional. Buenos Aires.
3* - La Raison chez le fous. Pag. 45. 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Capítulo 2 – Parte 1 – A expressão artística nos alienados


Após o título do Capítulo 2, Osório Cesar faz uma citação sumária dos assuntos a serem tratados neste capítulo conforme segue:

Os artistas do manicômio. Necessidade de uma emoção estética. Curioso caso de um escultor cubista do Hospital do Juquery. Arte decorativa. Pinturas murais. A tatuagem. A música (estudo comparativo). A dança (estudo comparativo).

Segue-se o texto do capítulo 2...

A manifestação artística em certos alienados, sob qualquer forma (escultura, desenho, pintura, poesia, etc.) é uma necessidade indispensável à sua vida de enclausurado. Talvez seja isto o motivo para que as suas ideias alucinatórias, de grandeza, etc. venham a se objetivar mais demoradamente no mundo da realidade material. E dessa forma nós observamos um fato singular. Os doentes que se entregam a essas cogitações ficam calmos, trabalham com prazer, estilizam as suas manifestações de arte com inteira satisfação de ânimo. Dir-se-ia que os seus pensamentos se perdem num enorme mundo de belezas.
E não se julgue que essa atitude de arte entre os alienados seja produto de reproduções mecânicas, estereotipadas, feitas sem interesse, sem afetividade. Puro engano. Grande parte desses artistas insanos possui uma verdadeira idolatria por tudo o que fazem e seus trabalhos são, às vezes, sob o ponto de vista estético, de um valor inestimável.
Vejamos.
Entre os artistas de Juquery, onde fomos buscar uma boa parte de nosso material, predominam os incultos, pelo que o número dos loucos poetas e literatos é muito reduzido. Os plásticos e os picturais são, ao contrário, mais numerosos.
Vamos tratar do caso de um escultor muito original, cubista, cuja história é interessante por se tratar de um indivíduo que nunca teve noção de arte e cuja educação intelectual sempre foi medíocre. As sua produções escultóricas giram todas num idêntico princípio: o feiticismo (1), e em algumas delas deixam reproduzir o sentimento atávico evocando a alma dos antepassados de sua raça.
Passemos à história do doente:
T., 32 anos, preto, soldado da polícia, casado, católico, brasileiro, procedente da Cadeia Pública. Entrou no Hospital do Juquery a 2 de julho de 1919. Pai falecido há 22 anos. Mãe viva e forte. Tem quatro irmãos normais. Sabe ler e escrever. Teve na infância moléstia grave cuja natureza ignoramos. Na puberdade teve as primeiras práticas sexuais aos 17 anos.
Doente removido da Cadeia Pública, onde estava preso por ter assassinado a mulher a machadadas.
Somaticamente apresenta diversos estigmas de degeneração, tais como assimetria craniana, orelhas pequenas e abauladas, abóbada palatina funda e pés chatos.
Conta ele que ultimamente não tinha sossego em casa, porque todo o mundo se implicava com ele e por isso resolveu mudar-se. Mas não alcançou tranquilidade; os cursos operários, as telefonagens, as cloroformizações continuaram.
Mesmo de longe, o agente o dominava, mudando o seu pensamento e dando-lhe choques elétricos pelo corpo.
Um dia houve uma embrulhada; ficou cloroformizado e as telefonagens o obrigavam a matar a mulher. Esta, porém, não morreu, segundo ele afirma, mas multiplicou-se e hoje há muitas mulheres idênticas à sua. Ele também foi morto e desdobrou-se em B.
Aqui, no Hospital, continuam a perseguí-lo. Fazem tudo para aborrecê-lo; cantam como galo, latem como cachorro, viram o seu pensamento, que, aliás, é conhecido por todo o mundo.
Reage muitas vezes e procura agredir os empregados ou os demais doentes; no mais passa bem e conversa com relativo acerto.
