Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Capítulo 1 – Parte 14 – A Expressão Artística nos Alienados

...continuação do texto...

As artes do 4º grupo, último de nossa classificação, são maneirismos estereotipados, confusos, impregnados de conceitos que nos parecem absurdos, sem coerência lógica, desordenados e envoltos por um esquisito, obscuro e quase indecifrável simbolismo (figs. 41, 42). Entretanto, o estudo desse gênero de arte, de acordo com a psicanálise de Freud, é muito curioso e vem revelar aos nossos olhos, em vários casos, principalmente nos de demência precoce, como veremos mais adiante, uma perfeita decifração dos símbolos desenhados inconscientemente, donde sua interpretação dos mais insignificantes acontecimentos da vida infantil do artista, complexos amorosos que, na maioria das vezes, são responsáveis diretos pelo estado mental do paciente.
Os símbolos que os doentes usam para as suas produções artísticas pertencem à simbologia que Freud (1) observa na interpretação dos sonhos. Assim, os órgãos genitais masculinos são, por exemplo, representados por bengalas, limas, serpentes, punhais, revólveres, torneiras, dirigíveis Zeppelin, peixes, etc.. Os órgãos femininos têm sua representação em vasos, caixas, cofres, portas, frutos, etc..
Em novembro de 1927, apresentamos à Sociedade de Medicina de São Paulo, em colaboração com o Dr. Durval Marcondes, psiquiatra da Inspeção Médico-Escolar, dois casos interessantes de estereotipia gráfica com simbolismo sexual. Vamos ver a história desses doentes e as suas curiosas representações gráficas.
No primeiro caso trata-se de um indivíduo de 24 anos, branco, brasileiro, solteiro, operário, internado no Hospital do Juquery em 25-9-1926.
Conforme informações prestadas por um cunhado, foi sempre um moço muito dedicado ao seu trabalho de pedreiro, tendo recebido instrução primária. Não existem outros casos de moléstia mental na família. Sua doença principiou em 1922, após um desgosto amoroso advindo de rixas com sua namorada.
Desde o dia em que entrou para o Hospital, não emite uma só palavra, tendo, porém, boa compreensão, pois responde por mímica às perguntas que lhe são dirigidas. Mantém-se em completo alheamento ao meio, sentado o dia todo num banco do pátio e interessado unicamente em desenhar. Munido de um lápis, desenha sobre todo o papel que lhe cai às mãos, e na falta de papel aproveita panos e outros objetos que pode ter à sua disposição.
Quando foi examinado pela primeira vez, o seu chapéu de palha estava cheio de figuras a lápis. Em seus desenhos (figs. 43, 44, 45, 46), repetem-se sempre os mesmos temas como que constituindo uma estereotipia gráfica. São pássaros, bastões, limas, punhais, balões dirigíveis, vasos, peras e portas com fechaduras. Tem uma verdadeira obsessão pelos motivos de suas manifestações artísticas, e tanto é assim que, tendo-se-lhe pedido que desenhasse um elefante, esboçou a forma de um pássaro e, advertido no meio da tarefa de que tal desenho não correspondia ao pedido, terminou-o com um corpo e cauda de um animal quadrúpede.
O diagnóstico foi o de demência precoce catatônica.
Era esse o estado do doente pouco tempo depois de sua entrada para o Hospital. De então para cá, o quadro clínico pouco mudou, continuando a obsessão em não querer falar. A princípio, o doente era muito ordeiro, apresentando sempre uma fisionomia calma. Ultimamente, porém, e logo após uma visita da família, tem passado por um período de mau humor, tornando-se violento a ponto de esmurrar um companheiro pelo simples fato de ter-lhe esbarrado no pé.
O segundo caso é o de um homem com 48 anos, branco, católico, italiano, casado, camarada de estrada de ferro, internado no Hospital do Juquery em 3-7-1911.
Não há informações sobre seus antecedentes. Foi condenado a 6 anos de prisão por ter assassinado um companheiro.
Apresenta-se sempre em atitude de sofrimento, com a fisionomia cerrada e a fronte enrugada. Responde contrariado às perguntas, prestando poucas informações.
