Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Capítulo 3 – Parte 4 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

Poderemos citar ainda os trabalhos literários de uma demente precoce que Capgras (1) apresentou em Abril de 1911 à Sociedade de Psiquiatria de Paris.
Trata-se de uma professora com 38 anos, filha de um alienado. Na sua infância teve coqueluche, varíola, escarlatina e coreia de Sydenham. Mais tarde, apresenta-se emotiva, escrupulosa, obsedada, fóbica. Apesar disto, é muito inteligente e obtém, com 19 anos de idade, o diploma numa escola superior. Consegue o cargo de professora num arrabalde de Paris. Exerce sua profissão regularmente, a despeito da existência de obsessões, de preocupações hipocondríacas, de cefaleias frequentes e de pequenas bizarrias na conduta. Algum tempo depois, na idade de 29 anos, tem, no decurso de uma pneumonia, um acesso de delírio onírico, com alucinações do ouvido e da vista, ideias de culpabilidade e danação, visões do inferno. Depois de umas três semanas volta a sua lucidez, mas não desaparece o misticismo. Anteriormente irreligiosa, agora ela se preocupa com a Bíblia, comunga, fala sem parar de demônio e não quer saber de mais nada.  
Nessas condições, a doente entra na Salpêtrière para o serviço de Dejerine, que diagnostica: Delírio místico com agitação. Enfim, o seu estado vai se agravando cada dia, até se instalar a demência precoce com todo cortejo patognomônico (enfraquecimento intelectual, indiferença, maneirismo, estereotipismo, gatismo, etc.).
O que nos chama a atenção nessa doente é a sua grande atividade intelectual. Durante a época de sua permanência no Hospital, ela escreveu constantemente cartas aos médicos e ao mesmo tempo grande número de poesias com admirável correção de ortografia e de conceito, não obstante a progressão de seu mal.
Vejamos, por exemplo, esta bela poesia:

Être chatte de Perse

Je fais ce rêve: être chatte de Perse,
Aux jours d’ennui, ce doux songe me berce,
être chatte de Perse.

J’habitarais un palais magnifique,
On entrerait par um brillant portique,
Les diamants, les émaux e les ors
Y brilleraient em sublime décors.

Ce beau palais, il serait fait de jade,
M’y accouder sous quelque fine árcade,
Y étaler um habit magnifique,
Les pieds posés sur de riches toisons.
Luxes inouis, richesses à foisons,
Y revêtir quelque belle simarre,
Qui, brillament, de couleurs se chamarre,
Tel est mon rêve étrange et poétique.

