Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Capítulo 4 – Parte 5 – A expressão artística nos alienados.

...continuação do texto...
(subtítulo: História Psiquiátrica de um doente com Delírio Místico – Poemas Parabólicos com Interpretação do autor)

Essa é a história que V. conta de sua vida, desde os tempos escolares até a sua entrada neste Hospital. Muitos dos fatos relatados aí são verdadeiros, porém percebemos logo que, de vez em quando, a sua imaginação descamba em delírios místicos, fantásticos, como sejam:

“Dez dias depois, quando fui fazer uma visita ao ‘meu altar-mor’, domingo, enxerguei um coração luzente e em cima dele jazia uma cruz também luzente, entrelaçado por uma coroa de espinhos cheia de luz como a do sol, envoltas por uma chama de Fogo vivíssima, enfim próximo ao vulto luminoso nele residente”.

São ideias delirantes sobre um fundo místico erótico.
Apreciemos agora a Lenda indiana, uma das mais curiosas produções, escrita em 26 de Abril de 1925. É um poema em prosa, composto em estilo bíblico, sob forma de parábola; é um episódio real de sua vida, contado através de símbolos. Ele próprio nos dá a significação dos períodos simbólicos do poema.

Lenda Indiana

“O grêmio triunfante (1) é semelhante a um menino sedento da genialidade (2) alipotente de Arquimedes que procurava a base da lei de um mistério profundo; e tendo concebido o plano do enigma, no momento supremo e sacrossanto da Sublimidade das sublimidades, cento e vinte minutos depois do meio-dia, conquistava enfim, o seu sonho acrisolado de mil e uma noites. Decorrido o mesmíssimo tempo de harmonia da preparação gloriosa de algures em Jericó, sem estar banhado em algo dos eflúvios do terceiro Selo do profeta Daniel, recebia finalmente, no palácio da Ventura, um ente de bondade e ciência intérminas – ‘abrirei em palavras a minha boca, e publicarei coisas escondidas desde a criação’”(3).
“Os miríades e miríades de edifícios mais brilhantes do que o sol lá daquele grêmio triunfante, oh desde a hora sexta até a nona, perderam as suas brilhosidades infinitas, e, cobriram-se então do manto diáfano do Luto, chorando e gemendo noite e dia, andava um anjo, contemplando o panorama da destruição da Cidade Santa” (4).
“Trinta e nove dias depois recebia de novo o hóspede misterioso, no palácio da Ventura, - ‘Destruirei a sabedoria dos sábios, e o entendimento dos entendidos reduzirei a nada’” (5).
“Decorridos mais de dez dias depois pela terceira vez no palácio da Ventura, recebia então o Hóspede misterioso, - ‘Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; adora-me, porém, em vão ensinando doutrinas que são preceitos de homens’” (6).
“Finalmente, no oitavo dia, pela última vez em sua amena existência, recebia no palácio da Ventura o Hóspede misterioso; - ‘Disse o Senhor ao meu Senhor: senta-te à minha direita, até que ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés’” (7).
“Trinta e três dias antes da memorável descoberta arquimediana, fora então solenemente, no local onde estava genuflexo o menino, o qual, contemplava ali o Hóspede misterioso, a promessa sagrada, porém, ao lado esquerdo daquela glória alipotente, jazia também genuflexa, no aspecto solene da humanidade, ‘ad majorem Dei gloriam...’” (8).
“Sete anos depois no mesmíssimo dia memorável e sacrossanto como o Leão de Jessé, finalmente, era então assentado o primeiro plano do Pentalago de Ouro fino; e quatro dias depois a segunda misticidade arquimediana, oh onze estrelas pulcras , acolá naquele gabinete eliano, no décimo primeiro ano do século presente, no coração da trilogia branca como a neve, emula convincente e bem refratária de Sidon!!! Hosana ao filho de David! Benedito aquele que vem em nome do Senhor” (9).
“Três vezes cairão os soldados surdos e mudos (10)...! Aonde está a glória moiseana, que servira de instrumento para a receptividade do Hexlago de Ouro Fino!?! Quem tem ouvidos para ouvir, ouça a verdade. Aonde está a glória eliana, que servira de instrumento para a receptividade do Pentalago de Ouro fino!?! (11)”.
“Eu sou a incógnita sublime da lei newtoniana, ‘a pedra que os edificadores rejeitaram, essa foi posta como a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor, e é maravilhoso aos nossos olhos?’ (12)”.
“No septuagésimo oitavo dia do ano santo da graça áurea da comemoratividade solene da maior glória paraclítica, um Apóstolo irmão gêmeo do Rei da Siracusa, assentava, enfim, o primeiro plano da glória sempiterna do Desejado de todas as nações e essa égide sacrossanta é o Moisés moderno de ambos os Testamentos Evangélicos” (13).
“Vem agora pela presente missiva um eflúvio paraclítico diante da gloriosa figura galênica (14) apresentar-lhe ovante de ufania, a chave do enigma dos quatro fundamentos infinitos (15); ora, as seis letras do alfabeto (16) têm mais resplendor do que o centro do sistema planetário. Aqui está a sabedoria. Aquele que tem inteligência calcule o enigma oculto nessas páginas dedálicas”.
“O grêmio triunfante é também semelhante a um generalíssimo que buscava ótimas espadas de cabo de ouro de vinte e dois quilates (17) e tendo visto uma de grandioso valor dentro de um estabelecimento de armas bélicas (18), tendo uma lâmina fundida com aço, manganês e zircônio, foi vender tudo o que possuía e a comprou”.
“Finalmente, o grêmio triunfante é semelhante a um Diógenes (19) moderno, que procurava uma nitroglicerina colossal com aparelhos adrede preparados para a execução final, concebendo então no âmago dos olhos do entendimento essa musculatura química, assentou uma no sol, e a outra no satélite da terra; hoje, ainda está trabalhando o grandioso aparelho que divide os Tempos, porém, somente o nosso Pai que está no Reino dos Céus conhece o segundo exato da solene e amena realização”.
                      “Terceiro Pavilhão, 26 de Abril de 1925”.

Como acabamos de ver, a Lenda indiana é um amontoado de frases com caracteres simbólicos calcados num misticismo erótico que V. reproduz, rememorando acontecimentos ocorridos durante a sua vida escolar. Todos os seus trabalhos literários são assim desse feitio. Há, neles, porém, algumas vezes, períodos interessantes criados com bastante originalidade.
Para terminarmos, escutemos dele mais a seguinte poesia:

O canto do Cisne (20)

“Num lago cristalino vários Cisnes gemem
O hino da morte álgida. A coruja infrene (21)
Abrindo o bico solta o alarido atroz, tremem
Os Cisnes na solidão sem cilício perene”.

“No augúrio nunca fica em silêncio profundo,
Ninguém afugenta essa ave muito enfadonha
Da inclemência sutil no merencóreo Mundo.
O símbolo da última Dor soluça e sonha”.

“O hino da morte álgida vendo no espaço
O fundo azul sob uma forte tempestade (22)
Sente então Nostalgia e bastante cansaço...
Não desce jamais algo de melifluidade”.

“Nota altíloqua solta ainda a ave maldita
No lago cristalino sem piedade, tontos (23)
Os pobres Cisnes não tem uma hora benedita
De silêncio no Rosário de suas contas”.

