...continuação do texto...
As artes do 4º grupo, último de nossa classificação, são
maneirismos estereotipados, confusos, impregnados de conceitos que nos parecem
absurdos, sem coerência lógica, desordenados e envoltos por um esquisito,
obscuro e quase indecifrável simbolismo (figs. 41, 42). Entretanto, o estudo
desse gênero de arte, de acordo com a psicanálise de Freud, é muito curioso e
vem revelar aos nossos olhos, em vários casos, principalmente nos de demência
precoce, como veremos mais adiante, uma perfeita decifração dos símbolos
desenhados inconscientemente, donde sua interpretação dos mais insignificantes
acontecimentos da vida infantil do artista, complexos amorosos que, na maioria
das vezes, são responsáveis diretos pelo estado mental do paciente.
Os símbolos que os doentes usam para as suas produções
artísticas pertencem à simbologia que Freud (1) observa na interpretação dos
sonhos. Assim, os órgãos genitais masculinos são, por exemplo, representados
por bengalas, limas, serpentes, punhais, revólveres, torneiras, dirigíveis
Zeppelin, peixes, etc.. Os órgãos femininos têm sua representação em vasos,
caixas, cofres, portas, frutos, etc..
Em novembro de 1927, apresentamos à Sociedade de Medicina de
São Paulo, em colaboração com o Dr. Durval Marcondes, psiquiatra da Inspeção Médico-Escolar,
dois casos interessantes de estereotipia gráfica com simbolismo sexual. Vamos
ver a história desses doentes e as suas curiosas representações gráficas.
No primeiro caso trata-se de um indivíduo de 24 anos, branco,
brasileiro, solteiro, operário, internado no Hospital do Juquery em 25-9-1926.
Conforme informações prestadas por um cunhado, foi sempre um moço
muito dedicado ao seu trabalho de pedreiro, tendo recebido instrução primária.
Não existem outros casos de moléstia mental na família. Sua doença principiou
em 1922, após um desgosto amoroso advindo de rixas com sua namorada.
Desde o dia em que entrou para o Hospital, não emite uma só
palavra, tendo, porém, boa compreensão, pois responde por mímica às perguntas
que lhe são dirigidas. Mantém-se em completo alheamento ao meio, sentado o dia
todo num banco do pátio e interessado unicamente em desenhar. Munido de um
lápis, desenha sobre todo o papel que lhe cai às mãos, e na falta de papel
aproveita panos e outros objetos que pode ter à sua disposição.
Quando foi examinado pela primeira vez, o seu chapéu de palha
estava cheio de figuras a lápis. Em seus desenhos (figs. 43, 44, 45, 46),
repetem-se sempre os mesmos temas como que constituindo uma estereotipia
gráfica. São pássaros, bastões, limas, punhais, balões dirigíveis, vasos, peras
e portas com fechaduras. Tem uma verdadeira obsessão pelos motivos de suas
manifestações artísticas, e tanto é assim que, tendo-se-lhe pedido que
desenhasse um elefante, esboçou a forma de um pássaro e, advertido no meio da
tarefa de que tal desenho não correspondia ao pedido, terminou-o com um corpo e
cauda de um animal quadrúpede.
O diagnóstico foi o de demência precoce catatônica.
Era esse o estado do doente pouco tempo depois de sua entrada
para o Hospital. De então para cá, o quadro clínico pouco mudou, continuando a
obsessão em não querer falar. A princípio, o doente era muito ordeiro,
apresentando sempre uma fisionomia calma. Ultimamente, porém, e logo após uma
visita da família, tem passado por um período de mau humor, tornando-se
violento a ponto de esmurrar um companheiro pelo simples fato de ter-lhe
esbarrado no pé.
O segundo caso é o de um homem com 48 anos, branco, católico,
italiano, casado, camarada de estrada de ferro, internado no Hospital do
Juquery em 3-7-1911.
Não há informações sobre seus antecedentes. Foi condenado a 6
anos de prisão por ter assassinado um companheiro.
Apresenta-se sempre em atitude de sofrimento, com a fisionomia
cerrada e a fronte enrugada. Responde contrariado às perguntas, prestando
poucas informações.
