...continuação do texto...
Nos desenhos dos dementes precoces catatônicos notamos com
frequência o mesmo estilo dos desenhos das crianças; eles são geralmente mal
acabados. As figuras humanas, quando representadas, se apresentam intercaladas,
ora de ilustração deletrada, como no caso de um doente catatônico de Bleuler
(fig 59), ora rodeados por símbolos, sinais cabalísticos (figs. 41, 42), doente
do Hospital do Juquery.
Essa manifestação de desenho pueril parece ser característica
da demência precoce, sobretudo na de forma catatônica. Pois, mesmo entre
doentes que outrora souberam desenhar bem, a representação gráfica infantil num
dos períodos da moléstia, estado demencial (fig. 69) é comumente observada. Daí
o supor-se que a mentalidade desses doentes tenha sofrido uma regressão atávica às épocas pré-históricas
da humanidade.
Além desta forma de desenho do primitivo, que constitui, como
acabamos de dizer, uma atitude quase geral nesses doentes, encontramos algumas
vezes outras formas gráficas surpreendentes, que nos fazem lembrar antigos
motivos bizantinos, hindus e das tapeçarias da Idade Média (figs. 60. 61, 62 e
63).
Interessantes são os desenhos de um demente precoce
paranoide, relatados por Parturel (1), cuja originalidade de concepção muito
nos admira (fig. 64). O doente em questão, operário, reside na campanha e nunca
teve instrução além de rudimentar.
É curiosa a semelhança de seus desenhos com os dos livros
antigos de medicina.
Os quadros que reproduzimos nas figuras 65, 66, 67, 68 e 69
são de uma demente precoce do Hospital
do Juquery, cuja história vamos contar:
O. (2), brasileira, de
cor branca, de 30 anos de idade; não é casada, nem solteira, nem viúva: há anos
está separada judicialmente do marido, que deu justificação a isso pela sua
embriaguez habitual e brutalidade contra a esposa.
Temos diante de nós uma
mulher de aparência forte, sadia, sem moléstia somática perceptível. Sua
família não refere a existência anterior de qualquer alteração física de saúde.
Queixa-se, porém, de seu comportamento, de seus atos, que destoam pavorosamente
da educação que recebeu e do meio social a que ela pertence. Veste-se com
exageros impróprios; sai só, a passeio, e vai ao escritório de um médico,
pede-lhe que sirva de intermediário junto a um certo colega deste, por quem ela
tem paixão e com quem quer viver na Europa, e lá casar-se com ele. Escreve
carta ao médico intermediário, pede-lhe que resolva logo F... a aceitá-la;
propõe-se a sair disfarçadamente de casa e encontrar-se com F... a bordo, para
de lá seguirem juntos; não se esquece do filho que deverá também seguir para
ser educado fora da influência da família, isto é, da avó, das tias e tios,
que, na opinião de O..., estão pondo o menino a perder. Arma brigas terríveis
com as irmãs, com cunhados e com a própria mãe; são discussões
azedas em que a paciente revela um certo grau de embotamento dos sentimentos
éticos.
Se lhe falam do pai
(que era um homem distinto) para evidenciar assim a inconveniência de sua
conduta, ela ri às gargalhadas zombeteiras, tapa os ouvidos com os dedos,
responde às irmãs: “Vocês são umas pestes, fingidas; vocês não pensam desse
modo; só têm em vista em contrariar, em desgostar por maldade pura, pela
intenção maldosa de me perseguir”.
Aí está um delírio de
perseguição sem base alucinatória, puramente interpretativo, que se justifica
aparentemente com fatos reais. Do que ela não se lembra, entretanto, é que a
suposta perseguição da própria família é a reação natural contra sua conduta,
sua incapacidade de adaptação ao meio social, conduta essa que tem trazido vexame
e atribuições enormes a seus parentes. Submetida a cuidadoso exame mental,
nenhuma perturbação psíquica elementar se lhe pode descobrir. Atenção: normal.
