...continuação do
texto...
Poderemos citar ainda os trabalhos literários de uma demente
precoce que Capgras (1) apresentou em Abril de 1911 à Sociedade de Psiquiatria
de Paris.
Trata-se de uma professora com 38 anos, filha de um alienado.
Na sua infância teve coqueluche, varíola, escarlatina e coreia de Sydenham.
Mais tarde, apresenta-se emotiva, escrupulosa, obsedada, fóbica. Apesar disto,
é muito inteligente e obtém, com 19 anos de idade, o diploma numa escola
superior. Consegue o cargo de professora num arrabalde de Paris. Exerce sua
profissão regularmente, a despeito da existência de obsessões, de preocupações
hipocondríacas, de cefaleias frequentes e de pequenas bizarrias na conduta.
Algum tempo depois, na idade de 29 anos, tem, no decurso de uma pneumonia, um
acesso de delírio onírico, com alucinações do ouvido e da vista, ideias de
culpabilidade e danação, visões do inferno. Depois de umas três semanas volta a
sua lucidez, mas não desaparece o misticismo. Anteriormente irreligiosa, agora
ela se preocupa com a Bíblia, comunga, fala sem parar de demônio e não quer
saber de mais nada.
Nessas condições, a doente entra na Salpêtrière para o
serviço de Dejerine, que diagnostica: Delírio místico com agitação. Enfim, o
seu estado vai se agravando cada dia, até se instalar a demência precoce com
todo cortejo patognomônico (enfraquecimento intelectual, indiferença,
maneirismo, estereotipismo, gatismo, etc.).
O que nos chama a atenção nessa doente é a sua grande
atividade intelectual. Durante a época de sua permanência no Hospital, ela
escreveu constantemente cartas aos médicos e ao mesmo tempo grande número de
poesias com admirável correção de ortografia e de conceito, não obstante a progressão
de seu mal.
Vejamos, por exemplo, esta bela poesia:
Être chatte de Perse
Je fais ce rêve: être chatte de Perse,
Aux jours
d’ennui, ce doux songe me berce,
être chatte de Perse.
J’habitarais un palais magnifique,
On entrerait par um brillant portique,
Les diamants, les émaux e les ors
Y brilleraient em sublime décors.
Ce beau palais, il serait fait de jade,
M’y accouder sous quelque fine árcade,
Y étaler um habit magnifique,
Les pieds
posés sur de riches toisons.
Luxes inouis, richesses à foisons,
Y revêtir quelque belle simarre,
Qui, brillament, de couleurs se
chamarre,
Tel est mon rêve étrange et poétique.
O que mais admirar aqui? A
harmonia do verso ou o conceito da inspiração?
Notamos que tudo isto foi escrito
quando a demência precoce se havia definitivamente instalado no doente. Depois
de 6 meses, mais ou menos, ela compõe uma espécie de jornal, no qual escreve a
maior parte de seus pensamentos. Enche
completamente 5 cadernos de 100 folhas cada um, de composições literárias de
sua lavra. É quando começam a se manifestar as perturbações psicográficas mais
importantes. Assim, ao lado de frases claras, lógicas, bem comedidas, aparecem
verdadeiras “saladas de palavras”, incoerências e desordens nas associações das
ideias.
Como exemplo citemos este trecho:
De l’excrément
“L’excrément” ou ancien crément,
cré racine de créer, ment prise a l’interieur égale à spirment, racine de
mentir ou vie nouvelle-ment, vie nouvelle, voyance de nouveau à Dieu, voyance:
Tour-un, prise entiêre (espirits) selles.
Excrément, ancien radical cré, prise ent. (interne
parfait) Solide qui. Selon le radical créant, est positivement pur, égale à
prise entire, comme à de l’esprit: defecations. Ainsi la scorie est égale au
fuyant, ex, toutefois: nettoyez chaque fois avant d’allumer (tirage) grille
Cordier (J. ou. rs.)
Personne ne peut savoir ce que Dieufait des
scories, en tout, haves, pierres ponces, dejections.
Les excréments sont de la matière
tombant sous les sens. Ce sont des corps. Ils sont à l’image de la croix:
balance. Ainsi, il ne faut pas mettre les talons dedans. Il faut les ranger, à rapport côte d’Adam
(Jésus-Christ est le novel Adam). Nous ne devons pas le sentir. Quand ils empuent, c’est a de la colère
divine. Cette odeur et aussi réelle, aussi agreeable que celle de la Rose. Rosa
mystica. Communion du vidangeur. Object à Dieu: amo.”