Não tem noção de tempo e de meio. Apresenta um delírio
místico e persecutório: perseguem-no constantemente, fazendo-o sofrer toda
sorte de martírios. Não respeitam seu corpo, que é divino, servem-se dele para
praticar a pederastia. À noite, não o deixam dormir e sujeitam-no
constantemente à pederastia passiva. Queixa-se de que não há justiça no Brasil,
pelo que tenciona fazer uma reclamação ao governo da Itália.
Interrogado sobre o crime que cometeu, diz que matou a
facadas um companheiro porque era um miserável que não o respeitava.
Tem alucinações cenestésicas e visuais.
Diagnóstico: demência precoce paranoide.
Esse quadro clínico, que é o que consta da observação da
entrada, mudou bastante com o decorrer do tempo. Seu humor e a sua atitude em
face do meio sofreram radical modificação: tornou-se ótimo trabalhador, vivendo
satisfeito, em ampla liberdade. Construiu, há tempos, numa das colônias do
Hospital, uma habitação extravagante, em forma de funil, feita de varas de
bambu e coberta de folhas secas. Nessa habitação viviam inúmeros gatos que o
doente tratava com todo carinho.
Com essa modificação de seu estado mórbido, instalou-se uma
tendência a fazer desenhos decorativos, com temas estereotipados, não havendo
papel que chegue para suas manifestações artísticas. Desenha figuras
ornamentais em que aparecem principalmente árvores de longo caule, pássaros,
serpentes, mãos, pés, punhais, revólveres, etc. (fig. 47, 48, 49). Não sabe
explicar a razão desses temas.
Vamos proceder agora à descrição dessas figuras, a fim de
compreendermos bem o mecanismo de sua gênese. Vejamos a fig. 47.
O quê representa esse desenho? A primeira impressão que temos
é a de uma decoração assíria. As duas figuras estilizadas são de sexos
diferentes. A do lado direito é de uma mulher, como se poderá bem distinguir
pelo acabamento do desenho, pelas formas dos pés e pelo contorno arredondado do
colo. Também a estilização da cabeça é muito mais cuidada. A ausência de
perspectiva mostra o desenho de perfil e ao mesmo tempo de frente. É bastante
curiosa a representação que ele dá das cabeças de suas figuras. Na totalidade
de seus desenhos esse cunho individual é invariável. De um dos olhos nota-se
uma lágrima que se desprende. A túnica que ele envolve as figuras está decorada
em toda a sua extensão por um rendilhado de olhos à guisa de enfeite. No centro
da figura da mulher vê-se um punhal do tempo dos cruzados com a sua clássica
cruz e contendo em seu interior, como motivo ornamental, uma cobra hipnotizando
um passarinho, símbolo este que não se cansa o artista de representar em quase
todos os seus desenhos. Na figura do homem encontramos bem esquematizado esse
símbolo de que acabamos de falar. Vemos também a figuração do sol e duas mãos, sendo
uma delas grosseiramente desenhada. No centro das duas figuras há um disco ou
escudo ornamentado, preso à coronha e ao cano de uma espingarda.
Como vimos, trata-se de um indivíduo que cometeu um crime de
homicídio, em consequência do delírio persecutório, que ele já deveria ter
apresentado muito antes da realização desse ato. É de supor, pois, que neste
doente se tenha implantado, muito tempo antes de haver assassinado o
companheiro, um delírio persecutório. A gênese desses delírios persecutórios é
claramente explicada pelo professor Roxo no seu belo livro “Manual de
Psiquiatria”, no capítulo de delírio sistematizado, à página 315, de que
passamos a transcrever:
“Os doentes de delírio sistematizado alucinatório crônico
têm, no início de seu mal, um distúrbio de cenestesia. Os doentes não se sentem
bem, vivem tristes, mal humorados e muito desconfiados. Procuram viver
isolados. Nada lhes dá prazer. Neste interim se desenvolve uma zoada nos
ouvidos que pode ser devida a um pouco de cera, a catarro na trompa de
Eustáquio, a modificações da pressão sanguínea, nos vasos dos canais semicirculares
da orelha média, havendo anemia ou hiperemia, a qualquer afecção do labirinto,
etc..”
“Em vez de recorrer aos cuidados de um especialista e de
atribuir ao próprio ouvido o que nele se passa, começa o doente a prestar
atenção demasiada aos zumbidos e a esmerilhar detalhes deles.”