Memória: bem conservada, tanto para os fatos recentes como para os antigos. Não
há desintegração de cultura intelectual anteriormente adquirida. Seu estado
afetivo, entretanto, não corresponde ao de uma pessoa que se sente perseguida.
Não há tristeza, nem depressão melancólica; ao contrário, nota-se um certo
exagero da própria personalidade; um estado de humor um pouco alegre, mas
leviano, sem ponderação. Seu juízo, isto é, as faculdades de crítica, de exame,
de reflexão, se manifestam bem fracas, embora as aparências enganem e a forma
lógica exterior do raciocínio se mantenha bem conservada; uma simples análise
de suas palavras e procedimentos revela fraqueza de modo a não deixar dúvidas.
Quer casar-se com um médico, apesar de não ter o assentimento deste; interpreta
as palavras e gestos dele, em qualquer conversa, com uns
tantos sinais certos de anuência. Escreve-lhe e, não obtendo resposta, atribui
essa falta a desvio de cartas. Não tem fortuna; vive com a família, que só
dispõe de modestos recursos, entretanto fala em seguir para a Europa com o
sangue frio e a naturalidade de que já tem depósito nos Bancos. O médico com quem
ela projeta seguir viagem já lhe fez ver clara e energicamente a inconsistência
de sua conduta, a incongruência de seu procedimento, mas não conseguiu
varrer-lhe do cérebro tais ideias. Todas as suas conversas giram em torno
desses assuntos: a fuga para a Europa com o aludido médico; o casamento
possível, visto que as leis lá o permitem; as outras mulheres que têm feito o
mesmo e voltado casadas (cita nomes e fatos reais bem conhecidos do público); a
perseguição da família, que, a seu ver, é pura perversidade; as cartas
diariamente escritas ao médico, ao intermediário e a outras pessoas por ela
envolvidas nessa aventura. Recolhida ao Hospício do Juquery, aí continua com as
mesmas ideias, mais resolvida a se deixar examinar para poder levar um atestado
de perfeita saúde mental. No terceiro dia, porém, achando que o exame já estava
muito demorado, exigiu sua saída e, como encontrasse resistência, pôs-se a
praticar atos de violência, como, por exemplo, quebrar vidraças, dar bofetadas
nos vigilantes, morder os que tentavam contê-la, ameaçar com violências ainda
maiores se não a deixassem sair. Tal
estado chegou a ponto de ser preciso recolher ao isolamento em quarto fechado,
para evitar maior mal. Apesar de tudo isso, não há confusão de espírito nem
alheamento do mundo exterior; confessa que é meio neurastênica e que sempre em
casa a chamavam louca, porque tem seus dias em que sente uma certa confusão de
ideias.
O isolamento em quarto
fechado foi interpretado como castigo e produziu-lhe salutar efeito. Voltou a
calma, que permitiu se lhe desse de novo relativa liberdade. Lê os jornais que
lhe caem às mãos e encontra quase sempre alguma coisa neles que interpreta como
referência a sua pessoa e aos fatos que ultimamente se têm dado consigo. Não
come frutas nem doces que são enviados por sua família; isso tanto pode ser
desconfiança como simples capricho.
A observação que acabamos de ver é da época de sua entrada no
Hospital (1914).
Até 1923 o seu estado psíquico não sofreu alternativas
notáveis. O seu desenvolvimento artístico, entretanto, foi intenso. Passava os
dias no pátio do pavilhão a pintar natureza morta e paisagens das redondezas. E
era principalmente a aquarela o gênero de pintura preferido. Todas as suas
composições apresentavam exuberância de cores e, dentre estas, a que mais
preferia era o vermelho de sangue.