Notamos aqui a riqueza de
fabulação exagerada, maneirismo e uma certa originalidade no poder descritivo.
“O esquizofrênico”, diz Bleuler
(1*), “não é simplesmente um demente, mas um demente em relação com
determinadas épocas, certas constelações e certos complexos”.
“Os produtos de uma declarada
esquizofrenia na literatura e na arte, na maioria possuem o selo do louco e do
estranho, o que não raro é encoberto por efeito algo patológico. Nos casos
particulares, um pequeno desvio do normal dá à obra de arte uma certa
originalidade , ou os pacientes podem dizer verdades que os sãos não se
atreveriam em uma forma tão clara. Não raro, algumas excitações esquizofrênicas
tendem em seu começo para uma atividade poética e até para uma certa
capacidade, que fora disto não existe”.
É o que se dá com a arte
futurista. Ela é positivamente uma arte esquizofrênica. Os artistas futuristas
não são alienados, mas não deixam, contudo, de possuir temperamentos
esquizofrênicos (1**).
Nos desenhos de um parafrênico
das figuras 70, 71, 72 e 73, o mesmo doente que compôs a valsa da figura 58,
notamos um curioso primitivismo. A conformação do tórax destas figuras lembra
as das figuras egípcias. Vejamos a história do doente e a descrição dessas
figuras:
“P. (2), de origem italiana, branco, casado, de 37 anos de
idade, morador em Bica de Pedra, foi recolhido ao Hospital do Juquery em 10 de
Dezembro de 1920, onde o examinamos”.
“Não nos foram dados informes sobre seus próprios
antecedentes pessoais, nem de família; não podemos dar crédito às suas
informações, porque seu estado mental é mau e não merece confiança o que ele
diz”.
“Alto, robusto, aparentemente não apresenta lesão alguma de
órgão importante para a vida vegetativa. Tem os cabelos muito grisalhos para a
sua idade. Seu rosto avermelhado dá a impressão de um homem congestionado,
tanto mais que os olhos são sempre avermelhados, o que mais acentua essa
impressão. Tem a língua geralmente saburrosa. As pupilas não reagem igualmente
de ambos os lados; a reação consensual está muito levemente perturbada. Os
reflexos superficiais acham-se diminuídos, os profundos exaltados. Apresenta
ligeira disartria, muito pouco pronunciada, existe tremor das mãos, assim como
tremores dos pequenos músculos peribucais e da língua. Sob forte emoção os
tremores generalizam-se por todo o corpo. Estes últimos sintomas são tão
apagados que só se observam com muita atenção”.
“A saúde somática geral é regular, embora seu peso não
corresponda à altura”.
“Diz que o pai faleceu com 83 anos; mas, logo depois diz que
está vivo; mais tarde diz que não o conheceu, e assim por diante ora uma coisa
ora outra. Não gosta de conversar; é carrancudo e parece estar sempre de mau
humor, ou, pelo menos, de humor altaneiro e levemente sarcástico”.
“Acredita que nunca teve pai; que com ele se deu o mesmo fato
da vida de um príncipe da Espanha: foi criado escondido por uma família pobre.
Sempre se diz filho de Vitor Manuel, rei da Itália (sic), irmão de Vitor Orlando, a quem está
esperando todos os dias para levá-lo a casar-se com uma dama de alta
hierarquia. Todos esses absurdos são ditos com ar calmo, de quem tem absoluta
certeza. A absoluta
decadência da lógica, do raciocínio, denuncia claramente o estado demencial global. A certas
perguntas responde sempre: “Não sei de nada, o Lapa é quem sabe tudo”. É,
naturalmente, alguém lá de Bica de Pedra”.
“Presta bem atenção e compreende o que se lhe pergunta,
embora responda com disparates e frases evasivas. Sua memória não está
completamente obliterada. Os sentimentos afetivos estão embotados. A
psicomotilidade não está exaltada nem inibida; apresenta-se normal”.
O estado atual de P. é o mesmo de
quando foi observado em 1920. As suas ideias delirantes giram todas neste mesmo
princípio : “É filho do Rei da Itália e vai casar-se com uma princesa.
Vive isolado dos companheiros;
não quer trabalhar e dedica-se à pintura, ao desenho e à música.