O que mais admirar aqui? A harmonia do verso ou o conceito da inspiração?
Notamos que tudo isto foi escrito quando a demência precoce se havia definitivamente instalado no doente. Depois de 6 meses, mais ou menos, ela compõe uma espécie de jornal, no qual escreve a maior parte de seus  pensamentos. Enche completamente 5 cadernos de 100 folhas cada um, de composições literárias de sua lavra. É quando começam a se manifestar as perturbações psicográficas mais importantes. Assim, ao lado de frases claras, lógicas, bem comedidas, aparecem verdadeiras “saladas de palavras”, incoerências e desordens nas associações das ideias.
Como exemplo citemos este trecho:
                        De l’excrément
“L’excrément” ou ancien crément, cré racine de créer, ment prise a l’interieur égale à spirment, racine de mentir ou vie nouvelle-ment, vie nouvelle, voyance de nouveau à Dieu, voyance: Tour-un, prise entiêre (espirits) selles.
Excrément, ancien radical cré, prise ent. (interne parfait) Solide qui. Selon le radical créant, est positivement pur, égale à prise entire, comme à de l’esprit: defecations. Ainsi la scorie est égale au fuyant, ex, toutefois: nettoyez chaque fois avant d’allumer (tirage) grille Cordier (J. ou. rs.)
Personne ne peut savoir ce que Dieufait des scories, en tout, haves, pierres ponces, dejections.
Les excréments sont de la matière tombant sous les sens. Ce sont des corps. Ils sont à l’image de la croix: balance. Ainsi, il ne faut pas mettre les talons dedans. Il faut les ranger, à rapport côte d’Adam (Jésus-Christ est le novel Adam). Nous ne devons pas le sentir. Quand ils empuent, c’est a de la colère divine. Cette odeur et aussi réelle, aussi agreeable que celle de la Rose. Rosa mystica. Communion du vidangeur. Object à Dieu: amo.”
Notamos aqui a riqueza de fabulação exagerada, maneirismo e uma certa originalidade no poder descritivo.
“O esquizofrênico”, diz Bleuler (1*), “não é simplesmente um demente, mas um demente em relação com determinadas épocas, certas constelações e certos complexos”.
“Os produtos de uma declarada esquizofrenia na literatura e na arte, na maioria possuem o selo do louco e do estranho, o que não raro é encoberto por efeito algo patológico. Nos casos particulares, um pequeno desvio do normal dá à obra de arte uma certa originalidade , ou os pacientes podem dizer verdades que os sãos não se atreveriam em uma forma tão clara. Não raro, algumas excitações esquizofrênicas tendem em seu começo para uma atividade poética e até para uma certa capacidade, que fora disto não existe”.
É o que se dá com a arte futurista. Ela é positivamente uma arte esquizofrênica. Os artistas futuristas não são alienados, mas não deixam, contudo, de possuir temperamentos esquizofrênicos (1**).  
Nos desenhos de um parafrênico das figuras 70, 71, 72 e 73, o mesmo doente que compôs a valsa da figura 58, notamos um curioso primitivismo. A conformação do tórax destas figuras lembra as das figuras egípcias. Vejamos a história do doente e a descrição dessas figuras:
“P. (2), de origem italiana, branco, casado, de 37 anos de idade, morador em Bica de Pedra, foi recolhido ao Hospital do Juquery em 10 de Dezembro de 1920, onde o examinamos”.
“Não nos foram dados informes sobre seus próprios antecedentes pessoais, nem de família; não podemos dar crédito às suas informações, porque seu estado mental é mau e não merece confiança o que ele diz”.
“Alto, robusto, aparentemente não apresenta lesão alguma de órgão importante para a vida vegetativa. Tem os cabelos muito grisalhos para a sua idade. Seu rosto avermelhado dá a impressão de um homem congestionado, tanto mais que os olhos são sempre avermelhados, o que mais acentua essa impressão. Tem a língua geralmente saburrosa. As pupilas não reagem igualmente de ambos os lados; a reação consensual está muito levemente perturbada. Os reflexos superficiais acham-se diminuídos, os profundos exaltados. Apresenta ligeira disartria, muito pouco pronunciada, existe tremor das mãos, assim como tremores dos pequenos músculos peribucais e da língua. Sob forte emoção os tremores generalizam-se por todo o corpo. Estes últimos sintomas são tão apagados que só se observam com muita atenção”.
“A saúde somática geral é regular, embora seu peso não corresponda à altura”.
“Diz que o pai faleceu com 83 anos; mas, logo depois diz que está vivo; mais tarde diz que não o conheceu, e assim por diante ora uma coisa ora outra. Não gosta de conversar; é carrancudo e parece estar sempre de mau humor, ou, pelo menos, de humor altaneiro e levemente sarcástico”.
“Acredita que nunca teve pai; que com ele se deu o mesmo fato da vida de um príncipe da Espanha: foi criado escondido por uma família pobre. Sempre se diz filho de Vitor Manuel, rei da Itália (sic), irmão de Vitor Orlando, a quem está esperando todos os dias para levá-lo a casar-se com uma dama de alta hierarquia. Todos esses absurdos são ditos com ar calmo, de quem tem absoluta certeza. A absoluta decadência da lógica, do raciocínio, denuncia claramente o estado demencial global. A certas perguntas responde sempre: “Não sei de nada, o Lapa é quem sabe tudo”. É, naturalmente, alguém lá de Bica de Pedra”.  
“Presta bem atenção e compreende o que se lhe pergunta, embora responda com disparates e frases evasivas. Sua memória não está completamente obliterada. Os sentimentos afetivos estão embotados. A psicomotilidade não está exaltada nem inibida; apresenta-se normal”.