Esta observação que acabamos de ver foi tomada pelo Dr. Alvarenga, em 2 de fevereiro de 1919. Hoje o doente se apresenta mais calmo, porém a sua história em nada modificou. Além disto, ele se intitula médico, comunica-se de vez em quando com “os poderes espirituais do espaço” e receita fórmulas com medicamentos da sua extravagante imaginação, criando neologismos interessantes. Eis aqui um exemplo de uma fórmula para curar febres:
Dracinus com mel de pau.....50,0
Clorente................................30,0
Álcool drocies......................183,0
Corsemante........................300,0
Tome meio cálice de 2 em 2 horas.
Ultimamente a sua preocupação diária é modelar em barro figuras grotescas de uma originalidade palpitante e de um realismo disforme. Elas representam, a nosso ver, em T., como mais adiante justificaremos, um grito atávico de recordações passadas.
Vejamos a figura 50, uma das suas curiosas produções. “São Jacinto” é o nome que ele gravou nos pés da escultura. É um feitiço. “A imagem”, diz ele, referindo-se a São Jacinto, “foi construída com o ouro mais puro da mina que encontrei no terreiro e ela possui a virtude de espalhar a felicidade entre os homens”.
Do ponto de vista artístico nota-se uma certa originalidade na expressão que a figura apresenta.
A cabeça está coberta por um boné, tendo no alto uma cruz e lembra uma “pose” de “apache”. Na face, nota-se, além dos olhos empapuçados, o nariz desajeitado e chato, caindo em diagonal sobre a boca semiaberta. Uma longa barba cobre todo o queixo, terminando no abdômen dilatado. Não se veem os braços nem as mãos. As pernas, pequenas e desengonçadas, emprestam a esse monstrengo uma atitude singular. Na perna direita nota-se uma atrofia acentuada dos músculos da coxa. Essa escultura faz-nos lembrar a carranca grotesca da Igreja de Santa Maria Formosa, em Veneza, produto da arte decadente italiana, e que Ruskin descreve da seguinte maneira: “uma cabeça enorme, horrenda, sobrenatural, de uma degradação bestial, excessivamente ignóbil para ser descrita ou para ser olhada mais de um instante” (1*).
Charcot e Richer, levando essa arte disforme para o terreno da medicina, estudaram acuradamente num livro interessante (2) a célebre cabeça da Igreja de Santa Maria Formosa. “L’artiste de Santa Maria Formosa”, dizem eles, “em quête d’um type grotesque, nous parait l’avoir rencontré sur son chemin, vue de ses yeux, saisi au passage et reproduit avec une fidélité qui nous permet aujourd’hui d’y retrouver les marques d’une déformation pathologique, d’une affection nerveuse nettement definie et dont nous avons eu récemment sous nos yeux, à la Salpêtrière, des exemples fort intéresssantes. Il s’agit d’um spasme de la face d’une nature spéciale, coexistant solvente chez les sujets hystériques mâles ou femelles avec une hemiparalysie des membres et présentant des caracteres si tranches qu’il est impossible de le confondre avec une autre affection spasmodique faciale”.
Quanto ao nosso artista, não possuímos melhores informações do seu passado, além das que já vimos. O meio em que ele viveu, certamente não o ambientou nessas tendências escultóricas, pois foi soldado de polícia durante muito tempo.
Na escultura da figura 51, muito mais extravagante, nos mostra a sua arte. Ela apresenta todos os caracteres da arte cubista (3). Sentimos dentro dela palpitar a mentalidade primitiva representando uma ideia religiosa sob uma forma plástica de beleza. Não se assustem os leitores se classificamos de beleza a obra deste artista alienado. Hoje em dia a concepção de beleza tem sentido muito diferente do que há anos atrás.

