Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Capítulo 5 – Parte 4 – A Expressão Artística nos Alienados


...continuação do texto...

Para avaliarmos melhor os escritos literários dos alienados desse grupo, primeiro da classificação de Réja, apresentamos mais estes versos originais, cuja incoerência nas ideias é flagrante, saltando aos nossos olhos um palavrório puramente intelectual, salpicado de vez em quando de grosseira expressão, entre ideias e imagens confusas:

Apologia de Napoléon (1)

Onze minutes, criant, horizon.
Canons, lueurs, secondes, dètonation.
Nous calculâmes qu’Apollon
Fasse cent dix lieues en phaeton;

Dix-huit-cent, observe Colonel,
Qu’Icare se perdit au soleil,
Don Louis ne mourut pas, Napoléon,
Craignit d’Espagne l’Inquisition,
Le duc d’Enghien ne devait pas suffrire
Pour tuer souffrir, il guillotine.

As obras do segundo grupo – onde se encontra contida uma emoção ou uma ideia – são numerosas.
O mecanismo psíquico nesses doentes acha-se fortemente excitado; o fenômeno mórbido da obsessão impulsiva cria então, na imaginação deles, ideias artísticas e literárias surpreendentes.
“A imaginação superexcitada faz conhecer ideias artísticas e literárias, diz Régis, que surgem em multidão e nada têm nelas mesmas de absurdo e se conservam nos limites da coerência. Muitas vezes mesmo, em razão do estado de exaltação extrema das faculdades intelectuais, elas oferecem um caráter de originalidade, de novidade, de distinção e de superioridade, que as tornam verdadeiramente admiráveis”.
Escutemos:

Rayon d’amour (2)

Quand je te vois, mon bel ange adore
L’amour fait tressaillir mon âme,
Ma lèvre alors sur ton sein enfievré
Dépose un doux baiser de flame.

A moi seul appartient ton coeur;
Je l’aimer, ai la vie entière,
Rayon d’amour, douce lumière,
Apporte-moi, le vrai bonheur.

Esses versos, de simplicidade encantadora e bela sonoridade, são de um histérico, com provas de sadismo.
Eis um soneto muito curioso da lavra de um doente de psicose maníaco-depressiva:

Buraco (3)

Buraco que não é de formiga
Que é um fundinho mui gostoso,
a uns beatos causa intriga
por motivo religioso...

Perdoê-nos a Santa Religião
Tão severa em seus mandamentos,
gozemos o Amor e a paixão
nos seus psicológicos momentos.

Oh! O amor nasceu com o homem,
É o seu eterno companheiro,
nem a dor nem o tempo consomem
as  veemências do deus brejeiro...

O homem foi feito de barro
Como diz a Santa Escritura,
mas é um vivente mui bizarro
obediente às leis da Natura.

O nosso caríssimo pai Adão
Que feliz viveu no Paraíso,
por sua Eva teve forte paixão
pecou, gozou, não teve juízo...

Sigamos o nosso primeiro pai
que sentindo Amor gozou a flor...
Amai, humanidade, Amai!

Apreciemos agora uma das produções mais originais que temos visto na literatura dos alienados, como concepção, vida movimento e malabarismo desenfreado:

Dédié à ma brue (4)
Études astronomiques – Littèrature française
Himne á la terre

Em ta révolution, marche, marche Terre que me reçus, me donna assistence, la vie.2
Toi que mes pieds ont foulé et foulent encore. 3
Toi, qui fus dans ma jeunesse l’object de mes ètudes et que j’étudie toujours.
Toi, dont j’admire la légèreté, la vitesse,4 la régularité: 4 bis Quelle Loi te contraint depuis des siécles des siécles!
Soecula Soeculorum! 5
Dans ta course... sensèe, toujours tu évites un choc que pour des Humains serait leur perte.
Mais Celui 6 qui fit le monde, voulut malgré ta rotation 7, qu’ils restassent debout et qu’ils n’ignorent point que Tu parcours, dans l’imensité pendant une année accompagnée de ton Atmosphére e de ton Satellite. Lune – une étendue au minimum, de Deux cent trente millions de lieuses!
                           230.000.000 !
Matin! Notes
1.      En 365 jours, 6 heures.
2.      Allusions au domaine de VE
3.      69 ans.
4.      550.000 lieues en 24 heures.
5.      Indè finiment.
6.      Le Créateur.
7.      En 24 heures, chont
                          4 bis se rend toujours à son point de départ.