O estado atual de P. é o mesmo de quando foi observado em 1920. As suas ideias delirantes giram todas neste mesmo princípio : “É filho do Rei da Itália e vai casar-se com uma princesa.
Vive isolado dos companheiros; não quer trabalhar e dedica-se à pintura, ao desenho e à música.
As suas produções de arte revelam uma feição muito característica e extremamente pessoal. Da grande coleção que possuímos dos desenhos de P., verifica-se que há sempre neles os mesmos personagens ilustrando as cenas de suas composições. A sua arte, pois, se resume num só motivo estereotipado, que lhe serve de base para as suas criações. É digna de nota a sua estranha obsessão em somente pintar figuras de negros; algumas vezes, essas figuras o estão acompanhadas de aves e de animais domésticos. A técnica do desenho de P. é primitiva; vê-se que ele desconhece completamente a perspectiva. A representação do movimento também não existe nas figuras que ele traça e a semelhança delas com as da arte egípcia é acentuada. É preciso salientar que essa tendência pictórica somente se manifestou em P. depois da perturbação mental, o que para nós tem real importância.
Muito mais interessantes são os seus desenhos do que as suas composições musicais. Antes da moléstia que o atacou, P. já conhecia regularmente música; por isso, as suas valsas não apresentam maior interesse quanto à originalidade. Em todo caso, elas são mais dignas de atenção e de estudo que as de B. (veja pag. 41), ao passo que os seus desenhos são admiráveis pela originalidade. Uma das características apresentadas nesta arte em P. é o desprezo pelo interior. Em quase todos os seus quadros nota-se a absoluta ausência de decorações e ornamentos no interior, o que, para os outros artistas alienados constitui motivo de evocações extravagantes dos aspectos da natureza. Nesses artistas, o interior de um quadro é sempre motivo de bizarros enfeites. Todavia, algumas vezes P. põe nos seus desenhos ligeiros motivos ornamentais pobremente estilizados. Na figura 70, por exemplo, que representa um casal de  com uma planta em cima de uma cadeira. Interessante é que o encosto e os pés da cadeira são notas musicais estilizadas.
Tanto a figura da mulher como a do homem não apresentam nenhum relevo e dão a impressão de uma superfície plana.
É, sobretudo, na conformação do tórax que as suas figuras parecem com as da arte egípcia. O pescoço e os braços acham-se atrofiados. No entretanto, os olhos são expressivos e bem iluminados.
A figura 71 apresenta igualmente essa mesma atitude pictural que, aliás, em P., como já dissemos, constitui um motivo de estereotipia. Os animais que fazem parte dessa composição (cães) dão ideia de brinquedos de crianças, tais são as atitudes em que estão dispostos. Uma zoolatria é observada em quase todos os quadros de P. e a prova disto está nos seus desenhos reproduzidos aqui nas figuras 72 e 73. Quando não é o cão o animal que acompanha as suas figuras, é o urubu, a ave agoureira, que ele pinta com uma certa expressão de realidade.
A figura 73 descreve uma cena de assassinato que P. diz ter presenciado no interior do Estado de São Paulo. Um negro, com os joelhos sobre o solo, aponta uma arma de fogo para outro negro, armado com espingarda e facão, em posição de sentido, mas sem dar a menor atenção ao grave fato.
Como ornamentação do quadro, há em cima, de um lado, uma galinha com um urubu. Do outro lado, uma cesta onde uma fêmea dessa ave que acaba de deitar um ovo. Em baixo, perto do negro sentado, um cão em atitude de espanto, olha para o soldado. Há muita ingenuidade nessa concepção.
Na figura 72 vê-se uma fachada de igreja. Um homem aparece na porta central  e no telhado pousa um urubu. Notam-se nesse desenho exageros de proporção e falta de homogeneidade. Enfim, a arte pictórica de P. é primitiva, grosseira e apresenta vários pontos de contato com a arte de crianças de grupo escolar. Apesar disto, pode-se admirar nela uma certa e curiosa originalidade.
A outra manifestação artística que P. revela é a música. De um pedaço de bambu ele faz uma flauta (fig.74) que, de quando em vez, toca, executando trechos musicais de sua lavra. O som desse instrumento não é agradável ao ouvido e nem as suas composições são toleráveis.
As músicas de sua autoria são valsas e dobrados.