“Mas um dia a trombeta (24)
Galênica soará
Lá no azul
Religioso
Do paul,
Carinhoso
Lenitivo sentirão.
Os Cisnes bastante álgidos,
E enfim, surgirá a Visão
De seus dias insípidos.
A asa da morte será
Mais suave e gentil na meta.
Jesus
Da glória (25)
De luz
História
Contará
A Galeno
No fundo Azul
No ígneo Inferno
O Rei Saul
Perdeu o trono
De Israel,
Forte Assomo
Gabriel
Galênico
Desmanchai (26)
Dedálico
Augúrio santo
Daquela triste
Ave de encanto,
Ninguém resiste
Tempestade acolá!
Caridade
Tem Jehovah
Autor
Dos teus
Do amor
De meus
Dias residente
No lugar bem quente.
Bela lição
Do coração...”

Essa poesia foi escrita em 1924, quando já havia desaparecido o período de excitação de que o doente foi acometido durante um certo tempo, como já vimos mais atrás.
Não há encadeamento lógico nessa sua inspiração; encontramos nela uma associação de ideias extravagantes. As representações simbólicas como “Cisne”, “coruja”, “Galênica”, etc., surgem do subconsciente de V. mecanicamente evocadas, provavelmente, pela contiguidade de ideias.
Também encontramos frequentemente nas produções artísticas desse doente, neologismos, símbolos e estereotipias, que apresentam certo interesse para se proceder a um estudo psicológico retrospectivo da sua vida anterior à vesânia.
“Os neologismos”, diz A. Marie (27), “assemelham-se à linguagem dos crônicos, refletindo seus simbolismos e sintetizando seus sistemas delirantes. Este último se cristaliza de certo modo em seu automatismo e em sua monótona repetição. Através de suas aparências incoerentes é, às vezes, possível deduzir de sua amálgama as grandes linhas de uma cadeia de concepções progressivas, fixadas em certo modo em seus grandes rasgos e imobilizados pelo mecanismo de detenção ideo-emocional sem mais significação, às vezes, para o mesmo demente, que esquece o seu valor mnemônico primitivo. Entretanto, se se segue o caso, podem-se encontrar, em certo modo, registradas nestas estereotipias as estratificações delirantes extintas, de que não formam mais que o córtex vazio. Como nas camadas geológicas, o sábio pode ler as fases atravessadas pelo planeta, o linguista pode encontrar o eco da evolução histórica dos que falaram, do mesmo modo, as estereotipias destes delirantes, em aparência incoerentes, refletem e conservam à sua maneira e fielmente, o traço de sua evolução sistemática”.
“Por outra parte, as estereotipias são fenômenos de evolução normal como a tendência ao simbolismo e as determinações ideo-emocionais”.   

Notas:
1 – O grêmio triunfante simboliza o reino do céu.
2 – O menino sedento de genialidade é o próprio V.
3 – Esta se refere à vida de V. ; foi no dia 12 de Fevereiro de 1904, domingo, que ele conquistou, por intermédio de Jesus Cristo, uma coroa de ouro, no segundo dente molar do maxilar superior.
4 - ?
5 – Isto significa que V. recebeu Jesus Cristo, pela segunda vez, na sede da alma; Maio de 1904. (Provavelmente quando ele refere que recebeu Jesus Cristo na alma, devemos entender isso como reminiscência de comunhões ministradas na Igreja ao doente, quando frequentou colégios religiosos).
6 – Tem o mesmo significado.
7 – Idem, idem.   
8 – Refere-se este trecho à realização da promessa da coroa de ouro.
9 – Aqui, V. relata que no dia 14 de Fevereiro de 1911 fora-lhe colocado meio pivô de ouro no seu dente incisivo; no dia 15 do mesmo mês, o 2º pivô. Por último, em 18 de Fevereiro, fora-lhe colocada a 2ª coroa de ouro.  
10 – Provavelmente, V. se refere neste trecho à Ressurreição de Jesus Cristo.
11 - ?
12 – V. explica que essa passagem se refere à trilogia celina.
13 – Este trecho é alusivo ao Cirurgião Dentista que colocou nos seus dentes as coroas de ouro.
14 – Ele se refere ao diretor do Hospital do Juquery, a quem é oferecido este poema.
15 – Os quatro fundamentos infinitos referem-se às quatro datas misteriosas: 25 de Março de 1904; 3 de Maio de 1904; 13 de Maio de 1904 e 21 de Maio de 1904. Estas datas v. não as revelou.
16 – As seis letras do alfabeto no algarismo romano (DCLXVI = 666) são alusivas ao Coronel E.L.D. (Fazendeiro residente em São José do Rio Preto) que V. chama a besta principal do Apocalipse.
17 – A espada de cabo de ouro de 22 quilates simboliza a riqueza e a glória de V.
18 – O estabelecimento de armas bélicas simboliza as escrituras santas.
19 – Diógenes simboliza o homem puro.
20 – O canto do Cisne é uma metáfora escrita por V. e dedicada ao médico alienista do 3º Pavilhão, com o fim de solicitar deste providências contra um companheiro que gritava o dia todo, perturbando  a paz dos doentes que se achavam de cama. O canto do Cisne simboliza a morte e é alusivo aos que estão passando mal na Enfermaria.
21 – A coruja infrene, etc., refere-se ao companheiro que passava o dia todo gritando no Pavilhão.
22 – Refere-se este trecho à agonia dos doentes moribundos. Quando se aproxima a morte, os doentes têm a sensação rápida e nítida de ver e passar pelos seus sentidos como se fosse uma visão caleidoscópica, os quadros e as paisagens que a natureza impressionou as suas células cerebrais anteriormente.
23 – Os pobres Cisnes, como já vimos, são os doentes; “o Rosário de suas contas...” representa os últimos dias da vida.
24 – Simboliza a justiça do médico que deverá por termo às gritarias do companheiro.
25 – O médico será interrogado por Jesus Cristo sobre o barulho da Enfermaria.
26 – Esta passagem é interpretada do seguinte modo: vós, doutor, deveis calar o canto daquela ave terrível que é a coruja, isto é, o companheiro que gritava na Enfermaria.
27 – Misticismo e Loucura, tradução espanhola, pag. 250, Madrid. 

domingo, 7 de setembro de 2014

Capítulo 4 – Parte 4 – A Expressão Artística nos Alienados

Devemos atentar para o fato de que estes textos de Osório César são do início do século XX, com as conceituações e termos psiquiátricos de então. O que assinalamos é o interesse do autor em conhecer a arte dos doentes psiquiátricos.

...continuação do texto...

Estes doentes, segundo Kraepelin, são orgulhosos, soberbos e excitados; mas, frequentemente, eles são amáveis, abertos, predispostos aos “chistes” e brincalhões, ou exageradamente eufóricos.
Vejamos um interessante diálogo que transcrevemos da observação de um parafrênico do serviço do ilustre psiquiatra Dr. Mário de Gouvêa, pertencente aos Arquivos do Hospital do Juquery:

“- Mas... ouvi dizer, J., que a inveja que tinham da tua inteligência concorreu para seres aqui internado. Será exato?”
“- É, seu doutor; eu tenho as virtudes do sol e da lua. Sou a árvore da inteligência. Quero aqui a minha família completa para ir salvar o mundo. O inferno está na terra; todos vão para lá quando morrem; o purgatório é o estômago porque o homem sofre por ele; aí estão o bem e o mal”.
“- E o céu onde está? – perguntamos nós”.
“- O céu é a natureza da mulher; ali é que estão o divertimento, a alegria e o gosto!”
“- Mas... (não te interrompendo), qual foi a doença que fez vires para aqui?”
“- Foi esta, seu doutor. Ninguém acredita nas minhas profecias. Todo o corpo do homem representa a terra: os dedos representam a multiplicação da espécie, os pelos das mãos a vegetação da terra,  os cabelos as estrelas do céu, a digestão é o mar, os intestinos o fundo, os dois olhos representam o sol e a lua, a barba e o bigode representam a ciência...”

