Como usualmente
frisamos, devemos estar atentos a que este texto de Osório César foi escrito na
década de 1920, portanto com as características dos conceitos e da linguagem da
Ciência Psiquiátrica de então. Acentuamos a singularidade de o autor focar as
produções artísticas dos pacientes nesse momento.
...continuação do
texto...
Os poetas parafrênicos são comuns nos Hospícios. Há os de
todo gênero: satíricos, parnasianos, românticos, bucólicos e futuristas. As
suas produções são pejadas de prolixidade. São todos grafômanos. Vivem continuamente
inspirados. Qualquer coisa desperta neles uma poesia. Tudo o que escrevem
distribuem entre os médicos e enfermeiros. São desconfiados. Quando percebem
que alguém troça deles, magoam-se e escrevem versos satíricos, alusivos ao
indivíduo. São orgulhosos. Muitos deles escrevem os seus poemas numa linguagem
simbólica e cheia de misticismo.
Vejamos a observação de um poeta romântico parafrênico do
Hospital do Juquery:
M... (1), 43 anos de
idade, branco, casado, católico, brasileiro, procedente da Capital, internado a
19 de Abril de 1925.
Histórico: É o único
caso, o presente, que existe na família do observando. Não há referência sobre
o passado da família. O que sabemos, por intermédio do próprio doente, é que o
estado de saúde de todos os seus parentes é o mais lisonjeiro possível. É
provável que o observando, consciente como é, oculte qualquer pormenor em que
se possam basear para a justificação da “sua loucura”. “Aliás”, diz ele, “eu
não sou louco! Raciocino com toda a lógica imaginável; sou funcionário público
e sempre desempenhei com a maior probidade o meu dever; minha família não tem a
mim a menor queixa, como chefe zeloso e bom que tenho sido. Não sei, portanto,
e isso é que talvez me faça ficar louco, porque essa prisão injusta, fonte
exclusiva da perseguição que movem contra mim os meus inimigos, a famosa
camorra do Forte de Itaipu!” E o doente discorre, delirando já, sobre a “poderosa
quadrilha” que, tendo assentado no Forte de Itaipu um possante aparelho de
rádio-telefonia ou rádio-telegrafia, “sincroniza as ondas artesianas sobre o
fone que cada um de nós traz invisível em nosso corpo e nos faz então, para
perseguir-nos, cometer certos atos de indelicadeza contra a nossa família ou
então responder por gestos ou palavras às vezes que nos são transmitidas”. “E
veja o senhor”, continua o doente, “dizem que sou louco porque falo sozinho!
Quererão levar a perseguição ao ponto de me proibirem até de responder ao que
escuto no telégrafo sem fio?! É uma ignomínia! Mas hei de me vingar! À primeira
oportunidade que se apresente, farei a minha representação junto ao senhor Dr.
Delegado Fiscal do Tesouro Federal, afim de desmascarar esse infame que, não só
a mim, mas também à Fazenda Federal, quer prejudicar. O senhor há de ver! Não
considero loucos os companheiros; são vítimas, como eu, da camorra. Olhe aquele”
– e mostrava um doente que, preso de grandes alucinações, saltava de um lado
para outro, com grandes gestos de quem se defende – “está neste momento sob o
efeito da irradiação do telégrafo sem fio”. E por aí vai; seria longo descrever
tudo quanto o doente diz, logicamente, com sólida argumentação, para provar a
injustiça de sua reclusão e os malefícios que poderão advir do serviço público
da perseguição que se lhe move. Os autógrafos que juntamos à observação são bem
elucidativos quanto à forma de delírio persecutório de que o paciente é vítima.
Aqui no Hospício, “se bem que atenuadamente, tem ainda sofrido os efeitos das
irradiações da Camorra”. Inquirido sobre se usava bebidas alcoólicas, tentou
negar o seu vício, mas depois confirmou que, de 6 anos a esta data, se
entregava ao vício da embriaguez. Tem, de fato, alguns sinais físicos de
intoxicação etílica: tremores das mãos; língua saburrosa e trêmula; exagero dos
reflexos tendinosos e cutâneos. Nada de particular no reflexo pupilar e nas
sensibilidades. O estado geral de saúde física é bom. O paciente alimenta-se
bem e tem, dizem os enfermeiros, sono tranquilo.
Diagnóstico: Delírio de
perseguição. Falsa interpretação. Conservação das faculdades psíquicas.
Parafrenia.
Apreciemos agora os seus versos:
Na mesma Fé
O meu samburá
Carrego frutinhas;
Às moças, Sinhá –
Pai Chico às Quindinhas.
Quero-as muito bem...
São pombas, são garças...
Flores do Lychen,
Roseiras esparsas.
Bem nos entendemos,
No mútuo respeito.
Sempre que nos vemos
Peito bate em peito.
Sou velho, são moças,
Trilhando um só fato;
Cancelas de força
Do mesmo riscado.
- Coitado! – elas dizem,
- Coitadas! – digo eu...
E somos felizes
No afan que Deus deu!
Louco velho
Lá detrás daquele morro,
Na escarpada do Fandango?
Sacisinha anda de gorro,
Plantando mato-ximango.
Erva amarga ou Capitão,
Pra curar dor de barriga;
É melhor que a herva-tostão
Dos passeios do Bexiga.
Masserado có a raiz,
Pondo álcool é fernet-branca;
Com a marca “Flor de Liz”,
Égua velha de retranca.
Gente louca dá trabalho,
Muito mais que um burro chucro;
Ferro frio bate o malho,
Porco não sai do tijuco!
Come fruta verde ao lume,
Bebe estanho derretido;
Não mais peca, não faz crime,
Louco velho aborrecido.
Louco velho
Degadelhos;
Enxovido,
Carcomido!
As carapucinhas
Adoro o seio da
virgem,
No casto amor de donzela.
Meu peito bate em vertigem
De amor em chamas por ela.
Seus lábios são rosa-flores,
Na haste pênsil do jardim;
Sorrindo em francos humores,
Ao rescenso do alecrim.
Na face a pétala arfante,
Olhos me matem de amor;
Entre os rios flamejante
Do orvalho fresco da flor.
Adoro a branca, a morena,
Também a pardinha esgueira
E as roxinhas... Rosa... Helena...
Maria... Ismenia faceira...
No alvrar sacudindo as ancas,
Ponta a ponta, sempre a andar;
De carapucinha branca,
Da insana aflita a cuidar.
É tão grande o número das produções literárias desse doente
que as suas poesias são para encher alguns volumes de duzentas páginas cada um.
Todos os dias ele compõe versos. Qualquer acontecimento, por
mais banal que seja, é motivo para uma série de quadrinhas. A cadência dos
versos lembra a dos versos de Gonçalves Dias.
Notas de Osório César:
1 – Dos Archivos Psychiatricos do Hospital do Juquery.