Devemos lembrar que esta obra de Osório César é dos anos
1920. Desse modo, retrata conceitos da psiquiatria desse período, com uma
linguagem que eventualmente pode soar estranha aos dias atuais. O que mais nos
interessa é frisar o enfoque do autor a respeito da arte produzida pelos
pacientes psiquiátricos, trazendo uma vertente humana desses indivíduos.
Osório César inicia o capítulo com frases que resumem o
conteúdo do capítulo:
O “mattoide” de Lombroso. Conceito médico-psicológico da
paranoia. Definição de H. Roxo, Tanzi e
Lugaro. Opinião de Freud. O “Antropotérico”, divagações filosóficas de um
paranoico. Um literato excêntrico do Hospital do Juquery. Arthur Rimbaud
precursor do “futurismo”. Desenhos de um louco moral do Hospital do Juquery.
...continuação do
texto...
Lombroso criou a palavra “mattoide” (1) para designar os
indivíduos comuns que apresentam semelhanças com os homens de gênio e para
firmar uma transição gradual e imperceptível entre os loucos possuídos de
gênio, os homens normais e os loucos propriamente ditos.
Esta variedade constitui na psiquiatria, como diz Lombroso
(2), uma espécie particular de um gênero assinalado primeiramente por Maudsley,
com o título de homens com temperamento
vizinho da loucura; por Morel, por Legrand du Salle e por Schüle como nevrósicos hereditários; por Régis como nevropatas e ainda por muitos autores,
como paranoicos.
“A paranoia, que significa pensar errado, pensar de viés", diz
o prof. Roxo (3), "consiste em um delírio sistematizado, bem encaixado, lógico,
sem alucinações como elemento essencial e antes como verdadeira exceção, em que
de uma ideia falsa tira o indivíduo uma série de conclusões razoáveis e em que
há, como vício fundamental, primitiva e originária autofilia, egocentria
resultante, inadaptabilidade ao meio e reação consequente a este”.
A psicologia do paranoico (4) é vária, mas característica. A
paranoia poucas vezes se encontra nos manicômios. São doentes que por aqui
vivem cuja vida é um romance – muitas vezes trágico – que desgraçam famílias e
esbanjam fortunas, mas que raramente caem entre as grades de um hospício.
Defendem-se. Tornam-se perigosos. Apresentam-se como vítimas de ignóbeis
perseguições. Discutem, argumentam, sofismam. Tão habilmente que a todos
iludem. E conseguem impor-se às multidões. Passam por santos, por super-homens.
Adquirem devotos. Admiradores incondicionais. São os casos de loucura coletiva
– tão conhecidos – nos quais sempre uma personalidade mais forte age como
indutora, como fonte fanatizante. Em todas as reformas sociais ou religiosas,
não é sempre um homem que se impõe e domina os demais?
Mas na paranoia, existem várias formas. Distintas umas das
outras. Que diferentemente provocam reações várias e aparentemente diversas. O
fundo porém é único...
Alguns, de temperamento contemplativo, tornam-se santos,
beatos. (Como os cristãos antigos, que fugiam para os desertos ou enterravam-se
vivos em mosteiros). Outros, ativamente lutam, combatem em prol da verdade. E
aí estão as lutas religiosas da história.
Em tudo por tudo a mesma feição delirante: nuns, delírio de
reforma política, social ou religiosa; noutros apenas um singelo delírio
religioso.
Contudo, são igualmente nocivos. Com suas reações
antissociais, tudo ameaçam, tudo subvertem. (Os anarquistas militantes, em sua
maioria, são meros paranoicos, afirma Lombroso).
À maneira dos cavaleiros andantes, mostram-se generosos,
desinteressados. Novos Lancelotes du Lac, são capazes de gestos nobres, que
mais os impõe à admiração do populacho.
Os paranoicos reformadores são sempre lúcidos, conscientes:
não só não renegam suas ações, mas delas se vangloriam. Verdadeiramente
apresentam um estado d’alma, que se não afasta muito do de um indivíduo normal,
sob o estímulo de uma paixão, entusiasmado por um ideal nobre e alevantado. E
por isto, fascinam, empolgam, dominam. Admirados, endeusados, consagrados, por
sua vez sofrem a influência do meio, do ardor dos que os acompanham.
Progressivamente, mais e mais se cristaliza a ideia de que são realmente
super-homens, que tudo lhes é permitido. Que têm uma missão de bem e de justiça
a cumprir na terra. Como bem diz o grande Euclides, estudando as etapas
sucessivas do Profeta de Canudos.
