...continuação do texto...
Voltando ao nosso artista vemos, efetivamente, que a
concepção da fig. 51 encerra motivos surpreendentes de originalidade para um
estudo comparativo com a nova orientação estética.
À primeira vista, o que mais nos chama a atenção na escultura
de T. é a deformação mórbida de seus membros.
Uma cabeça muito grande, face lisa, fisionomia de máscara; o
nariz grande, quase grego; boca aberta (1), grande; lábios grossos; olhos grotescamente
deformados; as mãos, porém, artisticamente modeladas (2).
Tudo isto dá ao conjunto escultórico uma expressão rítmica
curiosa. Não podemos negar que, apesar do grosseiro acabamento e das
deformidades exóticas das obras deste artista, têm elas, contudo, alguma coisa
de estranho, de agradável, e que causa também admiração.
As deformidades na arte não se encontram somente entre os
loucos e entre os artistas modernos. Vemo-las igualmente estudadas nos artistas
desde a mais remota antiguidade. Assim, podemos apreciar na arte egípcia
figurinhas de bronze representando monstruosidades de várias espécies.
“La plus ancienne école d’Egypte”, dizem Charcot e Richer
(3),” l’école memphite, nous a laissé parmi plusieurs chefs-d’oevre une statue
qu’il convient de placer ici en première ligne, c’est celle du nain
Khoumhotpou, aujourd’hui au musée de Boulaq”.
Maspero descreve deste modo essa estátua: “La main a la tête
grosse, allongée, contornée de deux vastes oreilles. La figure est niaise, l’oeil
ouvert étroitement et retroussé vers les tempes, la bouche mal fendue. La
poitrine est robuste et bien développée, mais le torse n’est pas em proportion avec
le reste du corps. L’artiste a eu beau s’ingénier à em voiler la partie
inférieure sous une belle jupe blanche, on sent qu’il est trop long pour les
bras e pour les jambes. Le ventre se projete em pointe et les hanches se
retirent pour faire contrepoids au ventre. Les cuisses n’existent guère qu’à l’etat
rudimentaire; et l’individu entier, porte qu’il est sur des petits contrefaits,
semble être hors d’aplomb et prêt à tomber la face contre terre”.
E também na arte grega, nas célebres figurinhas de Tanagra,
vemos, entre as mais antigas, grosseiros simulacros de divindade talhados a
machado num tronco, afetando em geral a forma quadrangular, com dois cotos por
braços e uma vaga aparência de face humana (1*).
Esse espírito analítico de deformidades existe, pois, como
acabamos de ver, na arte, em todos os tempos e em todos os povos como
exuberância criadora de um realismo encantador. Além do mais, ele mostra um
subjetivismo transcendental desenvolvido por uma técnica cuja liberdade é de um
primitivismo ingênuo.
A qualidade dominante na arte de T., é o seu forte
individualismo fetichista.
“Santo Antonio da Rocha” é o título que ele deu à estátua. É
digna de nota a tendência plástica religiosa manifestada neste doente. E a
explicação que procuramos dar a isto é a seguinte: T., apesar de haver nascido
no Brasil, é de origem africana. Na África, a crença nos feitiços é muito
espalhada. “Ainda hoje”, diz Taylor (2*),” a África ocidental é o país dos
feitiços. O viajante os encontra em todos os caminhos, junto a todos os vales,
à porta de todas as casas; com isso fazem colares que o homem leva sempre; os
feitiços evitam a enfermidade ou a produzem, quando são esquecidos; ocasionam a
chuva; enchem o mar de peixes que se deixam apanhar pelas redes do pescador;
descobrem e castigam os ladrões; dão valor a seus adoradores e combatem contra
os seus inimigos; enfim, nada há que os feitiços não possam fazer ou desfazer,
à condição de que se encontre o feitiço conveniente”.