Como vimos, o doente apresenta na sua linguagem ideias delirantes de grandeza e religiosa de mistura com ideias eróticas sob a forma de um rico simbolismo.
Os poetas parafrênicos são muito curiosos nas suas composições em metáforas e símbolos. Seus escritos são em grande parte místicos e de uma prolixidade notável.
Escutemos o poema abaixo:

“Hino ao Paráclito”
“Magnífico incriável Espírito de Deus!
Santo Refrigério da Divina Promessa
Do nosso Bondoso Jesus, que lá dos Céus,
Descera sobre os Apóstolos no Cenáculo de Jerusalém!
Maravilha mística e insondável
Opera-se naquele Santo Recinto!
Doze línguas como do Fogo, indelével,
Apareceram perante os olhos da Congregação!
Uma partícula de sua bela omnisciência
Nas almas dos presentes adrede convidados,
Ficou acrisoladamente gravada com clarividência
Tal, que houve sublime conversão sobre o povo!
Oh! Magnitude imensa do Amor!
Dignai-vos reger com vossa ígnea graça
Nossos desejos, além de termos por Espelho, nosso Salvador!
Difícil será sem o vosso auxílio haver perfeita imitação!
Oh! Nosso místico Espelho do culto Salvador,
Ensinai-nos a doutrina magnífica
Compreender com perfeito e santo amor!
Sedentos sempre somos dos arcanos da Bíblia!
Semelhante maravilha de outrora
Operando-se em nossas almas, aqui,
Neste recinto onde estamos congregados agora,
Poderemos então imitar os Apóstolos assim!”

Este doente escreve com muita facilidade e as suas poesias são todas desse teor. A sua história psiquiátrica é muito interessante.
Vejamos:

“V... (1), 24 anos, branco, solteiro, brasileiro, entrou no Hospital do Juquery em 18 de Junho de 1913.”
“Pai e mãe vivos. Tem 9 irmãos vivos e fortes; 2 irmãos já falecidos de moléstia ignorada. Tem um tio condenado por homicídio. História de sua infância: esteve durante 10 anos em colégios diversos, dos quais era expulso ou fugia. Em casa era turbulento e mentiroso. Tinha medo, via vultos, fantasmas. Sofreu uma grande queda, conservando forte cicatriz na região occipital. História da puberdade: alucinações frequentes. As primeiras práticas sexuais aos 19 anos. Onanismo e pederastia. Nunca trabalhou regularmente.”
“Conhecemos o presente doente na Casa de Saúde do Dr. Homem de Mello onde deu entrada em Julho de 1912.”
“Aqui no Hospital prestou algumas informações. Assim, refere que tem um tio condenado por homicídio, que esteve durante 10 anos em colégios diferentes, dos quais era expulso ou fugia, que sofria de terrores noturnos e de micção involuntária no leito. Dava-se ao onanismo e à pederastia e, abandonado pelo pai, passou a ter uma vida de vagabundo, tomando dinheiro emprestado dos amigos e parentes.”
“Vimo-lo em setembro de 1912. Por essa ocasião estava excitado, tinha alucinações visuais frequentes e aterradoras, auditivas (telefone) perturbações cenestésicas (eletricidade), insônia, gatismo. Quebrava os vidros, rasgava as vestes, recusava alimentos, etc.”
“Antes de dar entrada para a Casa de Saúde, andou vagando pelas ruas de São Paulo, até que uma noite, sem motivo algum, deu sinal de alarme ao Corpo de Bombeiros num dos aparelhos da cidade, sendo preso então e em seguida internado no referido estabelecimento.”
“Um mês depois do nosso primeiro exame, caiu em um período de depressão com imobilidade quase absoluta e sitiofobia, sendo necessário recorrer-se à alimentação pela sonda esofagiana. A salivação era abundante, a pele sempre fria e o emagrecimento considerável.”
“Três meses mais tarde, começou rapidamente a alimentar-se, levantou-se e pouco a pouco passou para o período de excitação, que perdura ainda.”
“Tem noção do tempo e do meio, não apresenta confusão de espírito, respondendo com precisão as perguntas. Conserva-se alegre e calmo, com outros períodos de maior excitação em que rasga roupas.”
“Há perda dos sentimentos afetivos, referindo-se ao pai e à família com a maior indiferença.”
“Sente-se bem no Hospital, não manifestando o menor desejo de sair.”
“Refere-se constantemente à aparição de fantasmas na enfermaria”.
“A pequena cultura que teve ainda conserva, tendo boas noções de história, geografia, cálculo e conhecimentos gerais.”
Atualmente este doente acha-se calmo e a sua preocupação constante se revela em compor versos e poemas em prosa ou então dirigir cartas, numa linguagem enfática, aos médicos e ao Diretor do Hospital. É um grafômano infatigável. A sua imaginação, sempre excitada, está cheia de palavras místicas. Daí observamos o gênero místico de suas produções literárias. Vê-se que a leitura de livros sagrados deixou no seu cérebro uma forte impressão, pois quase todos os personagens de seus escritos são bíblicos. E, também pela história de sua formação intelectual, relatada por ele mesmo, resulta que, em grande parte, a sua educação foi religiosa.
Assim V. descreve a sua história:

“Alfa e ômega de um labirinto.”
“Os agridoces mistérios do alfa e ômega de minha educação intelectual são verazes, e, no conteúdo deles, predomina o aforismo filosófico do nobre autor da ‘Relíquia’:”
“Sob a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia. Por mais que o cérebro, gentil e alado, penetre neles, sempre o labirinto tem o encanto de não evidenciar a entrada e a saída. Caldas, formosa cidade do sul de Minas Gerais, em teu seio pulcro, dorme o meu coração, ora, sempre ameno e grato.”
“No primeiro mês do penúltimo ano do século dezenove, principiei a beber o licor superfino dos sinais característicos do alfabeto sob o bafejo de Auta Amarante, predileta e virtuosa filha de João Pereira Elias Amarante, o proprietário do colégio particular situado à margem esquerda do caminho que vai terminar em Pocinhos do Rio Verde. Daquela localidade ao colégio do saudoso Lusitano, temos mais ou menos a distância de quatro quilômetros. Permaneci, então, ali, consecutivamente dois anos. Aquele nobre Lusitano era natural do Vila Nova de Gaia, florescente e risonha cidade ligada ao Porto por uma grandiosa e atraente ponte metálica. Mas a minha educação moral e intelectual estavam sob o patrocínio daquela bondosa Lusitana, unicamente, por um encanto sobrenatural. Dentro desse grêmio fecundante fora a semente bem desenvolvida na terra fértil e amena do meu coração.”
“Mas a procela da inveja de Caim aparecera enfim medonha e fatal. Fundaram com intuito pentapólico quatro escolas particulares durante os dois primeiros anos do século vinte, em minha terra natal, a Babilônia nefasta do livro escrito pelo apóstolo amado! Nela o autor maravilhoso dos ‘Sertões’ iniciara essa obra prima da literatura brasileira, tenho ainda presente em meu mundo subjetivo a leonina fisionomia desse vulto proeminente da história brasileira, como num espelho de cristal de raríssima perfeição reflete a imagem inteira do templo de minha alma! Em 1902, fui então internado na Escola Americana, onde permaneci durante dois anos. Em 4 de Fevereiro do ano comemorativo  da festividade áurea de minha sacratíssima Mãe, em uma bela e radiosa manhã, quinta-feira, cheguei sedento de uma tristeza jeremiada, ao seio da Neo-Sião-Pouso-Alegre...Dez dias depois, quando fui fazer uma visita ao meu ‘altar-mor’, domingo, enxerguei um coração luzente e em cima dele jazia uma pequenina cruz também luzente, entrelaçadas por uma coroa de espinhos cheia de luz como a do sol, envoltas por uma chama de Fogo vivíssimo, enfim próximo ao vulto luminoso nele residente. Recebi então ali a promessa sacratíssima de que no segundo dente molar do maxilar superior de minha face direita, naquele momento completamente perfeito, haveria de ser colocada uma coroa de ouro finíssimo, no dia comemorativo da festividade do Mensageiro Divino. Sete dias depois, assentei a primeira pedra fundamental de minha vida. Trinta e nove dias depois assentei a segunda pedra fundamental. Dez dias depois assentei a terceira pedra fundamental. E, finalmente, oito dias mais tarde a última por toda a extensão da eternidade!”
“Executei essa proeza davídica sem estar banhado em algo do terceiro selo do profeta Daniel! Nesse quatro colóquios sublimes e convincentes eu enxergava solenemente assentado num trono de Ouro finíssimo o meu Amor infinito. As suas vestes possuíam uma brilhosidade infinita sob a semelhança da cor desse minério pulcro e misterioso. Sobre a sua fonte sagrada estava uma coroa de ouro finíssimo cheia de pedras preciosas. Esse mistério saudoso imperava na sede de minha alma zaqueana. Não sei se me faltava a inteligência, sendo enfim matriculado no 2º ano primário anexo ao 1º ano ginasial. Não possuía competência, embora tivesse seis anos de estudos e perseguições.”
“Caldas era a terceira entidade incrível, e, a Escola Americana o primitivo Eden em toda a sua beleza intérmina.”
“Em 13 de Novembro do ano imediato ao da Conferência de Haia, retirei-me do 5º ano ginasial para o mundo familiar eivado das sentimentalidades de duas criaturas diante da majestade cefálica. Fiquei na casa das seis letras do alfabeto bem erótica ‘oitocentos e onze dias’. Surgira então o sol da liberdade espiritual no dia comemorativo da purificação da mais formosa e cândida filha de Abraão.”
“Vivia, docemente, em casa de um saudoso amigo, ex-secretário interino do Tribunal de Justiça. Alma cândida e nobre possuía esse meu saudoso amigo, banhado em algo dos eflúvios daquele patriarca cheio de paciência evangélica. Mas um dia a política do chefe do partido republicano paulista de minha terra natal, concebeu a ideia fúnebre de mandar algures aconselhar-me por um beijo de Judas, a minha internação na ‘Casa de Saúde do Dr. Homem de Mello’. Lá permaneci trezentos e vinte três dias, ininterruptamente. Depois então, para maior segurança pueril, esse êmulo de Judas um dia enfim arranjará um lugar no Palácio da Desventura, situado no quilômetro cento e onze da São Paulo Railway (2).”
“Ele é mais ameno do que o seio pulcro como o marfim da linhagem nefasta. Como um relâmpago, caíra na inércia, três horas depois que o meu Amor infinito assentara solenemente, pela primeira vez o seu Trono de Ouro finíssimo, aqui, na sede do meu coração ovante de ufania como o daquele vulto na mística harmonia outrora! Semelhante cena acontecera com a moderna Laís, progenitora daquele chefe político supra mencionado, e de seu corpo brotam miríades de vermes... Nessa hora solene e alada fui transportado misteriosamente para o ambiente da capela, onde eu recebi o excelso filho de David, no altar-mor de meu coração. Dalí enxergava com os olhos do Entendimento a fúnebre messalina da inércia.”
“O esposo dela ficara subitamente paralítico dos braços e das pernas no mesmo segundo! A sogra deles muitos anos antes ficara também paralítica. O sogro delas fora gravemente ferido na perna esquerda num engenho de serra vertical, perdendo-a completamente, no último ano do século dezenove. Com esses dois exemplos mesmo ainda assim os pais desse chefe político seguiam sempre o caminho de Caim... Surgindo a luz messiânica em minha alma, via então um motivo plausível de abandonar os bancos escolares, unicamente para não prestar exame de mecânica e astronomia, em virtude da lembrança de Isaac Newton, o assombro do Universo, e, fanal de meus dias pretéritos e vindouros...”
“O alfa da honra de Deus”
“Oh suave alfa da honra do Espírito
De Deus, meu sol aqui nesse orbe transitório,
Sem vacilação nunca ouvirei outro grito
Surgir dentro de minha alma! Não é ilusório.
O mistério da casa de David! A divina
Promessa fora feita sobre o monte Maria
A respeito da sua perfeição crastina
Com revelação solene e bem perfunctória!
Não somente lá como a Elias, a primeira
Entidade da antiga aliança, nas duas
Nuvens místicas saídas do mal. Herdeira.
De minha alma paupérrima, a minha Mãe Santa
Também sempre há de ser aonde tu flutuas,
Graças bem convincentes, como o orvalho a planta!”

Notas de rodapé:
1 – Arquivos Psiquiátricos do Hospital do Juquery.
2 – refere-se ao Hospital do Juquery.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Capítulo 4 – Parte 3 – A Expressão Artística nos Alienados


...continuação do texto...

História Psiquiátrica de um Doente com Delírio Místico

Vejamos um curioso relato escrito por um outro parafrênico, com o fim de ser publicado em todos os jornais do mundo, acerca dos acontecimentos de sua vida.