Não tem noção de tempo e de meio. Apresenta um delírio místico e persecutório: perseguem-no constantemente, fazendo-o sofrer toda sorte de martírios. Não respeitam seu corpo, que é divino, servem-se dele para praticar a pederastia. À noite, não o deixam dormir e sujeitam-no constantemente à pederastia passiva. Queixa-se de que não há justiça no Brasil, pelo que tenciona fazer uma reclamação ao governo da Itália.
Interrogado sobre o crime que cometeu, diz que matou a facadas um companheiro porque era um miserável que não o respeitava.
Tem alucinações cenestésicas e visuais.
Diagnóstico: demência precoce paranoide.
Esse quadro clínico, que é o que consta da observação da entrada, mudou bastante com o decorrer do tempo. Seu humor e a sua atitude em face do meio sofreram radical modificação: tornou-se ótimo trabalhador, vivendo satisfeito, em ampla liberdade. Construiu, há tempos, numa das colônias do Hospital, uma habitação extravagante, em forma de funil, feita de varas de bambu e coberta de folhas secas. Nessa habitação viviam inúmeros gatos que o doente tratava com todo carinho.
Com essa modificação de seu estado mórbido, instalou-se uma tendência a fazer desenhos decorativos, com temas estereotipados, não havendo papel que chegue para suas manifestações artísticas. Desenha figuras ornamentais em que aparecem principalmente árvores de longo caule, pássaros, serpentes, mãos, pés, punhais, revólveres, etc. (fig. 47, 48, 49). Não sabe explicar a razão desses temas.
Vamos proceder agora à descrição dessas figuras, a fim de compreendermos bem o mecanismo de sua gênese. Vejamos a fig. 47.
O quê representa esse desenho? A primeira impressão que temos é a de uma decoração assíria. As duas figuras estilizadas são de sexos diferentes. A do lado direito é de uma mulher, como se poderá bem distinguir pelo acabamento do desenho, pelas formas dos pés e pelo contorno arredondado do colo. Também a estilização da cabeça é muito mais cuidada. A ausência de perspectiva mostra o desenho de perfil e ao mesmo tempo de frente. É bastante curiosa a representação que ele dá das cabeças de suas figuras. Na totalidade de seus desenhos esse cunho individual é invariável. De um dos olhos nota-se uma lágrima que se desprende. A túnica que ele envolve as figuras está decorada em toda a sua extensão por um rendilhado de olhos à guisa de enfeite. No centro da figura da mulher vê-se um punhal do tempo dos cruzados com a sua clássica cruz e contendo em seu interior, como motivo ornamental, uma cobra hipnotizando um passarinho, símbolo este que não se cansa o artista de representar em quase todos os seus desenhos. Na figura do homem encontramos bem esquematizado esse símbolo de que acabamos de falar. Vemos também a figuração do sol e duas mãos, sendo uma delas grosseiramente desenhada. No centro das duas figuras há um disco ou escudo ornamentado, preso à coronha e ao cano de uma espingarda.
Como vimos, trata-se de um indivíduo que cometeu um crime de homicídio, em consequência do delírio persecutório, que ele já deveria ter apresentado muito antes da realização desse ato. É de supor, pois, que neste doente se tenha implantado, muito tempo antes de haver assassinado o companheiro, um delírio persecutório. A gênese desses delírios persecutórios é claramente explicada pelo professor Roxo no seu belo livro “Manual de Psiquiatria”, no capítulo de delírio sistematizado, à página 315, de que passamos a transcrever:
“Os doentes de delírio sistematizado alucinatório crônico têm, no início de seu mal, um distúrbio de cenestesia. Os doentes não se sentem bem, vivem tristes, mal humorados e muito desconfiados. Procuram viver isolados. Nada lhes dá prazer. Neste interim se desenvolve uma zoada nos ouvidos que pode ser devida a um pouco de cera, a catarro na trompa de Eustáquio, a modificações da pressão sanguínea, nos vasos dos canais semicirculares da orelha média, havendo anemia ou hiperemia, a qualquer afecção do labirinto, etc..”