(seguem abaixo as notas de rodapé de Osório Cesar)

1 – Feiticismo e não Fetichismo como erradamente se costuma escrever. Este vocábulo é de origem portuguesa e não francesa, como muita gente ainda pensa. Vem de feitiço e foi empregado pela primeira vez, muito antes dos franceses, pelos primeiros exploradores de Guiné, como diz muito bem Fernando Ortiz no seu interessante livro “Glossário de Afronegrismos”, às páginas 204 e 205, que passamos a transcrever:
“Fetiche.m. – Cada uno de los ídolos de culte supersticioso em tierra de negros”.
“Asi disse la R. Academia, y dando por aceptable esta definicion, sin entrar em analisis, muy posibles a la altura de los actuales estúdios comparativos de las religiones, passemos a la etimologia”.
“Esta palavra no es um afronegrismo, aunque se refiera a cosas de los negros africanos, al igual que sucede com otros vocábulos forjados por los europeus, como ‘etiopia’, o por los árabes, como ‘cafre’, etc.”
“La R. Academia supone que etimologicamente la palavra proviene del francés, fétiche, y este del latin, factitius, de facere, hacer”.
“Sin embargo, la opinion mas generalizada, y la mas verossímil, es que fétiche procede del portugués feitiço ‘hechizo’, aplicado por los primeiros exploradores de Guiné, muy anteriores a los francezes, a los objetos proprios de las supersticiones y rito de los africanos”.
“Sabido es que la voz fétiche, asi como las derivadas fetichismo, fetichero y fetichista fueron lanzadas a la circulacion del lenguage cientifico por la famosa obra de Ch. De Brosses – Du culte des Dieux fetiches ou Parallele de l’ancienne Religion de l’Egypte avec la Religion actuelle de Nigritie (1760). Y em la seccion primera de este libro (pag. 18) se hace constar claramente que el vocablo fetiche procede del portuguéz antiguo fetisso, de la raiz latina fatum”.
“Pero antes el holandês Bosman (A New and Acurate Description of the Coast of Guinea, Londres, 1721, pags. 121 e sigts) ya usó ampliamente el vocablo y explicó sus varios sentidos, como bien disse The Encyclopedia Britannica (1914)”.
“Todavia pudiera añadirsele a tan autorizada enciclopédia, em el siglo XVII, em 1665, encuentrase y ala voz portuguesa fetisso, y algunas veces, por error, fetisto y fetistoes, usadas por ingleses para significar lo que hoy desimos fetiche. Como se ve, el origen portugués del vocablo es evidente, y la etimologia franceza, que nos propone la R. Academia Española, es rectificable”.
1* - John Ruskin – Les Pierres de Venise. Trad. Francesa, pag. 244.
2 – Les disformes et les Malades dans L’Art. Pag. 3, Babé. Edit. Paris, 1889.
3 – A arte cubista e a expressionista representam o cume da arte subjetiva e individualista, pois nelas o artista proclama inteira liberdade absoluta de expressão, de técnica e de seleção de motivos não sensoriais. É a arte cerebral por excelência, porém nesta cerebração o fundamental ou o inicial é de inferior categoria psíquica, é um esforço para a vida primitiva, e o superior, psiquicamente considerado, é a elaboração ornamental que a consciência acrescenta logo para revestir inteligentemente os símbolos e complexos subconscientes da criação artística (Lafora, obra cit.).

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Capítulo 1 – Parte 14 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

