Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Capítulo 1 – Parte 10 – A expressão artística nos alienados


...continuação do texto...

Confrontando-se, por exemplo, a escultura reproduzida na figura 31, arte de um africano (1), com a escultura da figura 50, arte de um demente paranoide, ver-se-á um idêntico princípio, uma estreita afinidade estética plasmada nessas duas artes.
O sentido da forma que o artista africano altera para nossos olhos, entalhando na madeira ou esculpindo na pedra suas estátuas com músculos deformados, é para a visão dele uma atitude estética natural. A sua arte não tem regras, não tem dogmas que a escravize. É sentimento que respira acima de tudo. É estranho realismo subjetivado. Por isso o artista somente compreende a beleza nesse modo representativo de deformidades. E, com a mesma mentalidade do artista africano, também julga a beleza o paranoide artista, quando modela em barro a sua estátua de fisionomia extravagante e de membros desproporcionados. Para esses artistas independentes, a arte representa a sublimação de um pensamento, de um ideal, materializado simbolicamente num pedaço de madeira ou num bloco de argila.
Os desenhos de animais têm todos uma feição grotesca e são estilizados com riscos paralelos e linhas quebradas, que lhes dão um cunho especial (fig. 33, 34). Esses desenhos mostram algumas analogias com os dos índios atuais do Brasil.
“Os desenhos dos índios da serra do Norte”, diz Roquette Pinto (Rondônia, pag, 258), “embora elementar, já apresentam alguns motivos interessantes, tirados da imitação das formas animais”.
“A circunferência, o triângulo, o quadrado aparecem desenhados em negro na superfície de algumas cuias”.
“Cobras e sáurios acham-se, às vezes, representados nos seus traços essenciais”.

Nota do texto:
1 – A escultura africana, pela sua naturalidade impressionista, tem sido modernamente motivo de real admiração por parte de muitos autores:
“...la sculpture africane”, diz Einstein (La Sculpture Africane. Trad. Franç. Pag.7, Paris, 1922), “presente des solutions cubiques d’une purété et d’une logique qu’on trouve rarement ailleurs. Elle cherche à résoudre les problèmes de concentration et de liason dans l’espace, et c’est de la sculpture égyptienne qu’elle as rapproche le plus dans à domaine”.
Como a arte egipciana, a arte africana, diz ainda o mesmo autor (obra cit. pag. 13), tem suas raízes no culto dos mortos, - o culto dos antepassados. A religião é o elemento preponderante de toda a produção artística dos negros.
A arte dos primitivos apresenta nos nossos tempos uma significação intelectual muito elevada. Ela tem sido a fonte de todo esse novo movimento escultórico da arte moderna. E tanto é assim que alguns críticos de arte não consideram mais a arte africana como sendo uma arte primitiva. Einstein, no seu livro citado, à pag. 8, se exprime deste modo a esse respeito:
“...l’art africaine nous révèle des nuances tout aussi finement marquees, et il faut pas se laisser induire en erreur par cette stéreotypée: l’art primitif des peuples sauvages”.

Comentários sobre o texto: 
1 - observa-se nessa menção bibliográfica de Osório Cesar já uma tendência, em 1922 (data da referência), de deixar-se de considerar a arte de povos nativos, de regiões tidas como selvagens, como uma arte “primitiva”.
2 - o autor "Einstein" mencionado na bibliografia é Carl Einstein (1885-1940), crítico de arte e estudioso de história da arte alemão que conviveu com importantes artistas e estudiosos da arte do início do século XX. Foi grande estudioso da arte africana. Aderiu a tendências políticas de esquerda europeias de seu tempo.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Capítulo 1 - Parte 9 - A expressão artística nos alienados

...continuação do texto...

No segundo grupo de nossa classificação estão os desenhos, as esculturas, as poesias, as músicas e as danças. As artes deste grupo poderemos comparar, dadas as semelhanças flagrantes que notamos nas suas confecções, com as artes primitivas, como sejam as dos índios de Marajó (1), as japonesas, as do século XII, a gótica e as dos negros centro-africanos (figuras 22 a 31).

Correspondente ao número (1) do texto há uma longa nota que segue abaixo:

1-
Na sua viagem ao Amazonas, em 1879, professor Hardt (Archivos do Museu Nacional. Vol. VI, 1885. "A origem da arte ou a evolução da ornamentação", pag. 95) teve conhecimento de que, numa pequena ilha chamada Pacoval, no lago Arary, situada na ilha de Marajó, existia um Túmulo dos antigos habitantes do lugar.
Examinando o Túmulo, dele se retiraram urnas funerárias, ídolos e outros objetos de terra cozida. “Muitos destes objetos”, diz o professor Hardt, “traziam ornamentos e fiquei realmente surpreendido ao ver nesta antiga louça amazônica, gregas espirais e outros ornamentos perfeitamente idênticos a algumas formas clássicas e da Grécia. O túmulo era antigo e a associação de objetos que continha, concordando com o que se acha nos túmulos norte-americanos, não oferece prova nenhuma de que os fabricantes de louça do Pacoval conheciam a arte na Europa”.
“Continuando as minhas investigações”, prossegue Hardt, “descobri que estes mesmos ornamentos se acham distribuídos por todo o mundo, mesmo entre povos de uma cultura muito baixa, e que formam parte da arte primitiva. Lembrei-me de que o homem em todo o mundo, tendo a mesma organização física e estando em contato com a mesma natureza, desenvolve-se segundo as mesmas leis, e que armas, invenções, modos de pensar, regras de construção das línguas, até mitos e ideias religiosas facilmente se desenvolvem independentemente entre povos longínquos. As necessidades do homem primitivo em todos os países são as mesmas, e é perfeitamente natural empregar independentemente métodos idênticos de satisfazê-los”.
Hardt encontrou na louça dos antigos índios de Marajó uma forma decorativa grega de um dos mais belos ornatos estéticos conhecidos, que se acha espalhado em todo o mundo. E até hoje, sustenta este autor, dentro das matas do Amazonas e do Orenoco, as mulheres gostam de pintá-lo nos seus “Camutis”. Também se encontra, comumente, nas louças dos índios do Brasil e do Peru, um desenho ornamental característico dos vasos Etruscos.
Uma das coisas que mais nos chamam a atenção na arte dos primitivos selvagens do Brasil é a ausência completa de ornamentações vegetais. Assim, nos utensílios encontrados em Marajó, os temas de estilizações estéticas são exclusivamente tomados do reino animal.
“É fato interessante que”, diz Hardt (obra cit.pag. 107), “ao passo que o homem e diversos animais são representados em relevo na louça de Marajó, é raro que sejam desenhados sobre uma superfície plana. A artista índia sabia bem a arte de modelar e era perita na ornamentação por meio de linhas simples, mas não se tinha adiantado na arte imitativa do desenho. Nenhuma folha, flor ou fruto é representado na louça antiga do Amazonas ou em relevo ou sobre uma superfície plana. Parece singular que, habitando uma região em que o reino vegetal oferece formas belas, o artista não escolhesse nenhuma destas para a ornamentação”.
Também estudaram a arte de Marajó, Ferreira Penna, Derbey e Ladislau Netto (Archivos do Museu Nacional. Vol. VI, 1885. “Investigações sobre a Archeologia Brasileira, pag. 317).
“Entre as preciosidades que havemos exumado”, diz Ladislau Netto, “os Snrs. Ferreira Penna e Derby, a princípio, e eu por último, do solo de Marajó, sobressaem algumas figuras de terra cotta, que nada mais nem menos são, segundo presumo, que os deuses penates dos construtores dos mundos daquela ilha; imagens que adoravam também os índios do Maranhão, de Pernambuco e de outras províncias do Brasil, assim como muitos outros povos da América. São estatuetas a que, na falta de melhor nome dei o nome de ídolos. Representam homens e mulheres, mas raras vezes sem alguma particularidade convencional, uma monstruosidade qualquer, ou na deformação da cabeça e da face, ou na supressão dos braços e pernas ou nas protuberâncias dorsais e torácicas próprias dos corcundas”. E mais adiante continua: “A estatueta mais distinta e ao mesmo tempo mais expressiva desta espécie, é a que figura uma espécie de polichinelo, de fisionomia chinesa, com a dupla tuberância torácica e dorsal do corcundismo. Esta estatueta, que eu mesmo desenhei sobre o bloco de madeira em que devia ser gravada, a fim de conservar-lhe todos os seus traços característicos, é um primor de expressão e de naturalidade, ainda que me pareça muito difícil afirmar se as saliências que aí figurei por malares assim devem ser considerados ou por olhos com mais razão havida (obra cit. Pag. 324)”.   
As representações zoomorfas na arte dos antigos habitantes de Marajó são mais bem estilizadas e de uma beleza esquisita. A reprodução que damos aqui (veja fig. 21) apresenta uma curiosa idealização zoomorfa, com dupla cabeça e dualidade simulada no próprio corpo do animal metaforicamente figurado.
“Este animal emblemático e um tanto enigmático”, diz Ladislau Netto, tem alguma coisa que relembra o símbolo chinês cheu ou chi, imagem da longevidade, a qual, segundo tradições e livros sagrados da China, foi criada ou inventada pelo famoso Fo-Hi, o Faramundo chinês a quem se deve a organização política do Celeste Império, cerca de 3.000 anos antes da era cristã e a quem esse símbolo divino, conforme o dizer das lendas asiáticas, foi revelado por um cavalo sagrado (obra cit. Pag. 244)”.
Como vimos, é por demais curiosa a semelhança das decorações desses objetos da arte cerâmica dos antigos índios do Brasil com as decorações e relevos das arte orientais e primitivas de toda a Europa. Na maioria dos vasos de Pacoval, estudados por Ladislau Netto, encontramos emblemas gravados exteriormente, que nos lembram motivos jônicos e também um pouco do misticismo Báltico. Isto nos faz pensar com a maioria dos autores, que os primeiros habitantes do Continente Americano foram representantes de uma raça desconhecida, emigrada do velho mundo, cujo sentimento artístico, muito desenvolvido, deixou traços patentes de sua passagem no Continente, como prova a arte antiga de Marajó. Essa gente, que mostra haver formado uma civilização adiantada – haja vista os monumentos do antigo México – desapareceu sem se saber como.
Henry Schoolcraft (Historial and statistical information, respecting the history, traditions and prospects of the Indian Tribus of the United States. Philadelphia, ano) considera os indígenas Americanos como destroços ou restos de diferentes raças, o que até certo ponto justifica, no dizer dele, as tradições dos povos americanos, que os representam vindos por mar para a América.
Quanto à veracidade deste pensar, até a presente data, ainda não estamos bem aparelhados, ou melhor, suficientemente armados para desvendarmos o mistério que ainda nos envolve. Entretanto, não parece de toda destituída de fundamento a hipótese de Schoolcraft.