Essa composição literária, de uma formidável engenhosidade cabalística de palavras, escritas por um louco, não deixa de apresentar uma certa emoção aos leitores, sobretudo quando se conhecem as produções da arte ultramoderna.
Como exemplo, citemos o Poema Abúlico, de Mário de Andrade, que é um dos mais interessantes trabalhos do apreciado e querido escritor da nova geração dos artistas paulistanos:

Poema Abúlico (5)
                              A Graça Aranha

Imobilidade aos solavancos.
Mário, paga os 200 reis!
Ondas de automóveis
                  árvores
                  jardins...
As maretas das calçadas vêm brincar a meus pés.
E os vagalhões dos edifícios do largo.
Viajo no sulco das ondas
                                              Ondulantemente...
Sinto-me entre mim e a terra exterior.
                     Terra subconsciente de ninguém
Mas não passa ano sem guerra!
Nem mês sem revoluções!
Os jornaleiros fascistas invadem o bonde, impondo-me a leitura
dos jornais...
                     Mussolini falou.
Os delegados internacionais chegaram a Lausanne.
                     Ironias involuntárias!
Esta mulher terá sorrisos talvez...
                     Pouca atração das mulheres sérias!
                     Sei duma criança que é um Politeama de convites
                     de atrações...
As brisas cobrem-me os lábios com as rosas do Anhangabaú. Sol
pálido chauffeur japonês atarracado como um boxista.
                                         Luz e força!
                                Light & Power
Eu sou o poeta das viagens de bonde!
Explorador em busca de aventuras urbanas!
Cendrars viajou o universo vendo a dança das paisagens...
Viajei em todos os bondes da Pauliceia!
Mas em vez da dança das paisagens,
Contei uma por uma todas rosas paulistanas
 e penetrei o segredo das casas baixas!
                  O! quartos de dormir!...
                  O! alcovas escuras e saias brancas de morim!
                  Conheço todos os enfeites das salas de visitas!
                  Almofadas de gato preto;
                  lustres floridos em papel de seda...
                 Tenho a erudição das toalhas crespas de crochê, sobre
                 o mármore das mesinhas e no recosto dos sofás!
                 Sei de cor milhares de litografias e oleogravuras!
                 Desdêmona dorme muito branca
                 Otelo de joelhos, junto do leito, põe a mão no coração.
                 Have you prayed tonight, Desdêmona?
                 E os bibelôs gêmeos sobre os pianos!
                 A moça está de azul
                 Ele de cor de rosa...
                 Valsas lânguidas de minha meninice!
Em seguida: Invasão dos Estados Unidos.
Shimmyficação universal!
O foxtrote é a verdadeira música!
Mas Liszt ainda atrai paladares burgueses...
        Polônias interminavelmente escravizadas!
             Paderewski desiludiu-se do patriotismo e voltou aos a-
plausos internacionais...
                   Como D’Annunzio.
                   Como Clemenceau.
                                 Os homens que foram reis hão de sempre a-
cabar fazendo conferências?!...
Mas para mim os mais felizes do mundo
são os que nascem duvidando se são turcos ou gregos...
                                                       franceses ou alemães?
                                  Nem sabe a quem pertence a ilha de Martim
Garcia!...
              História universal em pequenas sensações
                    Terras de Ninguém!...
               ...como as mulheres no regime bolchevista...
No entanto meus braços com desejo de peso de corpos...
Um torso grácil, ágil, musculoso...
Um torso moreno, brasil...
Exalação de seios ardentes...
Nuca roliça, rorada de suor...
Uns lábios uns lábios preguiçosos esquecidos num beijo
de amor...
Crepito:
E uma febre...
Meus braços se agitam.
Meus olhos procuram de amor.
Sensualidade sem motivo...
É o olor óleo das magnólias no ar voluptuosos desta rua.
          Dezembro – 1922.
                                                            Mário de Andrade.

Notas de Osório César:

1 – Citado por Réja, pag. 114, obr. cit.
2 – Viegen – Le talento poétique chez les dégénérés. Thése de Bordeaux, 1904.
3 – Os versos foram feitos quando o doente se achava em estado de excitação maníaca, sendo notável o número de poesias por ele compostas durante essa fase da psicose maníaco-depressiva.  
4 – Citado por Réja, pag. 123. Obra cit.
5 – Klaxon, nº 8-9. São Paulo, 1922-23.  

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