                                 “Prova – nova”.
“Sua Exa. Revma. D. Duarte Leopoldo e Silva. Mto. Digo. Arcebispo da Diocese de S. Paulo anunciará ao mundo a boa nova”.
“C.V.R. filho de pais espanhóis; católicos: apostólicos romanos. Obedientíssimo a todas decisões dos papas ou sumos pontífices de Roma, em matéria de religião. Casou-se em Santos no ano 1904. Para casar, antes do ato matrimonial, confessou C., e C. .,; suas culpas e pecados. Ligado o C., a sua esposa, com ataduras que só o céu pode desatar; roga ao Céu: que lhe desse fruto de salvação”.
“Teve 4 filhos com vida este casal. Recebendo todos o Santo batismo da Igreja Católica em Santos e em S. Paulo. C., pouco tempo depois de casado, entrou num estado de vida profana: sumamente pecaminoso”.
“Os seus empregos não davam tempo para assistir a atos religiosos da Igreja Católica. Apenas batizou filhos. Em sua casa, sempre rezou. Porém, pecou? Vida sumamente suja e imunda. Aparentemente, caráter de Santo ou Sepulcro esbranqueado. Interiormente, C. era um poço de malícia infernal. O C. caminhou em sua perversidade; pouco tempo depois de seu casamento! Ano 1904: até Outubro de 1915. C., por causa de suas iniquidades; foi açoitadíssimo pelo Céu: pelo inferno e pela morte. C., a vista dos sofrimentos, padecimentos e perseguições; teve sempre uma coragem de Leão. Mas sua esposa enferma, dobrou e humilhou o grande pecador C. E em Outubro de 1915, agradou ao Céu a sua Conversão. Como se deu a conversão de C.? Ato sumamente maravilhoso e Celeste”.
“Viajava C., em pé, na plataforma do Bonde da Penha; em demanda do bem amado. E o carteiro C., em dado momento, ficou sozinho na plataforma”.
“O condutor do Bonde achava-se ocupado em seu trabalho. O C., em voz bem inteligível, ouviu as seguintes palavras. Homem, volta-te para Deus! ; que só Deus te pode salvar!! O C. ia no bonde a procura de remédio para sua esposa. Ouvindo o que ouviu, murmurou em si mesmo. Vou a procura de remédio para salvar a esposa e eu sou o perdido. Sou um desgraçado, vou confessar-me. Não procuro mais o benefício da cura de minha esposa, com a tal pessoa. Vou lá em sua casa e digo estas palavras, faço estas perguntas e ofertas. E volta já para casa, cheio de temor, murmurava em pensamentos; vou confessar-me. O C., crer firmemente que Deus havia de curar sua esposa, pelo seu arrependimento. Fez o seu exame de consciência e ao terceiro dia confessou-se com Dr. Conego Mel. Meirelles Freire, na Igreja de São João Baptista, Braz. Desde Outubro de 1915, data de sua conversão a 23 de Agosto de 1921, cheio da virtude Celestial que nele reside; fez o C. diversas obras: que devem ser publicadas nos púlpitos das igrejas Católicas. As tais obras Celestes, feitas pelas mãos de C., em união com N. S. J. Cristo; dão claro testemunho da santidade do pecador maior do mundo: convertido pela Sta. Bondade de Deus. A Igreja Católica, por meio de meus confessores, não conhece tais obras da caridade: feitas sobre a humanidade. Estão ocultas. O C. oculta-as tudo, até a presente data. D. Duarte como chefe superior da Diocese de São Paulo, venha ao hospício. Encher-lhe-ei seu coração de obras, para pregar nos púlpitos sagrados. C. acabou de compreender que foi joeirado por satanás desde Outubro de 1915 a 6 de Outubro de 1920. E desde 6 de Outubro de 1020 a 22 de maio de 1922, tirou satanás de C., servo de N. S. Jesus Cristo: muitas provas para a sua melhor orientação. C., o servo de predileção Celestial; foi santificado em S. Paulo. Em 4 de Outubro de 1921, foi conduzido para o hospício Juqueri; localizado neste deserto, C., além de muitos jejuns rigorosos, jejuou 40 dias com 40 noites sem comer nem beber coisa alguma deste mundo: na Quaresma de 1926. Iniciou-se o jejum em 17 de fevereiro. E terminou em 28 de Março do referido ano. Em 15 de Maio p. p. preguei um Sermão no terceiro pavilhão do hospício, denominado Sermão da Montanha ou Deserto”.   
“D. Duarte, quero muito em breve trabalhar publicamente pela salvação das almas, previne a S. Exma. Rvma. D. Duarte, para evitar as dolorosas operações de satanás, que por má ventura sugeriu em espírito. Caso frieza para não dar passos sem atenção a esta Celestial obra. Lembre-se que é satanás inimigo das almas, infundindo falta de animo; para não obrar”.
“Importa que S. Rvma levante-se de sua cadeira apressado e dê passos para conduzir o C., para São Paulo. Do Servo Amantíssimo de NSJ Cristo, por santos trabalhos de ordem Celestial. S. Sta. Benção. Em nome de Padré, Filho, Espírito Santo. Amen”.

“Juquery 23 de Outubro de 1927”.                                “ C.V.R.”
                                                                          “3º Pavilhão do Hospício”
  

domingo, 18 de maio de 2014

Capítulo 4 – Parte 2 – A Expressão Artística nos Alienados

Como usualmente frisamos, devemos estar atentos a que este texto de Osório César foi escrito na década de 1920, portanto com as características dos conceitos e da linguagem da Ciência Psiquiátrica de então. Acentuamos a singularidade de o autor focar as produções artísticas dos pacientes nesse momento.

...continuação do texto...

Os poetas parafrênicos são comuns nos Hospícios. Há os de todo gênero: satíricos, parnasianos, românticos, bucólicos e futuristas. As suas produções são pejadas de prolixidade. São todos grafômanos. Vivem continuamente inspirados. Qualquer coisa desperta neles uma poesia. Tudo o que escrevem distribuem entre os médicos e enfermeiros. São desconfiados. Quando percebem que alguém troça deles, magoam-se e escrevem versos satíricos, alusivos ao indivíduo. São orgulhosos. Muitos deles escrevem os seus poemas numa linguagem simbólica e cheia de misticismo.
Vejamos a observação de um poeta romântico parafrênico do Hospital do Juquery:

M... (1), 43 anos de idade, branco, casado, católico, brasileiro, procedente da Capital, internado a 19 de Abril de 1925.
Histórico: É o único caso, o presente, que existe na família do observando. Não há referência sobre o passado da família. O que sabemos, por intermédio do próprio doente, é que o estado de saúde de todos os seus parentes é o mais lisonjeiro possível. É provável que o observando, consciente como é, oculte qualquer pormenor em que se possam basear para a justificação da “sua loucura”. “Aliás”, diz ele, “eu não sou louco! Raciocino com toda a lógica imaginável; sou funcionário público e sempre desempenhei com a maior probidade o meu dever; minha família não tem a mim a menor queixa, como chefe zeloso e bom que tenho sido. Não sei, portanto, e isso é que talvez me faça ficar louco, porque essa prisão injusta, fonte exclusiva da perseguição que movem contra mim os meus inimigos, a famosa camorra do Forte de Itaipu!” E o doente discorre, delirando já, sobre a “poderosa quadrilha” que, tendo assentado no Forte de Itaipu um possante aparelho de rádio-telefonia ou rádio-telegrafia, “sincroniza as ondas artesianas sobre o fone que cada um de nós traz invisível em nosso corpo e nos faz então, para perseguir-nos, cometer certos atos de indelicadeza contra a nossa família ou então responder por gestos ou palavras às vezes que nos são transmitidas”. “E veja o senhor”, continua o doente, “dizem que sou louco porque falo sozinho! Quererão levar a perseguição ao ponto de me proibirem até de responder ao que escuto no telégrafo sem fio?! É uma ignomínia! Mas hei de me vingar! À primeira oportunidade que se apresente, farei a minha representação junto ao senhor Dr. Delegado Fiscal do Tesouro Federal, afim de desmascarar esse infame que, não só a mim, mas também à Fazenda Federal, quer prejudicar. O senhor há de ver! Não considero loucos os companheiros; são vítimas, como eu, da camorra. Olhe aquele” – e mostrava um doente que, preso de grandes alucinações, saltava de um lado para outro, com grandes gestos de quem se defende – “está neste momento sob o efeito da irradiação do telégrafo sem fio”. E por aí vai; seria longo descrever tudo quanto o doente diz, logicamente, com sólida argumentação, para provar a injustiça de sua reclusão e os malefícios que poderão advir do serviço público da perseguição que se lhe move. Os autógrafos que juntamos à observação são bem elucidativos quanto à forma de delírio persecutório de que o paciente é vítima. Aqui no Hospício, “se bem que atenuadamente, tem ainda sofrido os efeitos das irradiações da Camorra”. Inquirido sobre se usava bebidas alcoólicas, tentou negar o seu vício, mas depois confirmou que, de 6 anos a esta data, se entregava ao vício da embriaguez. Tem, de fato, alguns sinais físicos de intoxicação etílica: tremores das mãos; língua saburrosa e trêmula; exagero dos reflexos tendinosos e cutâneos. Nada de particular no reflexo pupilar e nas sensibilidades. O estado geral de saúde física é bom. O paciente alimenta-se bem e tem, dizem os enfermeiros, sono tranquilo.
Diagnóstico: Delírio de perseguição. Falsa interpretação. Conservação das faculdades psíquicas. Parafrenia.

Apreciemos agora os seus versos:

Na mesma Fé

O meu samburá
Carrego frutinhas;
Às moças, Sinhá –
Pai Chico às Quindinhas.

Quero-as muito bem...
São pombas, são garças...
Flores do Lychen,
Roseiras esparsas.

Bem nos entendemos,
No mútuo respeito.
Sempre que nos vemos
Peito bate em peito.

Sou velho, são moças,
Trilhando um só fato;
Cancelas de força
Do mesmo riscado.

- Coitado! – elas dizem,
- Coitadas! – digo eu...
E somos felizes
No afan que Deus deu!