O sentimento religioso origina-se de um período primitivo da
humanidade. Este período é o do fetichismo. Vejamos como Ribot (3*) se exprime
a este respeito: “A primeira etapa é a do fetichismo, polidemonismo,
naturalismo: termos que referentes à história das religiões, não são contudo
completamente sinônimos, porém correspondem a um mesmo equivamente psíquico: a
adoração de um objeto, vivo ou não, que é percebido,
isto é tomado como concreto, ao mesmo tempo corpo e alma, ou melhor, animado,
julgado como benévolo ou malévolo, útil ou prejudicial; porque é uma opinião
pouco justificada a que pretende que o adorador de um pedaço de madeira ou de
uma pedra só veja um objeto puramente material”.
E mais adiante esse mesmo autor (1**) explica a gênese dessa
crença: “Essas formas primitivas da crença religiosa nasceram da tendência do
selvagem, da criança quiçá do animal superior, a considerar tudo como animado,
a atribuir desejos, paixões, vontade a tudo que se movimenta, representando a
natureza segundo sua própria natureza. Este antropomorfismo resulta do
despertar do pensamento raciocinante sob sua forma mais visual: a analogia,
origem primeira dos mitos, da linguagem, das artes, até das ciências”.
Em virtude dessa herança atávica religiosa, será lícito
pensar que estas esculturas modeladas em barro por T., com virtudes místicas,
nada mais são que o resultado da explosão de crenças fetichistas de seus
antepassados, somente agora despertada em razão de seu estado mental.
Para o estudo da arte nos negros, como para outras raças de civilização primitiva, as crenças religiosas constituem fontes indispensáveis ao seu perfeito conhecimento.(Obs.1)
No tocante à significação das manifestações primitivas da cultura artística dos negros, representada principalmente por essas interessantes esculturas em madeira, Nina Rodrigues escreve o seguinte: "Não são ídolos, como se poderia acreditar à primeira vista, como o supõe o vulgo, como o têm afirmado cientistas e missionários que se deixam guiar pelas aparências e exterioridades. Os negro da costa dos Escravos, seja, os de língua yorubana ou nagô, sejam os de língua gegê, tshi ou gà, não são idólatras. Entraram em uma fase muito curiosa do animismo, em que as suas divindades já partilham as quantidades antropomórficas das divindades politeistas, mas ainda conservam as formas exteriores do fetichismo primitivo. Changô, por exemplo, o deus do trovão, é certamente um homem-deus encarnado, mas que para se revelar aos mortais frequentemente reveste ainda a forma fetichista do meteorito" (2**).
Notas de Osório Cesar:
1 – É preciso notar-se nas duas figuras o feitio especial da
boca e do nariz que são acentuadamente sexuais. Ball cita um caso muito
interessante de um indivíduo atacado de loucura erótica que desenhava
representações simbólicas dos órgãos sexuais. Nos perfis que fazia imitava com
bastante exatidão o tipo grego: as aberturas do nariz eram extremamente grandes
com o fim de que permitissem a introdução do órgão sexual masculino.
2 – É muito original a maneira como esse artista modelou as
mãos de sua estátua. Deu a elas um realismo espantoso. Dentro de sua própria
imaginação o doente estilizou o mais que pode esse órgão, dando vidas aos seus
nervos e a sua musculatura. Mais adiante explicaremos o simbolismo dessa
estilização.
3 – Obra citada, pag. 15.
4 – C. Maspero – L’Archiologie égiptienne, pag. 213.
1* - João Barreira – A arte grega. Pag. 338. Lisboa, 1923.
2* - La
civilisation primitive. Trad. Franc, pag. 207. Tome II.
3* - Th. Ribot. La Psicologia de los sentimentos. Trad. Esp.
Jorro, pag.393. Madrid, 1924.
1** - Th. Ribot. Obra citada, pag., 393.
2** - Kosmos, agosto, 1904.
Observações e comentários:
Obs. 1 - Conforme já comentado anteriormente, devemos saber que nos anos 1920 a Ciência considerava os povos africanos, os povos indígenas, bem como outros povos nativos, como sendo "povos primitivos", em virtude da adaptação da Teoria da Evolução ao estudo antropológico dos povos, a partir de um assim chamado "eurocentrismo". Tal visão passou a ser contestada nas últimas décadas.
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