Entre ignorantes, supersticiosos e broncos, passam como
rastilho de pólvora as ideias incandescentes desses iluminados. Todos os
anômalos crédulos e sugestionáveis, prontos a inflamarem-se por ideais heroicos
e móveis transcendentes, são presa fácil de tais homens. Dizem-no os tratados
de psiquiatria, dizem-nos os fatos.
O paranoico é, regra geral, um “assoiffé” de justiça. Suas palavras despertam eco, no fundo vago
das aspirações latentes, de todo um povo. E os discípulos aparecem, e os
sectários pululam, prontos para a luta, dispostos a derramar a última gota de
sangue, por quem os hipnotizou. E tem-se Canudos... Perigo formidável e sempre
iminente.
Tanzi e Lugaro (5) descrevem deste modo o paranoico: “I
paranoici sono formalmente altrettanto mistici del volgo e dei selvaggi; in
realtá sono piu mistici di essi e di tutti, perché il loro misticismo nasce, si
svolge e persiste a dispetto dell’ambiente. Del resto, le manifestazioni del
misticismo paranoico sono qualitativamente simili a quelle del misticismo
primitivo: única differenza e appunto l’ambiente storico da cui scaturiscono. I
primitivi sono figli del loro tempo; il paranoici sono anacronismi viventi. Il misticismo dei primitivi é la
manifestazioni modesta, tranquilla e collectiva d’un pensiero imperfetto che si
sviluppa; il misticismo dei paranoici é l’esplosione audace, violenta e
individuale d’um pensiero in regressed anticivile”.
“Na paranoia Freud tem encontrado”, diz Franco da Rocha (6),
“recalcadas, tendências sexuais diversas, e a principal força do recalcamento
seria nesses casos o desgosto, a repugnância, o que quer dizer que o paranoico
é em suma, autoacusador. Isso se torna possível pelo mecanismo que ele denomina
de projeção, isto é, o paciente
projeta sobre as pessoas de sua convivência os sentimentos de ódio que lhe
surgem dos recalcados sentimentos de amor (homossexual). O paranoico acusa
outras pessoas de estarem a dizer dele coisas que, na realidade, existem no seu
próprio inconsciente. Sem a compreensão exata da ambivalência afetiva, será também impossível compreender o mecanismo
da projeção. É indispensável admitir a existência de um sentimento consciente e
de um oposto inconsciente, que é o que se projeta no exterior ou é atribuído a
outras pessoas”.
Um dos fatos mais característicos que se nota na observação
dos paranoicos é principalmente a convicção exagerada de seus méritos pessoais,
de seu próprio valor perante a humanidade. E esta convencida opinião que eles
têm de si próprios, não se cansam eles de demonstrá-la, tanto nos seus
escritos, associações absurdas de ideias com contradições frequentes e
prolixidade, como nos atos e conversações da vida diária.
Curiosa é também a preocupação que os paranoicos têm de
quererem renovar as ideias dos homens políticos e dos grandes pensadores. E
para isto eles empregam, nas suas discussões, uma maneira tão extravagante e
inqualificavelmente exagerada nas ideias, que lhes emprestam, por vezes, um
cunho original. Estes indivíduos, absolutamente convencidos de suas opiniões,
não as modificam quaisquer que sejam os argumentos que lhes sejam apresentados.
É da lavra de um paranoico este trabalho filosófico:
O
Antropotérico (7)
“A Etiologia do Homem
constitui hoje mais do que nunca um conglomerado de caracteres e fenômenos tais
que só a Fisiologia e a Anatomia comparada de concerto com a Antroposomatologia
e a História Natural é que podem estabelecer propriamente todas as analogias,
antagonismos e ambiguidades concernentes ao curso da descendência correlativa
ou árvore genealógica do tipo-homem. Considerados logicamente por um sistema de
prismas eticopaleoontológico-antropogenético esses mesmíssimos
dados etiológicos formarão ângulos de refringência no mesmo plano de arestas da
Ontogenia e da Zoologia. Foi na segunda metade do século das luzes que
floresceram os mais festejados cientistas e pensadores e ainda hoje em pleno
século vintésimo cognominado do Pensamento, assiste-se predomínio absoluto
daquelas doutrinas que tanto se imortalizaram no espírito da Humanidade e
encontram ainda as mais francas e entusiásticas celebrações nos foyers da
Atualidade. Como pioneiros do Evolucionismo (Cuvier do Atavismo do Globo).
Lammarke, Linneu, Darvin, Huxley e Haeckel atestaram com a maior clarividência
de testemunhos irrefutáveis, os pontos de contato e derivações consecutivas
entre o tríplice reinado da História Natural”.
“Surgiu posteriormente
o Positivismo cujos enciclopedistas apostolando (apostatando simultaneamente os
mais transcendentes) todos os princípios da Filosofia rejeitaram
perfunctoriamente a doutrina do Espiritualismo pretextando os seus preconceitos
de verdadeira ‘res incognoscibilis’”.