Louco velho

Lá detrás daquele morro,
Na escarpada do Fandango?
Sacisinha anda de gorro,
Plantando mato-ximango.  

Erva amarga ou Capitão,
Pra curar dor de barriga;
É melhor que a herva-tostão
Dos passeios do Bexiga.
Masserado có a raiz,
Pondo álcool é fernet-branca;
Com a marca “Flor de Liz”,
Égua velha de retranca.

Gente louca dá trabalho,
Muito mais que um burro chucro;
Ferro frio bate o malho,
Porco não sai do tijuco!

Come fruta verde ao lume,
Bebe estanho derretido;
Não mais peca, não faz crime,
Louco velho aborrecido.

Louco velho
Degadelhos;
Enxovido,
Carcomido!

As carapucinhas

 Adoro o seio da virgem,
No casto amor de donzela.
Meu peito bate em vertigem
De amor em chamas por ela.

Seus lábios são rosa-flores,
Na haste pênsil do jardim;
Sorrindo em francos humores,
Ao rescenso do alecrim.

Na face a pétala arfante,
Olhos me matem de amor;
Entre os rios flamejante
Do orvalho fresco da flor.

Adoro a branca, a morena,
Também a pardinha esgueira
E as roxinhas... Rosa... Helena...
Maria... Ismenia faceira...

No alvrar sacudindo as ancas,
Ponta a ponta, sempre a andar;
De carapucinha branca,
Da insana aflita a cuidar.

É tão grande o número das produções literárias desse doente que as suas poesias são para encher alguns volumes de duzentas páginas cada um.
Todos os dias ele compõe versos. Qualquer acontecimento, por mais banal que seja, é motivo para uma série de quadrinhas. A cadência dos versos lembra a dos versos de Gonçalves Dias.

Notas de Osório César:

1 – Dos Archivos Psychiatricos do Hospital do Juquery. 

sábado, 17 de maio de 2014

Capítulo 4 – Parte 1 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

Conceito das parafrenias. Poetas parafrênicos. A poesia mística. História psiquiátrica de um doente com delírio místico. Poemas parabólicos com interpretação do autor.

As parafrenias constituem hoje em dia um grupo clínico bem definido que Kraepelin separou da demência precoce. Assim o fez em virtude de certos doentes não apresentarem modificações da personalidade, perda da afetividade e da iniciativa.
Kraepelin admitiu quatro variedades de parafrenias: a sistemática, a expansiva, a confabulatória e a fantástica.
A parafrenia sistemática é caracterizada, diz Kraepelin, pelo “desenvolvimento extremamente vagaroso de um delírio de perseguição, continuamente progressivo, com ideias de grandeza mais tarde a ele associadas, sem destruição de personalidade”.
As alucinações do ouvido e da vista são tremendas, apavorantes. O indivíduo vê pessoas de sua família supliciadas, mortas; vê esqueletos. Ouve vozes de pessoas conhecidas que lhe pedem socorro; escuta injúrias e ameaças que não o deixam tranquilo noite e dia. Desse modo se implanta o delírio de perseguição que atenaza o doente atrozmente durante anos.
“O parafrênico sistemático”, diz o prof. Roxo, “vive numa eterna desconfiança e na rua não há frase que lhe não seja alusiva, ou olhar que o não vise”.
“Anos depois, em geral, ou muito pouco tempo depois, em muitos, vem o delírio das grandezas”.
“Muitas vezes é ele chave de tudo quanto ocorreu antes. Era a inveja que o fazia odiado, por ser um milionário, por ser filho do rei, por ser o apaixonado de uma princesa”.
E assim vive o pobre alienado dentro do círculo de sua moléstia, cuja evolução é longa e penosa.
A parafrenia expansiva se caracteriza pelo delírio de grandezas, pela euforia com ligeira excitação, fazendo lembrar por vezes a excitação maníaca.
As ideias eróticas são frequentes, chegando mesmo, em certos casos, a dominar o quadro. Não são comuns os delírios de perseguição; quando eles aparecem, conservam-se sempre em plano secundário e não preocupam o doente.
A parafrenia confabulatória é constituída pelo abaixamento adquirido do nível intelectual e por um delírio em que se notam essencialmente muitas ilusões da memória e alucinações (Roxo).
É forma rara. Kraepelin, em 35 anos, apenas viu 12 casos.
A parafrenia fantástica se caracteriza pela existência de um delírio florescente, cheio de alucinações extravagantes absurdas, desconexas e mutáveis. É a forma clínica em que o doente diz frequentemente que os cachorros conversaram com ele, que os passarinhos lhe dirigiram a palavra, ou que o demônio se lhe apresentou, a discutir com ele (Roxo).
O delírio de perseguição é comum. O doente é desconfiado de tudo e de todos. As perturbações cenestésicas são intensas. Sente cheiro de clorofórmio, de éter. As alucinações auditivas são frequentes: vozes ameaçadoras são percebidas.
Telefones misteriosos, irradiações de toda natureza o perseguem constantemente.
Essa forma de parafrenia muito se assemelha com a forma paranoide da demência precoce.
A forma expansiva da parafrenia é a que apresenta mais rico manancial de símbolos para o estudo interpretativo psicanalítico.
Esta psicose, segundo Kraepelin, aparece entre os 30 e os 50 anos. O que a caracteriza, como vimos atrás, é um delírio de grandeza exuberante, com animo alevantado e facilmente irritável. Geralmente, as ideias de grandeza, segundo Kraepelin, na metade dos casos, e, segundo Bumke, com maior frequência, têm uma tinta erótica; em outras ocasiões adquirem elas uma tonalidade religiosa acompanhada de ideias de perseguição.
“Frequentemente”, diz Bumke, “tais ideias religiosas se confundem com as eróticas e dão lugar à fabulação que produzem uma impressão de onirismo ou de fantasia extraordinária”.   

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Capítulo 3 – Parte 4 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

Poderemos citar ainda os trabalhos literários de uma demente precoce que Capgras (1) apresentou em Abril de 1911 à Sociedade de Psiquiatria de Paris.
Trata-se de uma professora com 38 anos, filha de um alienado. Na sua infância teve coqueluche, varíola, escarlatina e coreia de Sydenham. Mais tarde, apresenta-se emotiva, escrupulosa, obsedada, fóbica. Apesar disto, é muito inteligente e obtém, com 19 anos de idade, o diploma numa escola superior. Consegue o cargo de professora num arrabalde de Paris. Exerce sua profissão regularmente, a despeito da existência de obsessões, de preocupações hipocondríacas, de cefaleias frequentes e de pequenas bizarrias na conduta. Algum tempo depois, na idade de 29 anos, tem, no decurso de uma pneumonia, um acesso de delírio onírico, com alucinações do ouvido e da vista, ideias de culpabilidade e danação, visões do inferno. Depois de umas três semanas volta a sua lucidez, mas não desaparece o misticismo. Anteriormente irreligiosa, agora ela se preocupa com a Bíblia, comunga, fala sem parar de demônio e não quer saber de mais nada.  
Nessas condições, a doente entra na Salpêtrière para o serviço de Dejerine, que diagnostica: Delírio místico com agitação. Enfim, o seu estado vai se agravando cada dia, até se instalar a demência precoce com todo cortejo patognomônico (enfraquecimento intelectual, indiferença, maneirismo, estereotipismo, gatismo, etc.).
O que nos chama a atenção nessa doente é a sua grande atividade intelectual. Durante a época de sua permanência no Hospital, ela escreveu constantemente cartas aos médicos e ao mesmo tempo grande número de poesias com admirável correção de ortografia e de conceito, não obstante a progressão de seu mal.
Vejamos, por exemplo, esta bela poesia:

Être chatte de Perse

Je fais ce rêve: être chatte de Perse,
Aux jours d’ennui, ce doux songe me berce,
être chatte de Perse.