“Em vez de recorrer aos cuidados de um especialista e de atribuir ao próprio ouvido o que nele se passa, começa o doente a prestar atenção demasiada aos zumbidos e a esmerilhar detalhes deles.”
“Às vezes, dizem que há um sibilo constante, ou um barulho semelhante ao de um caramujo que se lhes encostasse no ouvido, ou ao de um apito de locomotiva, ou parecido com o vento a soprar pelas frestas.”
“Começa o doente a ter como verdadeira ideia obsessiva a zoada nos ouvidos e, à força de dar a ela toda a atenção, entra a perceber que no meio daquele barulho confuso há alguma coisa que lembra a voz humana.”
“A princípio escuta sons confusos, depois sílabas destacadas, depois frases isoladas e, finalmente, expressões completas.”
“No início, não consegue reconhecer pela voz quem lhe fala, mas no fim de pouco tempo identifica perfeitamente a voz que lhe tortura os dias à de uma dada pessoa de suas relações. Sucede que as palavras que vai escutando são sempre insultosas e um delírio de perseguição se constitui de modo perfeitamente lógico e razoável.”
“A inteligência se mantém perfeitamente íntegra e, às vezes, até pode se desenvolver pela longa meditação e cultivo, no rebuscar constante da gênese dos fenômenos que sobre ele atuam.”
“No caso vertente, a base de toda ideação é falsa, porque depende de alucinações, mas, à parte isto, o silogismo é tão perfeito como em qualquer pessoa mentalmente sã.”
“Se qualquer de nós tivesse uma pessoa a nos insultar constantemente, não poderia deixar de enfurecer-se. Compreende-se, pois, muito bem, que o doente de delírio sistematizado alucinatório crônico viva irritadíssimo contra o seu suposto perseguidor e que se torne um elemento perigosíssimo para o infeliz, no qual ele alveja todo o seu rancor.”
“É uma questão de identificação de voz, e qualquer um pode ser escolhido como perseguidor. Não é necessário ser uma pessoa das relações diárias do doente: qualquer um pode ser visado.”
“Vê-se, pois, quanto é perigoso o doente de delírio sistematizado alucinatório crônico, que pode premeditar um homicídio com todas as cautelas e depois buscar justificar o seu ato, descrevendo com todos os foros de verossimilhança uma perseguição atroz que afirma lhe haver sido movida.”
“Como a inteligência persista íntegra, não há coisa alguma impossível de se realizar, no mecanismo da perseguição que descreve.”
“A perseguição vai a pouco e pouco se tornando mais acentuada e é ela sempre baseada em alucinações do ouvido que o doente está convencido de que sejam a pura expressão da realidade. A princípio, o doente experimenta a tortura do delírio persecutório e não reage. Procura evitar o convívio social, entrega-se à meditação e leva a excogitar porque o perseguem.”
“Quando chega à conclusão de que é tudo o fruto de uma perversidade e que nada fez para que merecesse este padecer, quando reconhece numa dada pessoa o autor de tudo, resolve vingar-se e tornar-se perseguidor.”
Como nesse doente atualmente tenha desaparecido o período de excitação, tornando-se calmo e inofensivo, as suas alucinações de outrora são presentemente estampadas em estereotipias gráficas girando numa única base: o móvel do crime. Assim, vê-se nas figuras 47, 48, 49 a existência de símbolos, vestígios de fatos passados na sua vida e reproduzidas dessa maneira em caráter de alucinações visuais.
O punhal e a espingarda, que ele não se esquece de colocar em todos os seus desenhos, são reminiscências do crime. A figura feminina lembra a de sua esposa. E a prova disto está na presença do anel que ele põe em todas as mãos que desenha. A lágrima corresponde ao sentimento de saudade como recordações do que se passou na sua vida. Quando lhe perguntamos se é casado, se tem mulher, se matou um companheiro, ele fica pensativo e o seu semblante toma um aspecto de tristeza, os olhos ficam umedecidos, parados, fitando-nos demoradamente. Logo aparece a defesa, tudo muda, um riso forçado desabrocha, e ele responde em seguida negativamente a todas aquelas perguntas que lhe fizemos.
