Observação sobre o texto:
Conforme já comentado em outras partes, deve-se levar em consideração a linguagem e os termos usados por Osório Cesar como vigentes em uma linguagem científica dos anos 1920, que pode soar preconceituosa ou estranha para os nossos dias. Naquele momento ele trazia um novo olhar para o doente mental, dando atenção à sua arte.
...continuação do texto...
Conforme já comentado em outras partes, deve-se levar em consideração a linguagem e os termos usados por Osório Cesar como vigentes em uma linguagem científica dos anos 1920, que pode soar preconceituosa ou estranha para os nossos dias. Naquele momento ele trazia um novo olhar para o doente mental, dando atenção à sua arte.
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Entre todas as artes de movimento, a música é a que mais
influência exerce sobre os animais. Sabemos que as aranhas, os cães, os gatos,
as serpentes, os cavalos e muitos pássaros sentem o som rítmico musical com
prazer. No homem primitivo a música consiste quase exclusivamente no ritmo, que
é marcado por instrumentos grosseiros, cujo principal efeito, segundo Ribot, é
aumentar a comoção do sistema nervoso. Para isto é usado como indispensável
instrumento o tambor. Entre os selvagens da América o tambor é muito louvado. E
é com seu auxílio que os índios se embriagam durante horas e horas, ouvindo os
sons médios, sem nenhuma significação melódica, que esse instrumento produz.
Este processo de embriaguez sonora com o auxílio do tambor encontra-se também
em diversos povos de civilização primitiva, entre bruxos, adivinhos, feiticeiros,
que provoca nos indivíduos uma espécie de êxtase (1), uma intoxicação motivada
pelo som e pelo movimento, ou seja, um estado afetivo determinado diretamente
por sensações externas e internas.
O canto dos Botucudos, como descreve Wied (2), parece ser dos
mais grosseiros que se possa imaginar na música dos selvagens. “Le chant des
hommes ressemble à um rugissement inarticulé qui oscile entre deux ou trois
sons, tantôt élevés, tantôt profunds. Ils respirent profondement,
mettent leur bras gauche sur leur tête, quelquefois un doigt dans chaque
oreille, surtout s’ils ont un public, en ouvrant toute grande une bouche
déformée par le botok. Les
femmes chantent moins haut et moins désagréablement. On n’entend également que
peu de sons qui se répètent continuellement”.
Os instrumentos encontrados entre os índios Parecis por A.
Tavares (3) foram as flautas as mais comuns e uma buzina com embocadura de
piston, que produz som cavernoso.
“As flautas são em si;
meio tom abaixo do diapasão normal.
Formam três grupos naturais: grave, médio e agudo, constituindo o que os
compositores chamam uma família,
como, por exemplo, nos instrumentos de corda: contra-baixo, violoncelo e
violino”.
“A embocadura de todos é semelhante à do flageolet. Têm
quatro orifícios. O comprimento varia”.
“Com os orifícios livres, cada qual dá um acorde de mi menor, tom relativo de sol maior: mi2, sol2, si2.”
“O ritmo da música pareci”, diz Tavares, “em regra segue os
compassos binário e ternário. Há também nos Fonogramas
colhidos, compassos alternantes, cuja
regularidade não é conservada em todo o trecho”.
“O fonograma 14.602 (veja fig. 35) é de um coro em lá maior
muito original, quanto à melodia, e surpreendente quanto ao ritmo. É muito
incerto. Aproxima-se de 5/4, que é mantido durante os três primeiros compassos;
aí se quebra, caindo o coro, ora no compasso binário, ora no ternário. A
transcrição deste fonograma foi feita em compasso ¾, para facilitar a leitura”.
A música entre os alienados é muito frequente, observa-se nos
manicômios.
De todas as artes que tratamos é a música a que mais se conserva
equilibrada no cérebro do alienado. Enquanto as outras manifestações
artísticas, principalmente as plásticas (escultura, pintura ), sofrem grandes
modificações em sua essência (deformações de todas as espécies; dissonâncias,
ritmos quebrados, ideação absurda, etc. ), a música, pelo contrário, na maioria
dos casos que temos observado, mostra-se corretamente conservada nos alienados.
André Repond (1*), em um estudo que fez acerca das alterações
da reprodução musical na esquizofrenia observou o seguinte:
1 – O que chama mais a atenção na maneira de tocar de todos
os esquizofrênicos, é a falta de sensibilidade musical.
2 – Para muitos esquizofrênicos parece não ter absoluta
importância o que eles executam, qualquer que seja o humor que eles apresentem.
3 – Uma terceira particularidade é a diminuição vagarosa,
embora irregular, do interesse pela música.
