...continuação do texto...
Para avaliarmos melhor os escritos literários dos alienados
desse grupo, primeiro da classificação de Réja, apresentamos mais estes versos
originais, cuja incoerência nas ideias é flagrante, saltando aos nossos olhos
um palavrório puramente intelectual, salpicado de vez em quando de grosseira
expressão, entre ideias e imagens confusas:
Apologia de Napoléon (1)
Onze minutes, criant,
horizon.
Canons, lueurs, secondes, dètonation.
Nous calculâmes qu’Apollon
Fasse cent dix lieues en phaeton;
Dix-huit-cent, observe Colonel,
Qu’Icare se perdit au
soleil,
Don Louis ne mourut pas, Napoléon,
Craignit d’Espagne l’Inquisition,
Le duc d’Enghien ne devait pas suffrire
Pour tuer souffrir, il guillotine.
As obras do segundo grupo – onde se encontra contida uma
emoção ou uma ideia – são numerosas.
O mecanismo psíquico nesses doentes acha-se fortemente
excitado; o fenômeno mórbido da obsessão impulsiva cria então, na imaginação
deles, ideias artísticas e literárias surpreendentes.
“A imaginação superexcitada faz conhecer ideias artísticas e
literárias, diz Régis, que surgem em multidão e nada têm nelas mesmas de
absurdo e se conservam nos limites da coerência. Muitas vezes mesmo, em razão
do estado de exaltação extrema das faculdades intelectuais, elas oferecem um
caráter de originalidade, de novidade, de distinção e de superioridade, que as
tornam verdadeiramente admiráveis”.
Escutemos:
Rayon d’amour (2)
Quand je te vois, mon
bel ange adore
L’amour fait tressaillir mon âme,
Ma lèvre alors sur ton sein enfievré
Dépose un doux baiser
de flame.
A moi seul appartient ton coeur;
Je l’aimer, ai la vie entière,
Rayon d’amour, douce
lumière,
Apporte-moi, le vrai
bonheur.
Esses versos, de simplicidade encantadora e bela sonoridade,
são de um histérico, com provas de sadismo.
Eis um soneto muito curioso da lavra de um doente de psicose
maníaco-depressiva:
Buraco (3)
Buraco que não é de
formiga
Que é um fundinho mui
gostoso,
a uns beatos causa
intriga
por motivo religioso...
Perdoê-nos a Santa
Religião
Tão severa em seus
mandamentos,
gozemos o Amor e a
paixão
nos seus psicológicos
momentos.
Oh! O amor nasceu com o
homem,
É o seu eterno
companheiro,
nem a dor nem o tempo
consomem
as veemências do deus brejeiro...
O homem foi feito de
barro
Como diz a Santa
Escritura,
mas é um vivente mui
bizarro
obediente às leis da
Natura.
O nosso caríssimo pai
Adão
Que feliz viveu no
Paraíso,
por sua Eva teve forte
paixão
pecou, gozou, não teve
juízo...
Sigamos o nosso
primeiro pai
que sentindo Amor gozou
a flor...
Amai, humanidade, Amai!
Apreciemos agora uma das produções mais originais que temos
visto na literatura dos alienados, como concepção, vida movimento e malabarismo
desenfreado:
Dédié à ma brue (4)
Études astronomiques – Littèrature française
Himne á la terre
Em ta révolution,
marche, marche Terre que me reçus, me donna assistence, la vie.2
Toi que mes pieds ont foulé et foulent encore. 3
Toi, qui fus dans ma
jeunesse l’object de mes ètudes et que j’étudie toujours.
Toi, dont j’admire la
légèreté, la vitesse,4 la régularité: 4 bis Quelle Loi te contraint depuis des
siécles des siécles!
Soecula Soeculorum! 5
Dans ta course... sensèe, toujours tu évites un choc que pour des
Humains serait leur perte.
Mais Celui 6 qui fit le monde, voulut malgré ta rotation 7, qu’ils
restassent debout et qu’ils n’ignorent point que Tu parcours, dans l’imensité
pendant une année accompagnée de ton Atmosphére e de ton Satellite. Lune – une étendue
au minimum, de Deux cent trente millions de lieuses!
230.000.000 !
Matin! Notes
1.
En
365 jours, 6 heures.
2.
Allusions
au domaine de VE
3.
69
ans.
4.
550.000
lieues en 24 heures.
5.
Indè
finiment.
6.