As artes do 4º grupo, último de nossa classificação, são maneirismos estereotipados, confusos, impregnados de conceitos que nos parecem absurdos, sem coerência lógica, desordenados e envoltos por um esquisito, obscuro e quase indecifrável simbolismo (figs. 41, 42). Entretanto, o estudo desse gênero de arte, de acordo com a psicanálise de Freud, é muito curioso e vem revelar aos nossos olhos, em vários casos, principalmente nos de demência precoce, como veremos mais adiante, uma perfeita decifração dos símbolos desenhados inconscientemente, donde sua interpretação dos mais insignificantes acontecimentos da vida infantil do artista, complexos amorosos que, na maioria das vezes, são responsáveis diretos pelo estado mental do paciente.
Os símbolos que os doentes usam para as suas produções artísticas pertencem à simbologia que Freud (1) observa na interpretação dos sonhos. Assim, os órgãos genitais masculinos são, por exemplo, representados por bengalas, limas, serpentes, punhais, revólveres, torneiras, dirigíveis Zeppelin, peixes, etc.. Os órgãos femininos têm sua representação em vasos, caixas, cofres, portas, frutos, etc..
Em novembro de 1927, apresentamos à Sociedade de Medicina de São Paulo, em colaboração com o Dr. Durval Marcondes, psiquiatra da Inspeção Médico-Escolar, dois casos interessantes de estereotipia gráfica com simbolismo sexual. Vamos ver a história desses doentes e as suas curiosas representações gráficas.
No primeiro caso trata-se de um indivíduo de 24 anos, branco, brasileiro, solteiro, operário, internado no Hospital do Juquery em 25-9-1926.
Conforme informações prestadas por um cunhado, foi sempre um moço muito dedicado ao seu trabalho de pedreiro, tendo recebido instrução primária. Não existem outros casos de moléstia mental na família. Sua doença principiou em 1922, após um desgosto amoroso advindo de rixas com sua namorada.
Desde o dia em que entrou para o Hospital, não emite uma só palavra, tendo, porém, boa compreensão, pois responde por mímica às perguntas que lhe são dirigidas. Mantém-se em completo alheamento ao meio, sentado o dia todo num banco do pátio e interessado unicamente em desenhar. Munido de um lápis, desenha sobre todo o papel que lhe cai às mãos, e na falta de papel aproveita panos e outros objetos que pode ter à sua disposição.
Quando foi examinado pela primeira vez, o seu chapéu de palha estava cheio de figuras a lápis. Em seus desenhos (figs. 43, 44, 45, 46), repetem-se sempre os mesmos temas como que constituindo uma estereotipia gráfica. São pássaros, bastões, limas, punhais, balões dirigíveis, vasos, peras e portas com fechaduras. Tem uma verdadeira obsessão pelos motivos de suas manifestações artísticas, e tanto é assim que, tendo-se-lhe pedido que desenhasse um elefante, esboçou a forma de um pássaro e, advertido no meio da tarefa de que tal desenho não correspondia ao pedido, terminou-o com um corpo e cauda de um animal quadrúpede.
O diagnóstico foi o de demência precoce catatônica.
Era esse o estado do doente pouco tempo depois de sua entrada para o Hospital. De então para cá, o quadro clínico pouco mudou, continuando a obsessão em não querer falar. A princípio, o doente era muito ordeiro, apresentando sempre uma fisionomia calma. Ultimamente, porém, e logo após uma visita da família, tem passado por um período de mau humor, tornando-se violento a ponto de esmurrar um companheiro pelo simples fato de ter-lhe esbarrado no pé.
O segundo caso é o de um homem com 48 anos, branco, católico, italiano, casado, camarada de estrada de ferro, internado no Hospital do Juquery em 3-7-1911.
Não há informações sobre seus antecedentes. Foi condenado a 6 anos de prisão por ter assassinado um companheiro.
Apresenta-se sempre em atitude de sofrimento, com a fisionomia cerrada e a fronte enrugada. Responde contrariado às perguntas, prestando poucas informações.