De 1923 para cá, o seu psiquismo foi-se modificando a ponto
dela não se preocupar mais de pintura, notando-se gatismo e embotamento dos sentimentos
estéticos. Vive hoje em absoluta despreocupação de tudo e de todos, não se
importando mais com suas roupas e nem com a maneira de se trajar. Isolada das
companheiras, balbucia coisas incoerentes e esfrega, nas pernas, nos braços e
no rosto, terra que apanha do solo.
Para termos ideia de seu estado atual (associação
extravagante de ideias), reproduzimos abaixo um trecho que ela ultimamente
escreveu a pedido nosso:
“Imortalidade do corpo no fogo; descoberta com ar e fogo a
grau inteligência compreendedora e houve desastre, e não pode tirar porque o
fogo é pior do que julgava; era trato; e por esta razão não pode constituir
pena da Justiça; em outro cá tenho os pontos de alma ainda melhores”.
A manifestação pictórica nessa doente não é uma consequência
da psicose que ela apresenta, pois, muito antes de vir para o Hospital a sua
capacidade artística já se havia desenvolvido brilhantemente, como resultado de
sua formação intelectual.
O que se nota na sua arte, depois de sua internação em
Juquery, é que ela teve um certo período de superatividade para cair em seguida
numa inércia quase completa e na qual permanece até agora.
Durante o período de superprodução de que fazem parte as
figuras 65, 66, 67, 68, a sua arte já não apresentava os mesmos caracteres de
outrora, isto é, de quando o seu estado mental era normal. Já havia qualquer
coisa a se notar nos desenhos e nas combinações das cores de suas produções.
Passado este período, os desenhos de O... foram cada vez mais se tornando
primitivos até ao ponto em que está o da figura 69 (um dos últimos que
recolhemos), cuja semelhança com os desenhos de crianças do segundo ano do
grupo escolar é chocante.
As figuras 65 e 66 representam paisagens. São impressões a
óleo. O motivo predominante da composição da figura 65 é uma grande árvore,
parecendo ser plátano e que domina quase toda a tela. O céu é de um azul muito
vivo e sem nuances. Não há diferenciação de tonalidades. O plátano está
regularmente desenhado com os seus galhos em relevo e sua copa está bem
representada por uma mancha de tinta de várias tonalidades, que vem do amarelo
claro com um pouco de verde desmaiado, até o amarelo escuro e seco.
Nessa paisagem que O... copiou diretamente da natureza, veem-se
ainda dois morros com cores artificiais, que estão situados no mesmo plano da
árvore. Em cima, num canto do lado direito, num canto do céu, há duas manchas
bem distintas: uma vermelha, sanguinolenta, ligeiramente desbotada e outra mais
abaixo e em seguida, de tonalidade amarelo ouro. Em toda essa composição
notam-se falta absoluta de perspectiva e uma intensa vivacidade de cores. Pelo
emprego das tintas com as quais O... compôs este trabalho, poderemos pensar
numa paisagem outonal. Assim, a variante das folhas e também os galhos que ela
procura salientar em tinta bem escura, são motivos desta estação. Acresce ainda
a mancha vermelha do céu. Isto tudo nos faz pensar numa representação do
outono.
As cores empregadas nas paisagens das figuras 65 e 66 são
principalmente o azul carregado, o amarelo esverdeado e o vermelho sanguíneo.
A simbolística das cores muito vem auxiliar-nos quanto à
interpretação freudiana dos quadros de O... Vejamos como a este respeito se
exprime Spengler (1*):
“O azul e o verde são cores transparentes, espirituais,
suprassensíveis. Não sáo aplicadas na pintura a fresco de estilo ático; e por
isso mesmo predominam na pintura a óleo. O amarelo e o vermelho, cores ‘antigas’
são as cores da matéria, da proximidade das emoções sanguíneas. O vermelho é a
cor própria da sexualidade; por isso é a única que atua sobre os animais. Ela é
a que mais se aproxima do símbolo do falo – e, portanto, da estátua e da coluna
dórica –, enquanto que o azul puríssimo serve para transfigurar o manto da
Virgem. Esta relação impôs-se por si mesma em todas as escolas, com necessidade
profunda”.