“Às vezes, dizem que há um sibilo constante, ou um barulho
semelhante ao de um caramujo que se lhes encostasse no ouvido, ou ao de um
apito de locomotiva, ou parecido com o vento a soprar pelas frestas.”
“Começa o doente a ter como verdadeira ideia obsessiva a
zoada nos ouvidos e, à força de dar a ela toda a atenção, entra a perceber que
no meio daquele barulho confuso há alguma coisa que lembra a voz humana.”
“A princípio escuta sons confusos, depois sílabas destacadas,
depois frases isoladas e, finalmente, expressões completas.”
“No início, não consegue reconhecer pela voz quem lhe fala,
mas no fim de pouco tempo identifica perfeitamente a voz que lhe tortura os
dias à de uma dada pessoa de suas relações. Sucede que as palavras que vai
escutando são sempre insultosas e um delírio de perseguição se constitui de
modo perfeitamente lógico e razoável.”
“A inteligência se mantém perfeitamente íntegra e, às vezes,
até pode se desenvolver pela longa meditação e cultivo, no rebuscar constante
da gênese dos fenômenos que sobre ele atuam.”
“No caso vertente, a base de toda ideação é falsa, porque
depende de alucinações, mas, à parte isto, o silogismo é tão perfeito como em
qualquer pessoa mentalmente sã.”
“Se qualquer de nós tivesse uma pessoa a nos insultar
constantemente, não poderia deixar de enfurecer-se. Compreende-se, pois, muito
bem, que o doente de delírio sistematizado alucinatório crônico viva irritadíssimo
contra o seu suposto perseguidor e que se torne um elemento perigosíssimo para
o infeliz, no qual ele alveja todo o seu rancor.”
“É uma questão de identificação de voz, e qualquer um pode ser
escolhido como perseguidor. Não é necessário ser uma pessoa das relações
diárias do doente: qualquer um pode ser visado.”
“Vê-se, pois, quanto é perigoso o doente de delírio
sistematizado alucinatório crônico, que pode premeditar um homicídio com todas
as cautelas e depois buscar justificar o seu ato, descrevendo com todos os
foros de verossimilhança uma perseguição atroz que afirma lhe haver sido
movida.”
“Como a inteligência persista íntegra, não há coisa alguma
impossível de se realizar, no mecanismo da perseguição que descreve.”
“A perseguição vai a pouco e pouco se tornando mais acentuada
e é ela sempre baseada em alucinações do ouvido que o doente está convencido de
que sejam a pura expressão da realidade. A princípio, o doente experimenta a
tortura do delírio persecutório e não reage. Procura evitar o convívio social,
entrega-se à meditação e leva a excogitar porque o perseguem.”
“Quando chega à conclusão de que é tudo o fruto de uma
perversidade e que nada fez para que merecesse este padecer, quando reconhece
numa dada pessoa o autor de tudo, resolve vingar-se e tornar-se perseguidor.”
Como nesse doente atualmente tenha desaparecido o período de
excitação, tornando-se calmo e inofensivo, as suas alucinações de outrora são
presentemente estampadas em estereotipias gráficas girando numa única base: o
móvel do crime. Assim, vê-se nas figuras 47, 48, 49 a existência de símbolos,
vestígios de fatos passados na sua vida e reproduzidas dessa maneira em caráter
de alucinações visuais.
O punhal e a espingarda, que ele não se esquece de colocar em
todos os seus desenhos, são reminiscências do crime. A figura feminina lembra a
de sua esposa. E a prova disto está na presença do anel que ele põe em todas as
mãos que desenha. A lágrima corresponde ao sentimento de saudade como
recordações do que se passou na sua vida. Quando lhe perguntamos se é casado,
se tem mulher, se matou um companheiro, ele fica pensativo e o seu semblante
toma um aspecto de tristeza, os olhos ficam umedecidos, parados, fitando-nos
demoradamente. Logo aparece a defesa, tudo muda, um riso forçado desabrocha, e
ele responde em seguida negativamente a todas aquelas perguntas que lhe fizemos.
A figura 48 apresenta os mesmo detalhes de imaginação que a
da antecedente e por isto seria enfadonho se tornássemos a repetir a
interpretação dos símbolos que, aliás, como dissemos, são sempre os mesmos. A
única variante a se notar nesse desenho é o centro da composição.