Não tem noção de tempo e de meio. Apresenta um delírio místico e persecutório: perseguem-no constantemente, fazendo-o sofrer toda sorte de martírios. Não respeitam seu corpo, que é divino, servem-se dele para praticar a pederastia. À noite, não o deixam dormir e sujeitam-no constantemente à pederastia passiva. Queixa-se de que não há justiça no Brasil, pelo que tenciona fazer uma reclamação ao governo da Itália.
Interrogado sobre o crime que cometeu, diz que matou a facadas um companheiro porque era um miserável que não o respeitava.
Tem alucinações cenestésicas e visuais.
Diagnóstico: demência precoce paranoide.
Esse quadro clínico, que é o que consta da observação da entrada, mudou bastante com o decorrer do tempo. Seu humor e a sua atitude em face do meio sofreram radical modificação: tornou-se ótimo trabalhador, vivendo satisfeito, em ampla liberdade. Construiu, há tempos, numa das colônias do Hospital, uma habitação extravagante, em forma de funil, feita de varas de bambu e coberta de folhas secas. Nessa habitação viviam inúmeros gatos que o doente tratava com todo carinho.
Com essa modificação de seu estado mórbido, instalou-se uma tendência a fazer desenhos decorativos, com temas estereotipados, não havendo papel que chegue para suas manifestações artísticas. Desenha figuras ornamentais em que aparecem principalmente árvores de longo caule, pássaros, serpentes, mãos, pés, punhais, revólveres, etc. (fig. 47, 48, 49). Não sabe explicar a razão desses temas.
Vamos proceder agora à descrição dessas figuras, a fim de compreendermos bem o mecanismo de sua gênese. Vejamos a fig. 47.
O quê representa esse desenho? A primeira impressão que temos é a de uma decoração assíria. As duas figuras estilizadas são de sexos diferentes. A do lado direito é de uma mulher, como se poderá bem distinguir pelo acabamento do desenho, pelas formas dos pés e pelo contorno arredondado do colo. Também a estilização da cabeça é muito mais cuidada. A ausência de perspectiva mostra o desenho de perfil e ao mesmo tempo de frente. É bastante curiosa a representação que ele dá das cabeças de suas figuras. Na totalidade de seus desenhos esse cunho individual é invariável. De um dos olhos nota-se uma lágrima que se desprende. A túnica que ele envolve as figuras está decorada em toda a sua extensão por um rendilhado de olhos à guisa de enfeite. No centro da figura da mulher vê-se um punhal do tempo dos cruzados com a sua clássica cruz e contendo em seu interior, como motivo ornamental, uma cobra hipnotizando um passarinho, símbolo este que não se cansa o artista de representar em quase todos os seus desenhos. Na figura do homem encontramos bem esquematizado esse símbolo de que acabamos de falar. Vemos também a figuração do sol e duas mãos, sendo uma delas grosseiramente desenhada. No centro das duas figuras há um disco ou escudo ornamentado, preso à coronha e ao cano de uma espingarda.
Como vimos, trata-se de um indivíduo que cometeu um crime de homicídio, em consequência do delírio persecutório, que ele já deveria ter apresentado muito antes da realização desse ato. É de supor, pois, que neste doente se tenha implantado, muito tempo antes de haver assassinado o companheiro, um delírio persecutório. A gênese desses delírios persecutórios é claramente explicada pelo professor Roxo no seu belo livro “Manual de Psiquiatria”, no capítulo de delírio sistematizado, à página 315, de que passamos a transcrever:
“Os doentes de delírio sistematizado alucinatório crônico têm, no início de seu mal, um distúrbio de cenestesia. Os doentes não se sentem bem, vivem tristes, mal humorados e muito desconfiados. Procuram viver isolados. Nada lhes dá prazer. Neste interim se desenvolve uma zoada nos ouvidos que pode ser devida a um pouco de cera, a catarro na trompa de Eustáquio, a modificações da pressão sanguínea, nos vasos dos canais semicirculares da orelha média, havendo anemia ou hiperemia, a qualquer afecção do labirinto, etc..”
“Em vez de recorrer aos cuidados de um especialista e de atribuir ao próprio ouvido o que nele se passa, começa o doente a prestar atenção demasiada aos zumbidos e a esmerilhar detalhes deles.”
