Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

domingo, 14 de junho de 2015

Capítulo 5 – Parte 3 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

O estado demencial, justificativo de um diagnóstico de “demência precoce paranoide”, se revela nas modificações que observamos nós do tônus afetivo. Já o colega, na sua observação, embora ficasse na síndrome referida, fala no “sentimentalismo doentio pela sua família”, que o meio social só lhe interesse pelo mal que faz, ligando a essa estúpida interpretação o assassinato da mulher que repeliu a sua crapulice; a nossa observação aqui também revela essa perversão dos sentimentos éticos e do pudor.
Lembram ainda a demência precoce, as alucinações, o modo afetado e “maneiroso” quando fala, o modo estereotipado do seu andar, o emprego frequente de neologismos, os impulsos, referidos, aliás, estes, na observação do Dr. Moraes Mello.
A carta escrita ao Dr. Pisa mostra ainda repetições inúteis e lacunas no raciocínio, ideias fragmentadas, terminando mesmo com palavras soltas que absolutamente não se associam.
Ouçamo-lo agora numa das suas curiosas trovas compostas na Penitenciária, sobre a epidemia de gripe de 1918. Elas possuem um tom satírico e a cadência é igual à da poesia popular. Sentimos vivamente que o autor revela nesta poesia, trabalhada com bastante naturalidade, reminiscências de leituras, como muito bem já observou o Dr. Moraes Mello.                    

 (Observação: grafia própria do paciente; optamos pelo itálico em vez de aspas)
1)    
        Jornal se ocupou do cauzo
feis Lembrar a medicina
que devia da combate,
Esta doença malina...
Talvez fosse combatida,
Com Recussio da vacina...

2)      Kilograma de Sufato
foram em agua dissolvidos;
pois bem engarrafado
para atender os pedidos,
cada phamacia ocupava,
deis caxeros decididos;

3)      num Laboratorio chimico
fei-ce muita esperiençia,
Sim ter neum resultado
Já perdiam a esperança
Quando um medico abalizado
achou a Luz da Sçiencia.

4)      Levantou-se A medicina
Esta Brilhante Sçiencia
parece que foi criada
Nos Brassos da providencia
Pois nela se encerra todo
Saber e benevolencia.

5)      Muitos Dotores afamados
tal como Hormeio Barão
pereira, e Hovardo Cruz;...
Dotôr meira Rubião
Creio até foi presidente
Duma Brilhante Seção,

6)      Quina Brava é Bóm Remedio
para febre intermitente
mas para gripe espanhola
É limão com aguardente
Droga dos Irmãos da ôpa
quando estão com dor de dente.

7)      Ouito dias trabalhos
com toda prosperidade
não só au Bem da Sçiencia
mas do Bem humanidade
Atendendo os pedilorias
da vozes da Caridade.

8)      planta que ficou droga
foi levado o presidente
da Sociedade medica...
falou o dotor Sçiente
Eis aqui plonto o Remedio
Com que Saremos os doentes.

9)      Resta somente pedir
A todos meus cidadão
os que foram Lavradôr
que plante também Limão
pois foi esta Bela fructa
que tirou tanta aflrição.

10)  Sabendo o José Caipora
que o Limão era percurado
chamou a Chica timbira
que era Irmã do seu conhado
Colheram uns deis mil fructos
foram vender no mercado.

11)  Tendo ele em seu quintal
Bães Limãoheiros aplando
E estas Benditas arvores
tinha os galhos carregado
de fructas todas maduras
que deu-lhe um Bâm Resultado.

Se os versos não são bons e pecam pelo amaneirado da expressão, nota-se, todavia, espontaneidade e ritmo nos seus compassos. E ainda mais: além dos fatos que a sua memória reproduziu de coisas lidas e aprendidas e da sua péssima ortografia, encontramos, contudo, em A., um poeta interessante e dotado de uma rica imaginação.
Escutemo-lo na

(Observação: grafia própria do paciente; optamos pelo itálico em vez de aspas)

A guerra

1)      As treis crues aliadas
Treis feras Sém piedade
Que vaga de quando em quando
com grande ferocidade
por este vale de Lagrima
atacando a humanidade.

2)      Batalhões marcham pra guerra
pois a malvada chegou
se ençopa de sangue a terra
Os Soldados com valôr
que no Seu peito se encerra
marcham no sôm do tambôr.

3)      Cazados decham as espozas
chorando deicham os filhinhos
Solteiros abandona os paes
Os Seus Paternos carinhos
Decham as amantes chorosas
E segue os duros caminhos!

4)      Dando adeus as namoradas
parte o coitado choroso
levando o peito sangrando
deste punhal venenoso
que fere constantemente
um pobre amante Saudoso.