Le
Créateur.
7.
En
24 heures, chont
4 bis se rend
toujours à son point de départ.
Essa composição literária, de uma formidável engenhosidade
cabalística de palavras, escritas por um louco, não deixa de apresentar uma
certa emoção aos leitores, sobretudo quando se conhecem as produções da arte
ultramoderna.
Como exemplo, citemos o Poema Abúlico, de Mário de Andrade,
que é um dos mais interessantes trabalhos do apreciado e querido escritor da
nova geração dos artistas paulistanos:
Poema Abúlico (5)
A Graça Aranha
Imobilidade aos
solavancos.
Mário, paga os 200
reis!
Ondas de automóveis
árvores
jardins...
As maretas das calçadas
vêm brincar a meus pés.
E os vagalhões dos
edifícios do largo.
Viajo no sulco das
ondas
Ondulantemente...
Sinto-me entre mim e a
terra exterior.
Terra subconsciente de ninguém
Mas não passa ano sem
guerra!
Nem mês sem revoluções!
Os jornaleiros
fascistas invadem o bonde, impondo-me a leitura
dos jornais...
Mussolini falou.
Os delegados
internacionais chegaram a Lausanne.
Ironias involuntárias!
Esta mulher terá
sorrisos talvez...
Pouca atração das mulheres sérias!
Sei duma criança que é um
Politeama de convites
de atrações...
As brisas cobrem-me os
lábios com as rosas do Anhangabaú. Sol
pálido chauffeur
japonês atarracado como um boxista.
Luz e
força!
Light &
Power
Eu sou o poeta das
viagens de bonde!
Explorador em busca de
aventuras urbanas!
Cendrars viajou o
universo vendo a dança das paisagens...
Viajei em todos os
bondes da Pauliceia!
Mas em vez da dança das
paisagens,
Contei uma por uma
todas rosas paulistanas
e penetrei o segredo das casas baixas!
O! quartos de dormir!...
O! alcovas escuras e saias
brancas de morim!
Conheço todos os enfeites das
salas de visitas!
Almofadas de gato preto;
lustres floridos em papel de
seda...
Tenho a erudição das toalhas
crespas de crochê, sobre
o mármore das mesinhas e no
recosto dos sofás!
Sei de cor milhares de litografias e
oleogravuras!
Desdêmona dorme muito branca
Otelo de joelhos, junto do
leito, põe a mão no coração.
Have you prayed
tonight, Desdêmona?
E os bibelôs gêmeos sobre os
pianos!
A moça está de azul
Ele de cor de rosa...
Valsas lânguidas de minha
meninice!
Em seguida: Invasão dos
Estados Unidos.
Shimmyficação
universal!
O foxtrote é a
verdadeira música!
Mas Liszt ainda atrai
paladares burgueses...
Polônias
interminavelmente escravizadas!
Paderewski desiludiu-se do
patriotismo e voltou aos a-
plausos
internacionais...
Como D’Annunzio.
Como Clemenceau.
Os homens que
foram reis hão de sempre a-
cabar fazendo
conferências?!...
Mas para mim os mais
felizes do mundo
são os que nascem
duvidando se são turcos ou gregos...
franceses ou alemães?
Nem sabe a quem
pertence a ilha de Martim
Garcia!...
História
universal em pequenas sensações
Terras de Ninguém!...
...como as mulheres no regime
bolchevista...
No entanto meus braços
com desejo de peso de corpos...
Um torso grácil, ágil,
musculoso...
Um torso moreno,
brasil...
Exalação de seios
ardentes...
Nuca roliça, rorada de
suor...
Uns lábios uns lábios
preguiçosos esquecidos num beijo
de amor...
Crepito:
E uma febre...
Meus braços se agitam.
Meus olhos procuram de
amor.
Sensualidade sem
motivo...
É o olor óleo das
magnólias no ar voluptuosos desta rua.
Dezembro – 1922.
Mário de Andrade.
Notas de Osório César:
1 – Citado por Réja, pag. 114, obr. cit.
2 – Viegen – Le talento poétique chez les dégénérés. Thése de
Bordeaux, 1904.
3 – Os versos foram feitos quando o doente se achava em
estado de excitação maníaca, sendo notável o número de poesias por ele
compostas durante essa fase da psicose maníaco-depressiva.
4 – Citado por Réja, pag. 123. Obra cit.
5 – Klaxon, nº 8-9. São Paulo, 1922-23.
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