“Mas a etiologia do
homem nada sofreu perante qualquer seita até pelo contrário pelo papel que ela
representa no cenário do modernismo filosófico pode-se considerar como a obra
mais gigantesca do Espírito Humano e da qual só se pode cristalizar um
transumpto monográfico ou epítome”.
“A Filogenia do Homem
Pensante faz parte além da matemática e da astronomia porquanto só o homem
pré-histórico é calculado aproximativamente em meio milhão de anos outros
concursos igualmente poderosos como o da Biologia e da Arquimia vem completar o
ciclo formidável dessa grandiosa disciplina”.
“Não obstante por assim
dizer, tamanhas etapas do pitequismo ou macacos humanos, não obstante ainda os
graus de civilização que o homem tem atingido durante tão longo transcurso
histórico-biológico um enorme ou melhor avultado número de caracteres
somáticos, fenômenos e idiossincrasias o têm conservado ainda no terreno dos
quadrúpedes propriamente ditos. Se não fosse propriamente as articulações em
diagonais dos membros apreensores e locomotores a prova mais autêntica da sua
reversibilidade a um tipo inferior da escala zoológica haveria ainda outras
características hierárquicas ou anatômicas quimiotóxicas e analíticas que
militam rigorosamente contra o chamado Ortoestantismo”.
“Os braços que eram
dotados de faculdades locomotrizes conservam-se por assim dizer dependurados no
tronco e pelo menos uma modificação se patenteia aos nossos olhos por influxo
talvez das adaptações mesológicas que foram inquestionavelmente progressivas;
essa modificação é a flexibilidade invertida: flexão do cotovelo”.
“Nos membros inferiores
se registram analogamente o mesmo fenômeno: flexão diametralmente opositória”.
“Ora essas modificações
anatômicas são imanentes a todos os indivíduos logo é uma consequência congênita
da estação ou melhor degenerescência congênita de Verticalismo que tende a
desaparecer ulteriormente desde o momento em que a nossa Espécie adquira os
seus primitivos caracteres morfogênicos e cujo computo cronológico é enigmático”.
“Pode-se fazer uma
estimativa mais ou menos categórica da época de restauração do Homem em um tipo
específico inferior muitíssimo inferior e cuja inferioridade na escala
zoológica pode ir até os marsupiais; a classe básica dos animais por
excelência, a classe que deu origem a tantíssimos representantes atávicos na
época terciária se não nos falha a memória...”
E por aí vai, neste teor, empregando termos pomposos,
neologismos, enchendo laudas de papel para chegar à conclusão de que o homem
tende a voltar para a estação horizontal.
Espírito vivo, inteligente, de uma cultura mediana, este
doente é dotado de uma memória prodigiosa.
Em quase todos os paranoicos grafômanos são dessa maneira
tenazmente defendidas e sustentadas as suas convicções; entretanto, no meio
desses escritos cheios de absurdos vamos encontrar, às vezes, ideias e
pensamentos geniais.
“Quando comparamos”, diz Lombroso (8), "esses estúpidos
abortos com as pinturas nascidas sob a inspiração da loucura (não falo aqui dos
pintores que se tornam loucos, nos quais, como nos poetas e músicos, o talento
antes se enfraqueceu, sobretudo pelas tendências viciosas e falta de harmonia nos
tons), que diferença! Achar-se-á muitas vezes nos verdadeiros loucos, o
absurdo, o desproporcionado, mas também encontrar-se-á o verdadeiro e a
excessiva originalidade unidas a uma beleza selvagem e sui generis, que lembra em certos pontos as obras de arte da Idade
Média e sobretudo dos Chineses e Japoneses, tão ricas, tão extraordinariamente
ricas em símbolos; ver-se-á, em suma, que a arte sofre não da falta, mas do
excesso de gênio que acaba por se abafar nele próprio”.
Notas de Osório César:
1 – Matto em
italiano quer dizer louco.
2 – L’homme de Genie.
Tradução francesa, pag. 344. Felix Alcan. Paris, 1909.
3 – Manual de Psiquiatria, 2ª ed., 1925.
4 – J. Penido Monteiro e Osório César. Do mórbido na literatura
nacional. (Os Cangaceiros) de Carlos D. Fernandes. Imprensa Medica, nº 14,
Dezembro, 1928.
5 – Tratatto dele
Malattie Mentali. Milano, 1923.
6 – Obra citada.
7 – A ortografia, os neologismos e a pontuação estão aqui
reproduzidos de acordo com os originais do autor (palavras estas do texto de
Osório César).
8 – obra citada, página 380.
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