“Às vezes, dizem que há um sibilo constante, ou um barulho semelhante ao de um caramujo que se lhes encostasse no ouvido, ou ao de um apito de locomotiva, ou parecido com o vento a soprar pelas frestas.”
“Começa o doente a ter como verdadeira ideia obsessiva a zoada nos ouvidos e, à força de dar a ela toda a atenção, entra a perceber que no meio daquele barulho confuso há alguma coisa que lembra a voz humana.”
“A princípio escuta sons confusos, depois sílabas destacadas, depois frases isoladas e, finalmente, expressões completas.”
“No início, não consegue reconhecer pela voz quem lhe fala, mas no fim de pouco tempo identifica perfeitamente a voz que lhe tortura os dias à de uma dada pessoa de suas relações. Sucede que as palavras que vai escutando são sempre insultosas e um delírio de perseguição se constitui de modo perfeitamente lógico e razoável.”
“A inteligência se mantém perfeitamente íntegra e, às vezes, até pode se desenvolver pela longa meditação e cultivo, no rebuscar constante da gênese dos fenômenos que sobre ele atuam.”
“No caso vertente, a base de toda ideação é falsa, porque depende de alucinações, mas, à parte isto, o silogismo é tão perfeito como em qualquer pessoa mentalmente sã.”
“Se qualquer de nós tivesse uma pessoa a nos insultar constantemente, não poderia deixar de enfurecer-se. Compreende-se, pois, muito bem, que o doente de delírio sistematizado alucinatório crônico viva irritadíssimo contra o seu suposto perseguidor e que se torne um elemento perigosíssimo para o infeliz, no qual ele alveja todo o seu rancor.”
“É uma questão de identificação de voz, e qualquer um pode ser escolhido como perseguidor. Não é necessário ser uma pessoa das relações diárias do doente: qualquer um pode ser visado.”
“Vê-se, pois, quanto é perigoso o doente de delírio sistematizado alucinatório crônico, que pode premeditar um homicídio com todas as cautelas e depois buscar justificar o seu ato, descrevendo com todos os foros de verossimilhança uma perseguição atroz que afirma lhe haver sido movida.”
“Como a inteligência persista íntegra, não há coisa alguma impossível de se realizar, no mecanismo da perseguição que descreve.”
“A perseguição vai a pouco e pouco se tornando mais acentuada e é ela sempre baseada em alucinações do ouvido que o doente está convencido de que sejam a pura expressão da realidade. A princípio, o doente experimenta a tortura do delírio persecutório e não reage. Procura evitar o convívio social, entrega-se à meditação e leva a excogitar porque o perseguem.”
“Quando chega à conclusão de que é tudo o fruto de uma perversidade e que nada fez para que merecesse este padecer, quando reconhece numa dada pessoa o autor de tudo, resolve vingar-se e tornar-se perseguidor.”
Como nesse doente atualmente tenha desaparecido o período de excitação, tornando-se calmo e inofensivo, as suas alucinações de outrora são presentemente estampadas em estereotipias gráficas girando numa única base: o móvel do crime. Assim, vê-se nas figuras 47, 48, 49 a existência de símbolos, vestígios de fatos passados na sua vida e reproduzidas dessa maneira em caráter de alucinações visuais.
O punhal e a espingarda, que ele não se esquece de colocar em todos os seus desenhos, são reminiscências do crime. A figura feminina lembra a de sua esposa. E a prova disto está na presença do anel que ele põe em todas as mãos que desenha. A lágrima corresponde ao sentimento de saudade como recordações do que se passou na sua vida. Quando lhe perguntamos se é casado, se tem mulher, se matou um companheiro, ele fica pensativo e o seu semblante toma um aspecto de tristeza, os olhos ficam umedecidos, parados, fitando-nos demoradamente. Logo aparece a defesa, tudo muda, um riso forçado desabrocha, e ele responde em seguida negativamente a todas aquelas perguntas que lhe fizemos.
A figura 48 apresenta os mesmo detalhes de imaginação que a da antecedente e por isto seria enfadonho se tornássemos a repetir a interpretação dos símbolos que, aliás, como dissemos, são sempre os mesmos. A única variante a se notar nesse desenho é o centro da composição.