“Indivíduos que foram músicos, antes e logo depois do início
da moléstia, vão perdendo o interesse pouco a pouco de executantes e de
ouvintes. Mas, em alguns casos graves, doentes há que, quando ouvem música, se
interessam bastante. Talvez isto se explique pelo fato de que a música provoque
certo bem estar, durante o qual os doentes mais facilmente se concentrem”.
“Em alguns casos observamos que, antes da moléstia, certos
indivíduos tocavam de preferência músicas clássicas, enquanto que depois de
instalada a moléstia só eram capazes de executar valsas e marchas. Em analogia
com as outras faculdades, é de supor-se que as funções complicadas também na
música são perturbadas com maior facilidade do que as simples; assim, a função
musical comporta-se em analogia com a intelectual, cuja decadência, nesta
moléstia, não progride com regularidade”.
“No início da moléstia, a vontade de executar ou de compor
música é exagerada frequentemente, em analogia com a necessidade comumente
observada nos esquizofrênicos de ocupar-se de literatura”.
“Nos nossos casos podemos verificar todos os graus da
faculdade do sentimento musical afetivo. Tem-se a impressão de que os doentes
simulam sentimentos que já desapareceram. Daí os estranhos maneirismos, exagero
de nuanças e a mímica teatral, etc”.
“A perturbação mais notável na esquizofrenia, pela qual a
falta de sentimentos afetivos se manifesta, é a perturbação da atenção”.
Em grande parte a observação do autor é verdadeira. Mas,
casos há, e não muito raros, nos Hospícios, em que se encontram esquizofrênicos
com sensibilidade musical, isto é, com sentimento musical conservado. Conheci
um caso bem interessante no Hospital do Juquery, de um preto, com instrução
primária rudimentar, músico, e que apresentava uma associação extravagante de
ideias, maneirismo acentuado, sem noção do meio e do tempo, cujo diagnóstico
feito foi o de demência precoce catatônica e, no entanto, conservava ótima
memória musical e executava regularmente vários trechos de músicas de sua
lavra, no clarinete – instrumento seu predileto –, observando as nuanças que a
natureza da música exigia.
No Hospital do Juquery existe a “Charanga Hebefrênica”,
composta exclusivamente de alienados. Vale a pena assistir-se a um ensaio desse
pequeno grupo de músicos. São cerca de 15 doentes mais ou menos. A regência
está confiada a um parafrênico, com delírio religioso, músico e compositor. Os
músicos são todos doentes: dementes precoces, epilépticos, etc. O mestre é
autor de vários dobrados e valsas e o repertório da banda se compõe quase na
sua totalidade de valsas, tangos, maxixes e dobrados.
Antes de começar o ensaio, o mestre, trepado sobre uma
cadeira, com a batuta na mão, explica, com ares de preleção, o sentimento dos
trechos musicais. Começa assim o ensaio e leva horas e horas sem uma discussão,
sem uma queixa, passando e repassando as frases e os períodos musicais,
causando estranha admiração a quem os ouve e os vê.
A valsa que reproduzimos na figura 57 é da inspiração de um
esquizofrênico. É o caso do preto de que falamos atrás. As composições desse
doente, que ele próprio, solfejando, corretamente escrevia no papel, mostram
pouco interesse com relação à originalidade. Os períodos musicais estão certos,
a inspiração é sentimental e a forma regular. Não há originalidade; mas
nota-se, na concepção, um apanhado geral e muito bem feito dos motivos
melódicos das nossas cantigas populares, “choros”.
É uma valsa sentimental, ingênua, como a canção do brasileiro
primevo, cheia de anseio e de nostalgia e, por vezes, tocada de um fogo
soberano que enfeitiça o amor (1**).
“Nos povos novos”, diz Renato Almeida (1***), “o motivo
popular veio com o conquistador e reflete essa dor da adaptação, em que sangrou
seu espírito audacioso. Entre nós, no ardor da natureza tropical, cheia de
fulgurações, o canto foi melancólico. Melancólico era o índio fugidio e
indolente, que vivia a vida cheia de nostalgia, num perpétuo espanto pelas
coisas que o cercavam; melancólico era o lusitano, ousado mas triste, vivendo
no mar e com a saudade da pátria sempre no coração; melancólico era o negro,
caçado, roubado e escravizado, que sofria no cativeiro uma dor irremediável e
aniquilante. Todas essas vozes que se levantaram eram um contraste com o
cenário de magnífico fulgor. A alma do brasileiro guarda esse fundo trágico, em
que o homem teme a natureza e procura vencê-la pela imaginação exaltada, caindo
depois em abatimento e langor. E esse primeiro encontro com o meio, esse
inquieto e doloroso êxtase ante uma grandeza que maltrata, não encontraremos em
símbolos mais vivos do que no canto popular, através da infinda melancolia que
resuma, como perfume de flor agreste e maravilhosa”.
A composição musical do nosso doente traz o nome de uma
mulher, “Purselia”, talvez lembrança de um passado amoroso.