5)      Eu juro que a guerra é feia
porém digo com Razão
que é covarde e mais feio
um peito ingrato e vilão
que fraqueja um só momento
na defeza da nação.

6)      Fanfarra tocam os clarins
grita avante o capitão
Tenente aperta o talim...
De carabina e facão
marchar galbozo na frente
é dever do cidadão.

7)      Guerra, e um mal medonho
que vém da antiguidade
Açiria e a grande Greçia
Dizem na Remorta idade
Brigaram mais de sém anos
Se cazo os contos é verdade.

8)      Homem como Carlo magno
Guerreiro de profição
também Alechandre grande
e o grande napoleão...
o tal guilherme Segundo
perdeu-se nesta ilusão.

9)      Italia deou Garibalde
um valente capitão
na Greçia foi lianida
que teve honra de Leão
Manuel Luiz osorio
do Brasil foi um Rodão.

10)  Jovens não adorem a guerra
mas se cazo um atrevido
Lançar desaforo a terra
que nela fomos nassido...
aplica-lhe com presteza
o gastigo merecido

11)  Lepe fação é carabina
Não Recuzaes um instante
Açeitaes a disciplina
na voz do teu comandante
Brandindo a espada fina
E gritando; avante avante

12)  Levando a frente a Bandeira
com guardos fies é forte
Infante marcham em filheira
Sim temer a propria morte...
Cavalheria Ligeira
de Lança com Bandeirote

13)  Metralhadôra rugindo
enche de fumo amplidão
As Ballas avôa zunindo
tomba Soldado no chão
abafa o peito um gemido
mas grita; viva a nação

14)  Na frente grita o comando
avante meus camaradas
perpara os Soldados infant
forma um quadlado a vamguarda
Recua a cavalheria
duma inimiga Brigada.

15)  Ordene o chefè, uma calga
de ferro frio, sem demora
os inimigos infraqueçem
fugindo Se vâm embora
o pavilhão theumflante
Reçebe o hinno da gloria.

16)  prepara-se as ambulança
prá recolherçe os feridos...
Sessou o sõm das metralhas
comessa agora os gemidos
É este guardo, o da guerra
Mais triste é mais doloridos.

17)  Quantos ficam ali Sem vida
pelo os campos estendido
seus corpos iram nas valas
ou em gazes embebido
seus membros amado e querido
Vãm em chama dissulvido

18)  Reparam o material
desta Belica operação
com levas de Reculuta
fassem uma concertação
o chefe, ordena os comandos
tomar nova pusição

19)  Sei Bém, queste guardo é triste
E cauza muita afrição
pois decha o mundo abitado
por viuva e por horfão
por cochos é aleijados
uns sem perna, outros sem mão.

Nessa composição sentem-se bem, afora a bagagem literária do autor, lembranças de coisas lidas de livros e revistas e aí reproduzidas, conservando a cadência das nossas antigas poesias populares.
No Hospital, depois de alguns dias de sua chegada da Penitenciária, ele escreveu esta canção:

(Observação: grafia própria do paciente; optamos pelo itálico em vez de aspas)

Sabia teu doce canto
Respira musica divina
nimua vo Agentina
Pode egualhar teu encanto
Faz morrer A cavatina
Sabia teu doçe canto

Ahi quem dera neste estante
nos prados de minha terra
escutando la da Seria
A tua muzica elegante
toda Belleza se emçerra
sabiá teu doçe canto.

Hoje que me acho ozente
de meu alegre cantor
fuzi-me a vos do amor
me resta as lagrimas contante
que é comsollo do amante
prar enitivo da dôr.

Assim, nessa melancólica toada, ele traduz em versos toda a saudade de sua terra numa linguagem fluente, muito embora a métrica horrivelmente castigada e o português barbaramente deturpado. Titante isto, percebemos nesses versos uma expressão afetiva que lhe dá um caráter romântico e rimas sonoras e agradáveis ao ouvido. Estamos convencidos que esses versos, desprendidos do subconsciente de A. são descantes da alma do sertanejo, que se ouvem ao luar, no terreiro das fazendas, onde os violeiros vão dizer em toadas plangentes as saudades que lhes transbordam do coração.
“As canções (1) pelas quais os povos primitivos exprimem suas alegrias e suas tristezas não são, em regra geral, nada mais do que frases simples, expressas sob uma forma estética simples: a repetição e a ordem rítmica”.
É o que acontece com a canção do sabiá. São versos primitivos, singelos, porém cheios de tristezas, exprimindo recordações de sua terra natal.

Notas de Osório César:
1 – E. Grosse – Les Débuts de L’Art.









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