Vê-se que S. é um artista decorador. A firmeza do seu traço e a vida que transborda de seus desenhos (veja principalmente a figura 49) em vista de sua avançada idade, pois atualmente ele está com 63 anos, nos causa estranha admiração. A sua arte, além de tudo, é exclusivamente simbólica.
O pensamento simbólico caracteriza a mentalidade dos primitivos, é a forma do pensamento por excelência do ser afetivo normal, (expressão artística, etc.) ou patológico (neurose, psicose); é também a forma que assume a atividade psíquica do sonho. Pode ser definido com Hesnard: uma forma do pensamento que exprime um fato afetivo, tendência, ideia emocional, etc.) pela representação dum objeto concreto, é um processo da atividade psíquica elementar inferior, que associa concretos, como sucede na criança, no selvagem, etc. (1)
O abuso dos símbolos, na manifestação externa do pensamento, faz lembrar (2), diz muito acertadamente Lopes Cardoso, que o espírito dos alienados sofre uma regressão atavística às épocas pré-históricas da humanidade. Tal regressão é ainda indicada, continua esse autor, por outros fatos, tais como a mímica espantosa nos mais insignificantes detalhes de qualquer quadro e na falta absoluta de perspectiva.
Como se vê, as manifestações artísticas que esses doentes estereotipam correspondem exatamente aos símbolos freudianos, podendo ter para a interpretação o mesmo valor das manifestações oníricas. De acordo com os dados psicanalíticos, elas nos revelam que as ideias sexuais estão dominando a vida afetiva do paciente, realçando desse modo, no ponto de vista da formação dos sintomas, a importância que pode ter o seu passado amoroso.
É muito interessante a contribuição que a psicanálise tem trazido ao conhecimento do conteúdo psicológico da demência precoce. Assim, os psiquiatras da escola de Zurich, que são os que mais têm estudado o assunto, afirmam que os esquizofrênicos alimentam uma atividade psíquica considerável, atividade essa que obedece a leis comparáveis ao sonho normal. Voltados para dentro de si próprios, mergulhados no seu “autismo”, são como sonhadores que vivessem aparentemente uma vida desperta, mas que conservassem seu espírito entregue a uma espécie de sonho prolongado. Nos casos de obsessão em não querer falar, como é o de nossa primeira observação, os doentes se defendem, por essa forma negativista, contra as solicitações que tendem a reconduzi-los ao mundo real e privá-los da grande harmonia de belezas que os envolve.  
Desse modo, como, além de seu conteúdo manifesto, o sonho nos apresenta um conteúdo latente, feito dos anseios e dos temores inconscientes, assim também na demência precoce, por trás da aparente anarquia do pensamento, pode-se muitas  vezes descobrir o nódulo afetivo que determina o quadro sintomático. Como quaisquer outros sintomas, as estereotipias, à primeira vista destituídas de sentido, podem conter uma ideia de alta significação simbólica, presa ao conteúdo latente da psicose. Jung nos conta, por exemplo (1*), o caso de uma velha demente do asilo de Burghölzli, que durante largo tempo não cansou de produzir enormes calos, fazia gestos estereotipados como os de sapateiro que costurasse botinas. Depois de sua morte soube-se por informações de um parente que viera ao enterro que a doente tivera um desgosto amoroso antes de adoecer e que o herói desse romance fora um sapateiro.  .
A nossa afirmação, de que a estereotipia gráfica de nossos doentes é da mesma natureza psicológica que os sonhos de conteúdo sexual de Freud, parece à primeira vista absurda para aqueles que não conhecem a doutrina do mestre de Viena. Quem esteja, porém, familiarizado com os estudos psicanalíticos, vê nas duas manifestações psíquicas a expressão do mesmo processo simbólico de atividade mental, que é um meio elementar e sintético de representação, peculiar à criança e ao homem primitivo.