As suas produções de arte revelam
uma feição muito característica e extremamente pessoal. Da grande coleção que
possuímos dos desenhos de P., verifica-se que há sempre neles os mesmos
personagens ilustrando as cenas de suas composições. A sua arte, pois, se
resume num só motivo estereotipado, que lhe serve de base para as suas
criações. É digna de nota a sua estranha obsessão em somente pintar figuras de
negros; algumas vezes, essas figuras o estão acompanhadas de aves e de animais
domésticos. A técnica do desenho de P. é primitiva; vê-se que ele desconhece
completamente a perspectiva. A representação do movimento também não existe nas
figuras que ele traça e a semelhança delas com as da arte egípcia é acentuada.
É preciso salientar que essa tendência pictórica somente se manifestou em P.
depois da perturbação mental, o que para nós tem real importância.
Muito mais interessantes são os
seus desenhos do que as suas composições musicais. Antes da moléstia que o
atacou, P. já conhecia regularmente música; por isso, as suas valsas não
apresentam maior interesse quanto à originalidade. Em todo caso, elas são mais
dignas de atenção e de estudo que as de B. (veja pag. 41), ao passo que os seus
desenhos são admiráveis pela originalidade. Uma das características
apresentadas nesta arte em P. é o desprezo pelo interior. Em quase todos os
seus quadros nota-se a absoluta ausência de decorações e ornamentos no
interior, o que, para os outros artistas alienados constitui motivo de
evocações extravagantes dos aspectos da natureza. Nesses artistas, o interior
de um quadro é sempre motivo de bizarros enfeites. Todavia, algumas vezes P.
põe nos seus desenhos ligeiros motivos ornamentais pobremente estilizados. Na
figura 70, por exemplo, que representa um casal de com uma planta em cima de uma cadeira.
Interessante é que o encosto e os pés da cadeira são notas musicais
estilizadas.
Tanto a figura da mulher como a
do homem não apresentam nenhum relevo e dão a impressão de uma superfície
plana.
É, sobretudo, na conformação do
tórax que as suas figuras parecem com as da arte egípcia. O pescoço e os braços
acham-se atrofiados. No entretanto, os olhos são expressivos e bem iluminados.
A figura 71 apresenta igualmente
essa mesma atitude pictural que, aliás, em P., como já dissemos, constitui um
motivo de estereotipia. Os animais que fazem parte dessa composição (cães) dão
ideia de brinquedos de crianças, tais são as atitudes em que estão dispostos.
Uma zoolatria é observada em quase todos os quadros de P. e a prova disto está
nos seus desenhos reproduzidos aqui nas figuras 72 e 73. Quando não é o cão o
animal que acompanha as suas figuras, é o urubu, a ave agoureira, que ele pinta
com uma certa expressão de realidade.
A figura 73 descreve uma cena de
assassinato que P. diz ter presenciado no interior do Estado de São Paulo. Um
negro, com os joelhos sobre o solo, aponta uma arma de fogo para outro negro,
armado com espingarda e facão, em posição de sentido, mas sem dar a menor
atenção ao grave fato.
Como ornamentação do quadro, há
em cima, de um lado, uma galinha com um urubu. Do outro lado, uma cesta onde
uma fêmea dessa ave que acaba de deitar um ovo. Em baixo, perto do negro
sentado, um cão em atitude de espanto, olha para o soldado. Há muita
ingenuidade nessa concepção.
Na figura 72 vê-se uma fachada de
igreja. Um homem aparece na porta central
e no telhado pousa um urubu. Notam-se nesse desenho exageros de
proporção e falta de homogeneidade. Enfim, a arte pictórica de P. é primitiva,
grosseira e apresenta vários pontos de contato com a arte de crianças de grupo
escolar. Apesar disto, pode-se admirar nela uma certa e curiosa originalidade.
A outra manifestação artística que
P. revela é a música. De um pedaço de bambu ele faz uma flauta (fig.74) que, de
quando em vez, toca, executando trechos musicais de sua lavra. O som desse
instrumento não é agradável ao ouvido e nem as suas composições são toleráveis.
As músicas de sua autoria são
valsas e dobrados.
A figura 75 é a reprodução das
páginas de um interessante livro feito por um demente precoce no período
inicial. É extraordinária a paciência com a qual o doente procurou imitar letra
de imprensa e de ilustrar com grande número de desenhos coloridos o seu
trabalho. É um livro de histórias de aventuras para crianças. Na primeira parte
está escrito: “O dedinho de Haguida ou os mistérios de uma terra. Romance por
M., em 5 partes fantásticas para as crianças”. Na segunda página lê-se: ”Romance
brasileiro. Com mil gravuras coloridas... quase em resumo”. E logo abaixo isto:
“(Lectures pour tous)”. Primeira parte. “O destino negro de Bolozarkiw ou Ódio
falso do monstro Lubison pela mão prometida da misteriosa Arlinda”.