Vê-se que S. é um artista decorador. A firmeza do seu traço e
a vida que transborda de seus desenhos (veja principalmente a figura 49) em
vista de sua avançada idade, pois atualmente ele está com 63 anos, nos causa
estranha admiração. A sua arte, além de tudo, é exclusivamente simbólica.
O pensamento simbólico caracteriza a mentalidade dos
primitivos, é a forma do pensamento por excelência do ser afetivo normal,
(expressão artística, etc.) ou patológico (neurose, psicose); é também a forma
que assume a atividade psíquica do sonho. Pode ser definido com Hesnard: uma
forma do pensamento que exprime um fato afetivo, tendência, ideia emocional,
etc.) pela representação dum objeto concreto, é um processo da atividade
psíquica elementar inferior, que associa concretos, como sucede na criança, no selvagem,
etc. (1)
O abuso dos símbolos, na manifestação externa do pensamento,
faz lembrar (2), diz muito acertadamente Lopes Cardoso, que o espírito dos
alienados sofre uma regressão atavística às épocas pré-históricas da
humanidade. Tal regressão é ainda indicada, continua esse autor, por outros
fatos, tais como a mímica espantosa
nos mais insignificantes detalhes de qualquer quadro e na falta absoluta de perspectiva.
Como se vê, as manifestações artísticas que esses doentes
estereotipam correspondem exatamente aos símbolos freudianos, podendo ter para
a interpretação o mesmo valor das manifestações oníricas. De acordo com os
dados psicanalíticos, elas nos revelam que as ideias sexuais estão dominando a
vida afetiva do paciente, realçando desse modo, no ponto de vista da formação
dos sintomas, a importância que pode ter o seu passado amoroso.
É muito interessante a contribuição que a psicanálise tem
trazido ao conhecimento do conteúdo psicológico da demência precoce. Assim, os
psiquiatras da escola de Zurich, que são os que mais têm estudado o assunto,
afirmam que os esquizofrênicos alimentam uma atividade psíquica considerável,
atividade essa que obedece a leis comparáveis ao sonho normal. Voltados para
dentro de si próprios, mergulhados no seu “autismo”, são como sonhadores que
vivessem aparentemente uma vida desperta, mas que conservassem seu espírito
entregue a uma espécie de sonho prolongado. Nos casos de obsessão em não querer
falar, como é o de nossa primeira observação, os doentes se defendem, por essa
forma negativista, contra as solicitações que tendem a reconduzi-los ao mundo
real e privá-los da grande harmonia de belezas que os envolve.
Desse modo, como, além de seu conteúdo manifesto, o sonho nos
apresenta um conteúdo latente, feito dos anseios e dos temores inconscientes,
assim também na demência precoce, por trás da aparente anarquia do pensamento,
pode-se muitas vezes descobrir o nódulo
afetivo que determina o quadro sintomático. Como quaisquer outros sintomas, as
estereotipias, à primeira vista destituídas de sentido, podem conter uma ideia
de alta significação simbólica, presa ao conteúdo latente da psicose. Jung nos
conta, por exemplo (1*), o caso de uma velha demente do asilo de Burghölzli,
que durante largo tempo não cansou de produzir enormes calos, fazia gestos
estereotipados como os de sapateiro que costurasse botinas. Depois de sua morte
soube-se por informações de um parente que viera ao enterro que a doente tivera
um desgosto amoroso antes de adoecer e que o herói desse romance fora um
sapateiro. .
A nossa afirmação, de que a estereotipia gráfica de nossos
doentes é da mesma natureza psicológica que os sonhos de conteúdo sexual de
Freud, parece à primeira vista absurda para aqueles que não conhecem a doutrina
do mestre de Viena. Quem esteja, porém, familiarizado com os estudos
psicanalíticos, vê nas duas manifestações psíquicas a expressão do mesmo
processo simbólico de atividade mental, que é um meio elementar e sintético de
representação, peculiar à criança e ao homem primitivo.
1 – E. de Vasconcelos – Lições de psicologia geral, pag. 351.
Lisboa, 1925. Guimarães et Cie.
2 – Lopes Cardoso – Gênio e Loucura.
1* - Jung. – Der Inhalt der Psychose.
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