1 – E. de Vasconcelos – Lições de psicologia geral, pag. 351. Lisboa, 1925. Guimarães et Cie.
2 – Lopes Cardoso – Gênio e Loucura.
1* - Jung. – Der Inhalt der Psychose. 




sábado, 12 de janeiro de 2013

Capítulo 1 – Parte 13 – A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

No terceiro grupo estão enquadradas todas as artes descritas no segundo grupo e mais a pintura. Aqui, a arte dos alienados é uma arte normal, bem equilibrada e por isto mesmo sem grande interesse para o nosso estudo a não ser tocante a um ou outro ponto de concepção original que ela possa ter (figs. 36, 37, 38, 39, 40). Por isto, comparamos as manifestações artísticas dos alienados que pertencem a esse grupo, com a arte comum, a arte acadêmica.

Vejamos a observação de um doente do Hospital do Juquery, autor dos trabalhos escultóricos que acabamos de citar.
 C., masculino, 49 anos de idade, branco, entalhador, solteiro, austríaco, entrou no Hospital em 1 de maio de 1923.
As informações, algumas fornecidas por uma irmã do observado e outras do próprio doente, são imprecisas e não oferecem dados suficientes para uma boa anamnese.

O exame da reflectibilidade denota: exaltação acentuada dos tendinosos; o pupilar tem boa reação; não se verifica desigualdade pupilar; há exagerada sensibilidade cutânea. Apresenta tremores das mãos e da língua estendidas; a abóbada palatina é larga e chata; a úvula apresenta-se ligeiramente desviada para a esquerda. Seus dentes são estragados e falhos. Apresenta também uma ponta de hérnia do lado esquerdo da região inguinal. Não traz vícios de conformação adquiridos ou congênitos. Sua atitude, seu modo de alimentar-se, de andar, os gestos, são normais. Tem sono tranquilo. É asseado. Boa compleição física. Exame mental: alguma instrução preliminar. Expressa-se muito mal em português; é difícil fazer-se entender; compreende, no entanto, as nossas interpelações e pratica com acerto, denunciando integridade de atenção, certas operações matemáticas e alguns desenhos da sua especialidade. Refere com boa memória alguns fatos de sua vida passada. Sua dissertação, algo incompreensível e por vezes confusa, exterioriza o delírio persecutório a que se refere a irmã em uma carta dirigida a nós. Não se conhece e o doente não informa como teve início a psicose de que está acometido. Foi isto aos 24 anos de idade e forçou-lhe a internação por seis anos. Deste hospício saiu aparentemente curado, tendo vindo para o Brasil há 10 anos. Durante o tempo decorrido de 1914 até o de 1920 conservou-se calmo, trabalhador e gentil para a família. De 3 anos para cá tem apresentado períodos de excitação sucedidos de uma remissão também passageira. Há 2 anos perdeu a mãe; o abalo moral provocou-lhe “acessos nervosos” (informações da irmã) mais violentos, revelando-se o delírio de perseguição que lhe permite ver na irmã a assassina de sua mãe e um grande perigo para a sua (dele) integridade física. Prometia insistentemente a exterminação de sua irmã (perseguido-perseguidor) a quem acusava também de haver desrespeitado sua mulher. Vê-se nisto, patentemente, o delírio persecutório, pois o observado é solteiro. Ultimamente apresentava uma verdadeira obsessão pelo jogo de xadrez, a cujos problemas se dedicava dias e dias; mas, interrompido por alguém que lhe solicitasse qualquer serviço, “fazia-o de boa vontade e bem feito”. Mais tarde a insônia e terrores noturnos: “tinha sonhos terrificantes – gritava muito, sendo preciso que se o acordasse” – informa a irmã. Diz o doente que abusava de bebidas alcoólicas.

Não é bem típico o quadro deste doente; pensamos, no entanto em classifica-lo entre os casos de delírio sistematizado alucinatório crônico.

A arte deste doente pode-se considerar como uma arte realista acadêmica, fazendo parte, por isto, do terceiro grupo da nossa classificação das artes nos alienados (veja página 6). A figura 36 representa um busto modelado com massa de pão. É bem curiosa a expressão fisionômica da cabeça. A técnica é apreciável e é de notar a extraordinária semelhança que esse busto apresenta com a imagem do autor. Achamos uma certa liberdade na confecção desse trabalho, que é o melhor da coleção que possuímos desse artista e que difere inteiramente dos outros trabalhos feitos posteriormente. Vejamos a figura 37; é uma estátua de barro e cimento. Aqui o artista empregou uma outra técnica na confecção da obra; a expressão do rosto é um pouco dura e não há uniformidade na disposição dos membros. Os braços são muito longos e as mãos pessimamente modeladas. Da mesma maneira se mostram as pernas. Enfim, essa escultura apresenta uma outra tendência artística do autor, que se aproxima sensivelmente da arte egípcia. A figura 38 apresenta também os caracteres escultóricos da figura 37. Esse busto, modelado em barro e cimento, possui uma expressão escultórica relativamente boa. Há alguma semelhança com os bustos romanos. A figura 39, “Cristo crucificado”, apesar de ter sido modelada com a mesma técnica da obra anterior, apresenta vários defeitos tanto na confecção e nas proporções da figura quanto na perspectiva. Notamos que a fisionomia do Cristo é calma e não aparenta nenhuma alteração de sofrimento. Os músculos não dão sinal de vida; nenhuma contratura se observa como sinal de dor.
As obras desse alienado artista apresentam, como vimos, várias formas de sentimento estético. Não há um caráter definido de individualidade neste artista. Ora ele faz trabalhos realistas, expressivos, que nos causam admiração, como o da fig. 36, ora ele se dirige, com uma técnica grosseira, para a escultura arcaica, como a das figuras 37 e 38. Ora a sua arte tem as características da arte greco-romana, como a representada pela figura 40. Não encontramos estereotipias e nem extravagâncias de imaginação nas suas produções artísticas. A múltipla individualidade escultórica desse doente não deixa, entretanto, de nos interessar, já pela simplicidade de sua confecção, ou seja pela presença de autocrítica que ele sempre demonstrou ter na realização de suas obras.