J’habitarais un palais magnifique,
On entrerait par um brillant portique,
Les diamants, les émaux e les ors
Y brilleraient em sublime décors.

Ce beau palais, il serait fait de jade,
M’y accouder sous quelque fine árcade,
Y étaler um habit magnifique,
Les pieds posés sur de riches toisons.
Luxes inouis, richesses à foisons,
Y revêtir quelque belle simarre,
Qui, brillament, de couleurs se chamarre,
Tel est mon rêve étrange et poétique.

O que mais admirar aqui? A harmonia do verso ou o conceito da inspiração?
Notamos que tudo isto foi escrito quando a demência precoce se havia definitivamente instalado no doente. Depois de 6 meses, mais ou menos, ela compõe uma espécie de jornal, no qual escreve a maior parte de seus  pensamentos. Enche completamente 5 cadernos de 100 folhas cada um, de composições literárias de sua lavra. É quando começam a se manifestar as perturbações psicográficas mais importantes. Assim, ao lado de frases claras, lógicas, bem comedidas, aparecem verdadeiras “saladas de palavras”, incoerências e desordens nas associações das ideias.
Como exemplo citemos este trecho:
                        De l’excrément
“L’excrément” ou ancien crément, cré racine de créer, ment prise a l’interieur égale à spirment, racine de mentir ou vie nouvelle-ment, vie nouvelle, voyance de nouveau à Dieu, voyance: Tour-un, prise entiêre (espirits) selles.
Excrément, ancien radical cré, prise ent. (interne parfait) Solide qui. Selon le radical créant, est positivement pur, égale à prise entire, comme à de l’esprit: defecations. Ainsi la scorie est égale au fuyant, ex, toutefois: nettoyez chaque fois avant d’allumer (tirage) grille Cordier (J. ou. rs.)
Personne ne peut savoir ce que Dieufait des scories, en tout, haves, pierres ponces, dejections.
Les excréments sont de la matière tombant sous les sens. Ce sont des corps. Ils sont à l’image de la croix: balance. Ainsi, il ne faut pas mettre les talons dedans. Il faut les ranger, à rapport côte d’Adam (Jésus-Christ est le novel Adam). Nous ne devons pas le sentir. Quand ils empuent, c’est a de la colère divine. Cette odeur et aussi réelle, aussi agreeable que celle de la Rose. Rosa mystica. Communion du vidangeur. Object à Dieu: amo.”
Notamos aqui a riqueza de fabulação exagerada, maneirismo e uma certa originalidade no poder descritivo.
“O esquizofrênico”, diz Bleuler (1*), “não é simplesmente um demente, mas um demente em relação com determinadas épocas, certas constelações e certos complexos”.
“Os produtos de uma declarada esquizofrenia na literatura e na arte, na maioria possuem o selo do louco e do estranho, o que não raro é encoberto por efeito algo patológico. Nos casos particulares, um pequeno desvio do normal dá à obra de arte uma certa originalidade , ou os pacientes podem dizer verdades que os sãos não se atreveriam em uma forma tão clara. Não raro, algumas excitações esquizofrênicas tendem em seu começo para uma atividade poética e até para uma certa capacidade, que fora disto não existe”.
É o que se dá com a arte futurista. Ela é positivamente uma arte esquizofrênica. Os artistas futuristas não são alienados, mas não deixam, contudo, de possuir temperamentos esquizofrênicos (1**).  
Nos desenhos de um parafrênico das figuras 70, 71, 72 e 73, o mesmo doente que compôs a valsa da figura 58, notamos um curioso primitivismo. A conformação do tórax destas figuras lembra as das figuras egípcias. Vejamos a história do doente e a descrição dessas figuras:
“P. (2), de origem italiana, branco, casado, de 37 anos de idade, morador em Bica de Pedra, foi recolhido ao Hospital do Juquery em 10 de Dezembro de 1920, onde o examinamos”.
“Não nos foram dados informes sobre seus próprios antecedentes pessoais, nem de família; não podemos dar crédito às suas informações, porque seu estado mental é mau e não merece confiança o que ele diz”.
“Alto, robusto, aparentemente não apresenta lesão alguma de órgão importante para a vida vegetativa. Tem os cabelos muito grisalhos para a sua idade. Seu rosto avermelhado dá a impressão de um homem congestionado, tanto mais que os olhos são sempre avermelhados, o que mais acentua essa impressão. Tem a língua geralmente saburrosa. As pupilas não reagem igualmente de ambos os lados; a reação consensual está muito levemente perturbada. Os reflexos superficiais acham-se diminuídos, os profundos exaltados. Apresenta ligeira disartria, muito pouco pronunciada, existe tremor das mãos, assim como tremores dos pequenos músculos peribucais e da língua. Sob forte emoção os tremores generalizam-se por todo o corpo. Estes últimos sintomas são tão apagados que só se observam com muita atenção”.
“A saúde somática geral é regular, embora seu peso não corresponda à altura”.
“Diz que o pai faleceu com 83 anos; mas, logo depois diz que está vivo; mais tarde diz que não o conheceu, e assim por diante ora uma coisa ora outra. Não gosta de conversar; é carrancudo e parece estar sempre de mau humor, ou, pelo menos, de humor altaneiro e levemente sarcástico”.
“Acredita que nunca teve pai; que com ele se deu o mesmo fato da vida de um príncipe da Espanha: foi criado escondido por uma família pobre. Sempre se diz filho de Vitor Manuel, rei da Itália (sic), irmão de Vitor Orlando, a quem está esperando todos os dias para levá-lo a casar-se com uma dama de alta hierarquia. Todos esses absurdos são ditos com ar calmo, de quem tem absoluta certeza. A absoluta decadência da lógica, do raciocínio, denuncia claramente o estado demencial global. A certas perguntas responde sempre: “Não sei de nada, o Lapa é quem sabe tudo”. É, naturalmente, alguém lá de Bica de Pedra”.  
“Presta bem atenção e compreende o que se lhe pergunta, embora responda com disparates e frases evasivas. Sua memória não está completamente obliterada. Os sentimentos afetivos estão embotados. A psicomotilidade não está exaltada nem inibida; apresenta-se normal”.