A figura 75 é a reprodução das páginas de um interessante livro feito por um demente precoce no período inicial. É extraordinária a paciência com a qual o doente procurou imitar letra de imprensa e de ilustrar com grande número de desenhos coloridos o seu trabalho. É um livro de histórias de aventuras para crianças. Na primeira parte está escrito: “O dedinho de Haguida ou os mistérios de uma terra. Romance por M., em 5 partes fantásticas para as crianças”. Na segunda página lê-se: ”Romance brasileiro. Com mil gravuras coloridas... quase em resumo”. E logo abaixo isto: “(Lectures pour tous)”. Primeira parte. “O destino negro de Bolozarkiw ou Ódio falso do monstro Lubison pela mão prometida da misteriosa Arlinda”.  
A história tem imaginação e é escrita numa linguagem clara. Há muita coisa interessante neste livro e um certo grau de erotismo sexual.
Apreciemos este trecho:
“Arlinda, ou a bela virgem adormecida, levantou-se do seu encanto, daquela riquíssima poltrona, guarnecida de ouro, que o Bolozarkiw podia ver na ilusão da sua doença, dizendo-lhe com voz altiva e delicada: “Sou tua, sei que te pertenço! Meu coração, meu doce; e o meu pai estará muito satisfeitíssimo, desde o momento que te entregou este espinho venenoso. Toma cautela! E juizinho, meu bem, que sou tua”.
“Sim! Meu amor! – terminava o Bolozarkiw, como que se estivesse no acordar de um sonho – “mede o meu coração, e vê o quanto te adoro”.
Pela história fantásica que o doente escreveu e ilustrou com figuras de monstros, parece tratar-se de alucinações de fundo erótico mascarado pela censura com a denominação de história para crianças.
“Os contos de fadas, diz Franco da Rocha (1***), têm semelhanças notáveis com outras lendas, em todos os pontos do globo, fato que a psicanálise explica sem dificuldade. O fator sexual aparece dissimulado nesses contos, nos quais estão ocultas as mais perversas tendências, principalmente a algolagnia (o prazer libidinoso ligado à dor) no seu grau mais elevado – o sanguinário. São, na opinião de Riklin, criações da alma humana primitiva, utilizadas de acordo com a tendência geral do homem: a satisfação de seus desejos”.
O doente começou a escrever o livro quando os primeiros sintomas da psicose se haviam esboçado. Atualmente ele se encontra em estado demencial. Os seus desenhos são rabiscos (fig. 76) de coisas quase indecifráveis.
Nos alienados, as estilizações cubistas são comumente encontradas sobretudo nos artistas plásticos.
Lafora (3) refere-se a um caso interessante, que reproduzimos aqui na fig. 77 intitulado “Cristo e Virgem”. Trata-se de um homem culto, que nunca se preocupou com desenhos, antes da moléstia. É bem curiosa a expressão de desprendimento e o contorcionismo que vemos nas imagens do quadro, a riqueza do poder de abstração na fisionomia da Virgem e a estranha ambiguidade de seu rosto. Todo esse conjunto aparece num deslocamento de perspectiva, que dá ao quadro uma feição original.
“Na análise sistemática que faz Jaspers (3), dos desenhos dos alienados, diz que há um grupo de produtos artísticos com expressão da vida psíquica do autor, e este se origina quando as faculdades mentais dos doentes não estão muito alteradas”.
“As produções mais características são as dos psicóticos (muitos deles esquizofrênicos latentes). O conteúdo destes desenhos, diz, está caracterizado por representação de fabulações, de aves agoureiras, monstros visionários, misto de homem e animal, pela centuação descaramente manifesta das coisas sexuais e sobretudo por uma tend~encia à representação em conjunto com uma imagem do mundo, a essência das coisas, uma concepção do universo, ou ideia cósmica”.
Como acabamos de ver, qualquer que seja a sua forma, a demência precoce é capaz de produzir manifestações artísticas dignas de admiração.

Notas de Osório Cesar:  
1 – Ecrits et poesies d’une demente precoce. Encéphale, 1er sem. 1911 pag. 474.
1* - obra já citada.
1** - Bleuler divide os indivíduos normais em dois grupos, segundo sua atitude em face da realidade: 1º os sintonistas, que são aqueles que nunca perdem o contato com o diapasão do ambiente, de poder vibrar uníssono com ele. É a realização ao mesmo tempo da unidade da personalidade. 2º Os esquizoides são aqueles que perdem este contato pois “a esquizoidia é a faculdade de se isolar do meio, de perder contato com ele: ela tem por consequência um enternecimento mais ou menos grande da síntese da personalidade humana”.
Sollier- Courleon. Pratique sémiologique des Maladies Mentales, Masson, 1924.
2 – Observações psiquiátricas do Hospital do Juquery. Ano 1920. Nº 41.
3 – Allgemeine Psychopathologie. Berlim, 1920, 2 edit. pag. 103.

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