Como símbolo da sexualidade, temos nas paisagens 65 e 66 a
árvore (membro viril) e a cor vermelha sanguínea (órgão sexual feminino, coito,
desvirgindade).
A paisagem a óleo reproduzida na figura 65 apresenta-se com
caracteres idênticos aos da pintura antiga. É interessante observarmos hoje em
dia a arte decorativa da antiguidade, em vista de seu ponto de contato com a
arte ultramoderna, que não representava as distâncias, pondo os objetos em um
mesmo plano.
“A pintura antiga não teve perspectiva justamente porque
evitou esse ponto, porque não reconheceu, não admitiu a distância (1*)”.
Em O... é curiosa a composição dessa paisagem porque é a
única de nossa coleção que se apresenta mais original sob o ponto de vista do
primitivismo. O mesmo fato, entretanto, não acontece com as figuras 66, 67 e
68, onde a visão do espaço é tratada mais significativamente.
Na figura 67, por exemplo, que se assemelha um tanto à
pintura japonesa, as localizações das coisas no espaço estão regularmente distribuídas
de acordo com as respectivas distâncias. Vê-se que ela aqui muito se preocupou
com os detalhes, procurando dar relevo e naturalidade ao motivo principal de
sua composição. Assim, os eucaliptos se mostram reconhecíveis graças ao seu bom
acabamento pictural.
A figura 68 também apresenta pontos de contato com a arte
japonesa primitiva. Nesta aquarela a sua preocupação se orientou mais para o
lado da representação de conjunto do quadro do que para os detalhes. A árvore
desenhada não tem o acabamento da árvore da figura anterior. É quase uma
mancha.
A figura 69 bem patente mostra a decadência do seu estado
psíquico atual. Se a sua arte apresentava um cunho de ligeiro primitivismo no
período que vai de 1914 a 1923, presentemente ela retrogradou, em virtude do seu
estado demencial, ao período de infantilidade.
Basta compararmos o desenho da figura 69 com o da figura 8
(desenho infantil) para vermos a profunda analogia que existe entre os mesmos.
Nos alienados artistas é muito comum observar-se, como neste
caso, um período de excessiva produtividade, quer na literatura e na poesia
(grafomanos), quer nas artes plásticas (pintura, escultura, etc.). Nesse
período, a inspiração do louco é lúcida e fecunda. Ele cria, na sua esfera, um
mundo de belezas. Mas, depois, chega a fase de involução, de embotamento
intelectual, estado demencial, como soe acontecer com os paralíticos gerais, os
esquizofrênicos, etc., e ele volta ao caos primitivo, à vida vegetativa. O
mundo para eles se torna agora inteiramente diferente. A arte, então, ou se
traduz por sinais representativos (símbolos, veja figs. 1, 45 e 46), ou se
manifesta grosseiramente, por representações de cenas da natureza, sem
homogeneidade de composição.
No quadro, os objetos podem grupar-se de modo inorgânico, uns
sobre outros, uns junto de outros, uns detrás de outros, sem perspectiva, sem
mútua relação, isto é, sem destacar o fato de que a sua realidade depende da
estrutura do espaço; pelo que quer dizer que se deva negar essa dependência.
Assim desenham os selvagens e as crianças antes de que a experiência íntima da
profundidade tenha submetido suas impressões sensíveis do universo a uma ordem
mais profunda (1**).
É o que acontece com a nossa artista.
Como vimos, atualmente o seu estado é demencial.
Notas de Osório Cesar:
1 – Dessins anatomiques et conceptions médicales d’um demente
precoce. Encephale, premier semt., 1911.
2 – Observações psiquiátricas do Hospital do Juquery, Nº 12,
ano 1914.
1* - Oswald Spengler – Obra cit. Vol. II, pag. 44.
1** - Idem, pag. 49.
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