O estado atual de P. é o mesmo de quando foi observado em 1920. As suas ideias delirantes giram todas neste mesmo princípio : “É filho do Rei da Itália e vai casar-se com uma princesa.
Vive isolado dos companheiros; não quer trabalhar e dedica-se à pintura, ao desenho e à música.
As suas produções de arte revelam uma feição muito característica e extremamente pessoal. Da grande coleção que possuímos dos desenhos de P., verifica-se que há sempre neles os mesmos personagens ilustrando as cenas de suas composições. A sua arte, pois, se resume num só motivo estereotipado, que lhe serve de base para as suas criações. É digna de nota a sua estranha obsessão em somente pintar figuras de negros; algumas vezes, essas figuras o estão acompanhadas de aves e de animais domésticos. A técnica do desenho de P. é primitiva; vê-se que ele desconhece completamente a perspectiva. A representação do movimento também não existe nas figuras que ele traça e a semelhança delas com as da arte egípcia é acentuada. É preciso salientar que essa tendência pictórica somente se manifestou em P. depois da perturbação mental, o que para nós tem real importância.
Muito mais interessantes são os seus desenhos do que as suas composições musicais. Antes da moléstia que o atacou, P. já conhecia regularmente música; por isso, as suas valsas não apresentam maior interesse quanto à originalidade. Em todo caso, elas são mais dignas de atenção e de estudo que as de B. (veja pag. 41), ao passo que os seus desenhos são admiráveis pela originalidade. Uma das características apresentadas nesta arte em P. é o desprezo pelo interior. Em quase todos os seus quadros nota-se a absoluta ausência de decorações e ornamentos no interior, o que, para os outros artistas alienados constitui motivo de evocações extravagantes dos aspectos da natureza. Nesses artistas, o interior de um quadro é sempre motivo de bizarros enfeites. Todavia, algumas vezes P. põe nos seus desenhos ligeiros motivos ornamentais pobremente estilizados. Na figura 70, por exemplo, que representa um casal de  com uma planta em cima de uma cadeira. Interessante é que o encosto e os pés da cadeira são notas musicais estilizadas.
Tanto a figura da mulher como a do homem não apresentam nenhum relevo e dão a impressão de uma superfície plana.
É, sobretudo, na conformação do tórax que as suas figuras parecem com as da arte egípcia. O pescoço e os braços acham-se atrofiados. No entretanto, os olhos são expressivos e bem iluminados.
A figura 71 apresenta igualmente essa mesma atitude pictural que, aliás, em P., como já dissemos, constitui um motivo de estereotipia. Os animais que fazem parte dessa composição (cães) dão ideia de brinquedos de crianças, tais são as atitudes em que estão dispostos. Uma zoolatria é observada em quase todos os quadros de P. e a prova disto está nos seus desenhos reproduzidos aqui nas figuras 72 e 73. Quando não é o cão o animal que acompanha as suas figuras, é o urubu, a ave agoureira, que ele pinta com uma certa expressão de realidade.
A figura 73 descreve uma cena de assassinato que P. diz ter presenciado no interior do Estado de São Paulo. Um negro, com os joelhos sobre o solo, aponta uma arma de fogo para outro negro, armado com espingarda e facão, em posição de sentido, mas sem dar a menor atenção ao grave fato.
Como ornamentação do quadro, há em cima, de um lado, uma galinha com um urubu. Do outro lado, uma cesta onde uma fêmea dessa ave que acaba de deitar um ovo. Em baixo, perto do negro sentado, um cão em atitude de espanto, olha para o soldado. Há muita ingenuidade nessa concepção.
Na figura 72 vê-se uma fachada de igreja. Um homem aparece na porta central  e no telhado pousa um urubu. Notam-se nesse desenho exageros de proporção e falta de homogeneidade. Enfim, a arte pictórica de P. é primitiva, grosseira e apresenta vários pontos de contato com a arte de crianças de grupo escolar. Apesar disto, pode-se admirar nela uma certa e curiosa originalidade.
A outra manifestação artística que P. revela é a música. De um pedaço de bambu ele faz uma flauta (fig.74) que, de quando em vez, toca, executando trechos musicais de sua lavra. O som desse instrumento não é agradável ao ouvido e nem as suas composições são toleráveis.
As músicas de sua autoria são valsas e dobrados.
A figura 75 é a reprodução das páginas de um interessante livro feito por um demente precoce no período inicial. É extraordinária a paciência com a qual o doente procurou imitar letra de imprensa e de ilustrar com grande número de desenhos coloridos o seu trabalho. É um livro de histórias de aventuras para crianças. Na primeira parte está escrito: “O dedinho de Haguida ou os mistérios de uma terra. Romance por M., em 5 partes fantásticas para as crianças”. Na segunda página lê-se: ”Romance brasileiro. Com mil gravuras coloridas... quase em resumo”. E logo abaixo isto: “(Lectures pour tous)”. Primeira parte. “O destino negro de Bolozarkiw ou Ódio falso do monstro Lubison pela mão prometida da misteriosa Arlinda”.  
A história tem imaginação e é escrita numa linguagem clara. Há muita coisa interessante neste livro e um certo grau de erotismo sexual.
Apreciemos este trecho:
“Arlinda, ou a bela virgem adormecida, levantou-se do seu encanto, daquela riquíssima poltrona, guarnecida de ouro, que o Bolozarkiw podia ver na ilusão da sua doença, dizendo-lhe com voz altiva e delicada: “Sou tua, sei que te pertenço! Meu coração, meu doce; e o meu pai estará muito satisfeitíssimo, desde o momento que te entregou este espinho venenoso. Toma cautela! E juizinho, meu bem, que sou tua”.
“Sim! Meu amor! – terminava o Bolozarkiw, como que se estivesse no acordar de um sonho – “mede o meu coração, e vê o quanto te adoro”.
Pela história fantásica que o doente escreveu e ilustrou com figuras de monstros, parece tratar-se de alucinações de fundo erótico mascarado pela censura com a denominação de história para crianças.
“Os contos de fadas, diz Franco da Rocha (1***), têm semelhanças notáveis com outras lendas, em todos os pontos do globo, fato que a psicanálise explica sem dificuldade. O fator sexual aparece dissimulado nesses contos, nos quais estão ocultas as mais perversas tendências, principalmente a algolagnia (o prazer libidinoso ligado à dor) no seu grau mais elevado – o sanguinário. São, na opinião de Riklin, criações da alma humana primitiva, utilizadas de acordo com a tendência geral do homem: a satisfação de seus desejos”.
O doente começou a escrever o livro quando os primeiros sintomas da psicose se haviam esboçado. Atualmente ele se encontra em estado demencial. Os seus desenhos são rabiscos (fig. 76) de coisas quase indecifráveis.
Nos alienados, as estilizações cubistas são comumente encontradas sobretudo nos artistas plásticos.
Lafora (3) refere-se a um caso interessante, que reproduzimos aqui na fig. 77 intitulado “Cristo e Virgem”. Trata-se de um homem culto, que nunca se preocupou com desenhos, antes da moléstia. É bem curiosa a expressão de desprendimento e o contorcionismo que vemos nas imagens do quadro, a riqueza do poder de abstração na fisionomia da Virgem e a estranha ambiguidade de seu rosto. Todo esse conjunto aparece num deslocamento de perspectiva, que dá ao quadro uma feição original.
“Na análise sistemática que faz Jaspers (3), dos desenhos dos alienados, diz que há um grupo de produtos artísticos com expressão da vida psíquica do autor, e este se origina quando as faculdades mentais dos doentes não estão muito alteradas”.
“As produções mais características são as dos psicóticos (muitos deles esquizofrênicos latentes). O conteúdo destes desenhos, diz, está caracterizado por representação de fabulações, de aves agoureiras, monstros visionários, misto de homem e animal, pela centuação descaramente manifesta das coisas sexuais e sobretudo por uma tend~encia à representação em conjunto com uma imagem do mundo, a essência das coisas, uma concepção do universo, ou ideia cósmica”.
Como acabamos de ver, qualquer que seja a sua forma, a demência precoce é capaz de produzir manifestações artísticas dignas de admiração.

Notas de Osório Cesar:  
1 – Ecrits et poesies d’une demente precoce. Encéphale, 1er sem. 1911 pag. 474.
1* - obra já citada.
1** - Bleuler divide os indivíduos normais em dois grupos, segundo sua atitude em face da realidade: 1º os sintonistas, que são aqueles que nunca perdem o contato com o diapasão do ambiente, de poder vibrar uníssono com ele. É a realização ao mesmo tempo da unidade da personalidade. 2º Os esquizoides são aqueles que perdem este contato pois “a esquizoidia é a faculdade de se isolar do meio, de perder contato com ele: ela tem por consequência um enternecimento mais ou menos grande da síntese da personalidade humana”.
Sollier- Courleon. Pratique sémiologique des Maladies Mentales, Masson, 1924.
2 – Observações psiquiátricas do Hospital do Juquery. Ano 1920. Nº 41.
3 – Allgemeine Psychopathologie. Berlim, 1920, 2 edit. pag. 103.