A figura 48 apresenta os mesmo detalhes de imaginação que a da antecedente e por isto seria enfadonho se tornássemos a repetir a interpretação dos símbolos que, aliás, como dissemos, são sempre os mesmos. A única variante a se notar nesse desenho é o centro da composição.
Vê-se que S. é um artista decorador. A firmeza do seu traço e a vida que transborda de seus desenhos (veja principalmente a figura 49) em vista de sua avançada idade, pois atualmente ele está com 63 anos, nos causa estranha admiração. A sua arte, além de tudo, é exclusivamente simbólica.
O pensamento simbólico caracteriza a mentalidade dos primitivos, é a forma do pensamento por excelência do ser afetivo normal, (expressão artística, etc.) ou patológico (neurose, psicose); é também a forma que assume a atividade psíquica do sonho. Pode ser definido com Hesnard: uma forma do pensamento que exprime um fato afetivo, tendência, ideia emocional, etc.) pela representação dum objeto concreto, é um processo da atividade psíquica elementar inferior, que associa concretos, como sucede na criança, no selvagem, etc. (1)
O abuso dos símbolos, na manifestação externa do pensamento, faz lembrar (2), diz muito acertadamente Lopes Cardoso, que o espírito dos alienados sofre uma regressão atavística às épocas pré-históricas da humanidade. Tal regressão é ainda indicada, continua esse autor, por outros fatos, tais como a mímica espantosa nos mais insignificantes detalhes de qualquer quadro e na falta absoluta de perspectiva.
Como se vê, as manifestações artísticas que esses doentes estereotipam correspondem exatamente aos símbolos freudianos, podendo ter para a interpretação o mesmo valor das manifestações oníricas. De acordo com os dados psicanalíticos, elas nos revelam que as ideias sexuais estão dominando a vida afetiva do paciente, realçando desse modo, no ponto de vista da formação dos sintomas, a importância que pode ter o seu passado amoroso.
É muito interessante a contribuição que a psicanálise tem trazido ao conhecimento do conteúdo psicológico da demência precoce. Assim, os psiquiatras da escola de Zurich, que são os que mais têm estudado o assunto, afirmam que os esquizofrênicos alimentam uma atividade psíquica considerável, atividade essa que obedece a leis comparáveis ao sonho normal. Voltados para dentro de si próprios, mergulhados no seu “autismo”, são como sonhadores que vivessem aparentemente uma vida desperta, mas que conservassem seu espírito entregue a uma espécie de sonho prolongado. Nos casos de obsessão em não querer falar, como é o de nossa primeira observação, os doentes se defendem, por essa forma negativista, contra as solicitações que tendem a reconduzi-los ao mundo real e privá-los da grande harmonia de belezas que os envolve.  
Desse modo, como, além de seu conteúdo manifesto, o sonho nos apresenta um conteúdo latente, feito dos anseios e dos temores inconscientes, assim também na demência precoce, por trás da aparente anarquia do pensamento, pode-se muitas  vezes descobrir o nódulo afetivo que determina o quadro sintomático. Como quaisquer outros sintomas, as estereotipias, à primeira vista destituídas de sentido, podem conter uma ideia de alta significação simbólica, presa ao conteúdo latente da psicose. Jung nos conta, por exemplo (1*), o caso de uma velha demente do asilo de Burghölzli, que durante largo tempo não cansou de produzir enormes calos, fazia gestos estereotipados como os de sapateiro que costurasse botinas. Depois de sua morte soube-se por informações de um parente que viera ao enterro que a doente tivera um desgosto amoroso antes de adoecer e que o herói desse romance fora um sapateiro.  .
A nossa afirmação, de que a estereotipia gráfica de nossos doentes é da mesma natureza psicológica que os sonhos de conteúdo sexual de Freud, parece à primeira vista absurda para aqueles que não conhecem a doutrina do mestre de Viena. Quem esteja, porém, familiarizado com os estudos psicanalíticos, vê nas duas manifestações psíquicas a expressão do mesmo processo simbólico de atividade mental, que é um meio elementar e sintético de representação, peculiar à criança e ao homem primitivo.