A história tem imaginação e é escrita numa linguagem clara.
Há muita coisa interessante neste livro e um certo grau de erotismo sexual.
Apreciemos este trecho:
“Arlinda, ou a bela virgem adormecida, levantou-se do seu
encanto, daquela riquíssima poltrona, guarnecida de ouro, que o Bolozarkiw
podia ver na ilusão da sua doença, dizendo-lhe com voz altiva e delicada: “Sou
tua, sei que te pertenço! Meu coração, meu doce; e o meu pai estará muito
satisfeitíssimo, desde o momento que te entregou este espinho venenoso. Toma
cautela! E juizinho, meu bem, que sou tua”.
“Sim! Meu amor! – terminava o Bolozarkiw, como que se
estivesse no acordar de um sonho – “mede o meu coração, e vê o quanto te adoro”.
Pela história fantásica que o doente escreveu e ilustrou com
figuras de monstros, parece tratar-se de alucinações de fundo erótico mascarado
pela censura com a denominação de história para crianças.
“Os contos de fadas, diz Franco da Rocha (1***), têm semelhanças
notáveis com outras lendas, em todos os pontos do globo, fato que a psicanálise
explica sem dificuldade. O fator sexual aparece dissimulado nesses contos, nos
quais estão ocultas as mais perversas tendências, principalmente a algolagnia
(o prazer libidinoso ligado à dor) no seu grau mais elevado – o sanguinário.
São, na opinião de Riklin, criações da alma humana primitiva, utilizadas de
acordo com a tendência geral do homem: a satisfação de seus desejos”.
O doente começou a escrever o livro quando os primeiros
sintomas da psicose se haviam esboçado. Atualmente ele se encontra em estado
demencial. Os seus desenhos são rabiscos (fig. 76) de coisas quase
indecifráveis.
Nos alienados, as estilizações cubistas são comumente
encontradas sobretudo nos artistas plásticos.
Lafora (3) refere-se a um caso interessante, que reproduzimos
aqui na fig. 77 intitulado “Cristo e Virgem”. Trata-se de um homem culto, que
nunca se preocupou com desenhos, antes da moléstia. É bem curiosa a expressão
de desprendimento e o contorcionismo que vemos nas imagens do quadro, a riqueza
do poder de abstração na fisionomia da Virgem e a estranha ambiguidade de seu
rosto. Todo esse conjunto aparece num deslocamento de perspectiva, que dá ao
quadro uma feição original.
“Na análise sistemática que faz Jaspers (3), dos desenhos dos
alienados, diz que há um grupo de produtos artísticos com expressão da vida
psíquica do autor, e este se origina quando as faculdades mentais dos doentes
não estão muito alteradas”.
“As produções mais características são as dos psicóticos
(muitos deles esquizofrênicos latentes). O conteúdo destes desenhos, diz, está
caracterizado por representação de fabulações, de aves agoureiras, monstros
visionários, misto de homem e animal, pela centuação descaramente manifesta das
coisas sexuais e sobretudo por uma tend~encia à representação em conjunto com
uma imagem do mundo, a essência das coisas, uma concepção do universo, ou ideia
cósmica”.
Como acabamos de ver, qualquer que seja a sua forma, a
demência precoce é capaz de produzir manifestações artísticas dignas de
admiração.
Notas de Osório Cesar:
1 – Ecrits et poesies d’une demente precoce. Encéphale, 1er
sem. 1911 pag. 474.
1* - obra já citada.
1** - Bleuler divide os indivíduos normais em dois grupos,
segundo sua atitude em face da realidade: 1º os sintonistas, que são aqueles que nunca perdem o contato com o
diapasão do ambiente, de poder vibrar uníssono com ele. É a realização ao mesmo
tempo da unidade da personalidade. 2º Os esquizoides
são aqueles que perdem este contato pois “a esquizoidia é a faculdade de se
isolar do meio, de perder contato com ele: ela tem por consequência um
enternecimento mais ou menos grande da síntese da personalidade humana”.
Sollier- Courleon. Pratique sémiologique des Maladies
Mentales, Masson, 1924.
2 – Observações psiquiátricas do Hospital do Juquery. Ano
1920. Nº 41.
3 – Allgemeine
Psychopathologie. Berlim, 1920, 2 edit. pag. 103.
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