Comparemos o motivo melódico dessa valsa com o de uma canção
dos índios parecis (fig. 35).
Vejamos agora a valsa da fig. 58. Foi composta por outro
esquizofrênico, com delírio de grandeza. Julga-se príncipe, filho de Victor
Manoel, Rei da Itália, e espera casar-se com uma dama de alta hierarquia. Nesta
composição é digna de nota a inspiração musical. Ela tem caráter
particularmente original. Os períodos musicais são quebrados por notas
sincopadas e apresentam pobreza melódica. As notas se espalham livremente pelas
pautas, alheias a qualquer motivo pré-estabelecido. Ritmo inteiramente
desorientado, sem caráter de valsa. Poderemos comparar esta forma de
desenvolvimento musical com a das composições ultramodernas.
A pobreza melódica e a anarquia de ritmo nas músicas desse
doente são o que mais caracterizam a sua originalidade de compositor.
Entretanto, é um ótimo músico executante e uma das figuras mais salientes da “Charanga
do Juquery”. O seu instrumento predileto é o bombardino.
Num trabalho interessante sobre o ouvido musical dos imbecis,
Inhofer (1****) observou que o takento musical é, em grande número de imbecis,
superior ao das crianças normais. Igualmente, em indivíduos idiotas bem
adiantados o sentimento do ritmo musical se encontra bem conservado, tanto para
a recepção como para a reprodução.
De todas as aptidões observadas nos idiotas e nos imbecis, as
artísticas e as matemáticas foram as mais notadas por quase todos os
psiquiatras. “Mais”, diz Solier (2*), tous les arts ne donnent pas lieu à des
tendances analogues, et c’est surtout pour la musique qu’on les reencontre bien
plus que pour le dessin, la peinture ou la sculpture”. E, mais
adiante: “Comme ces sauvages qui accompagnent leur chant monotone de mouvements
cadencés, toujours les mêmes, les idiots qui chantonnent accompagnent aussi
leur chantonnement d’un balancement de la tête et du corps”.
“Quelquefois,
des idiots, qui ne savent pas prononcer un mot, retiennent du premier coup un
air meme assez difficile qu’ils fredonnent juste ensuite. Chez d’autres la
musique fait cesser leurs cris ou bien ils adaptent leur balancement à son
rhythme”.
Séguin (3*)
diz também: “Généralement, l’idiot aime et saisait très bien les rhythmes, je
dirai plus: cette faculté que l’on nomme faculté musicale, est le proper des
idiots caractérisés. Je
n’ai pas vu d’idiots (à moins qu’ils ne fussent frappes de non myotilité ou de
paralysie) qui n’exprimassent le plus vif plaisir à l’audition d’um morceau de
musique. J’en ai vu un grand nombre qui chantaient juste, quoique parlant mal
ou à peine. Ils sont plus sensibles aux rhythmes énergiques, rapidez
et gais qu’aux mesures lentes et graves. Sans doute, parce que plus les
vibrations sont nombreuses, plus leur action est matériellement énergique. Ils
sont également plus sensibles à la musique instrumentale qu’à la voix humaine”.
Notas de Osório César:
1 –
Wallaschek – Primitive Musik. Cit. por Ribot, pag. 139.
2 – Cit. por
Grosse, pag. 213.
3 – Roquette Pinto. Rondônia. 2ª ed. Pag. 139.
1* - Über
Störungen der musikalischen Reproduktion der Schizophrenico. Algm. Deutsch fur
Psychiatrie. Berlim, 1918, vol. 70.
1** - Bilac já descreveu a música brasileira, em síntese, no immortal
soneto, que abaixo transcrevemos:
Música Brasileira (“Tarde”. Francisco Alves, 1919).
Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor; encerras na cadência acesa,
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.
Mas, sobre essa volúpia erra a Tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.
És samba e jongo, chiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva do beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
1*** - História da Música Brasileira. Briguiet. Rio, 1926.
1**** - Über
musikalisches Gehör bei Schwachsinnigen. Die Stimme, 1908.
2* - Psychologie de L’Idiot et de L’Imbecile. Fel. Alcan.
Paris, 1901.
3* - Traitement moral des idiots.
Observação sobre o texto:
Conforme já comentado em outras partes, deve-se levar em consideração a linguagem e os termos usados por Osório Cesar como vigentes em uma linguagem científica dos anos 1920, que pode soar preconceituosa ou estranha para os nossos dias. Naquele momento ele trazia um novo olhar para o doente mental, dando atenção à sua arte.
Observação sobre o texto:
Conforme já comentado em outras partes, deve-se levar em consideração a linguagem e os termos usados por Osório Cesar como vigentes em uma linguagem científica dos anos 1920, que pode soar preconceituosa ou estranha para os nossos dias. Naquele momento ele trazia um novo olhar para o doente mental, dando atenção à sua arte.
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