1 – E. de Vasconcelos – Lições de psicologia geral, pag. 351. Lisboa, 1925. Guimarães et Cie.
2 – Lopes Cardoso – Gênio e Loucura.
1* - Jung. – Der Inhalt der Psychose. 




sábado, 12 de janeiro de 2013

Capítulo 1 – Parte 13 – A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

No terceiro grupo estão enquadradas todas as artes descritas no segundo grupo e mais a pintura. Aqui, a arte dos alienados é uma arte normal, bem equilibrada e por isto mesmo sem grande interesse para o nosso estudo a não ser tocante a um ou outro ponto de concepção original que ela possa ter (figs. 36, 37, 38, 39, 40). Por isto, comparamos as manifestações artísticas dos alienados que pertencem a esse grupo, com a arte comum, a arte acadêmica.

Vejamos a observação de um doente do Hospital do Juquery, autor dos trabalhos escultóricos que acabamos de citar.
 C., masculino, 49 anos de idade, branco, entalhador, solteiro, austríaco, entrou no Hospital em 1 de maio de 1923.
As informações, algumas fornecidas por uma irmã do observado e outras do próprio doente, são imprecisas e não oferecem dados suficientes para uma boa anamnese.

O exame da reflectibilidade denota: exaltação acentuada dos tendinosos; o pupilar tem boa reação; não se verifica desigualdade pupilar; há exagerada sensibilidade cutânea. Apresenta tremores das mãos e da língua estendidas; a abóbada palatina é larga e chata; a úvula apresenta-se ligeiramente desviada para a esquerda. Seus dentes são estragados e falhos. Apresenta também uma ponta de hérnia do lado esquerdo da região inguinal. Não traz vícios de conformação adquiridos ou congênitos. Sua atitude, seu modo de alimentar-se, de andar, os gestos, são normais. Tem sono tranquilo. É asseado. Boa compleição física. Exame mental: alguma instrução preliminar. Expressa-se muito mal em português; é difícil fazer-se entender; compreende, no entanto, as nossas interpelações e pratica com acerto, denunciando integridade de atenção, certas operações matemáticas e alguns desenhos da sua especialidade. Refere com boa memória alguns fatos de sua vida passada. Sua dissertação, algo incompreensível e por vezes confusa, exterioriza o delírio persecutório a que se refere a irmã em uma carta dirigida a nós. Não se conhece e o doente não informa como teve início a psicose de que está acometido. Foi isto aos 24 anos de idade e forçou-lhe a internação por seis anos. Deste hospício saiu aparentemente curado, tendo vindo para o Brasil há 10 anos. Durante o tempo decorrido de 1914 até o de 1920 conservou-se calmo, trabalhador e gentil para a família. De 3 anos para cá tem apresentado períodos de excitação sucedidos de uma remissão também passageira. Há 2 anos perdeu a mãe; o abalo moral provocou-lhe “acessos nervosos” (informações da irmã) mais violentos, revelando-se o delírio de perseguição que lhe permite ver na irmã a assassina de sua mãe e um grande perigo para a sua (dele) integridade física. Prometia insistentemente a exterminação de sua irmã (perseguido-perseguidor) a quem acusava também de haver desrespeitado sua mulher. Vê-se nisto, patentemente, o delírio persecutório, pois o observado é solteiro. Ultimamente apresentava uma verdadeira obsessão pelo jogo de xadrez, a cujos problemas se dedicava dias e dias; mas, interrompido por alguém que lhe solicitasse qualquer serviço, “fazia-o de boa vontade e bem feito”. Mais tarde a insônia e terrores noturnos: “tinha sonhos terrificantes – gritava muito, sendo preciso que se o acordasse” – informa a irmã. Diz o doente que abusava de bebidas alcoólicas.

Não é bem típico o quadro deste doente; pensamos, no entanto em classifica-lo entre os casos de delírio sistematizado alucinatório crônico.

A arte deste doente pode-se considerar como uma arte realista acadêmica, fazendo parte, por isto, do terceiro grupo da nossa classificação das artes nos alienados (veja página 6). A figura 36 representa um busto modelado com massa de pão. É bem curiosa a expressão fisionômica da cabeça. A técnica é apreciável e é de notar a extraordinária semelhança que esse busto apresenta com a imagem do autor. Achamos uma certa liberdade na confecção desse trabalho, que é o melhor da coleção que possuímos desse artista e que difere inteiramente dos outros trabalhos feitos posteriormente. Vejamos a figura 37; é uma estátua de barro e cimento. Aqui o artista empregou uma outra técnica na confecção da obra; a expressão do rosto é um pouco dura e não há uniformidade na disposição dos membros. Os braços são muito longos e as mãos pessimamente modeladas. Da mesma maneira se mostram as pernas. Enfim, essa escultura apresenta uma outra tendência artística do autor, que se aproxima sensivelmente da arte egípcia. A figura 38 apresenta também os caracteres escultóricos da figura 37. Esse busto, modelado em barro e cimento, possui uma expressão escultórica relativamente boa. Há alguma semelhança com os bustos romanos. A figura 39, “Cristo crucificado”, apesar de ter sido modelada com a mesma técnica da obra anterior, apresenta vários defeitos tanto na confecção e nas proporções da figura quanto na perspectiva. Notamos que a fisionomia do Cristo é calma e não aparenta nenhuma alteração de sofrimento. Os músculos não dão sinal de vida; nenhuma contratura se observa como sinal de dor.
As obras desse alienado artista apresentam, como vimos, várias formas de sentimento estético. Não há um caráter definido de individualidade neste artista. Ora ele faz trabalhos realistas, expressivos, que nos causam admiração, como o da fig. 36, ora ele se dirige, com uma técnica grosseira, para a escultura arcaica, como a das figuras 37 e 38. Ora a sua arte tem as características da arte greco-romana, como a representada pela figura 40. Não encontramos estereotipias e nem extravagâncias de imaginação nas suas produções artísticas. A múltipla individualidade escultórica desse doente não deixa, entretanto, de nos interessar, já pela simplicidade de sua confecção, ou seja pela presença de autocrítica que ele sempre demonstrou ter na realização de suas obras.