Osório César foi um dos primeiros psiquiatras brasileiros interessado em estudar a arte produzida por pacientes psiquiátricos, tendo iniciado esses estudos nos anos 1920 no Hospital do Juquery. Seu nome e seus trabalhos estão quase esquecidos. Este blog procura divulgá-los.

domingo, 16 de setembro de 2018

Capítulo 6 – Parte 6 – A Expressão Artística nos Alienados


...continuação do texto de Osório César. Sempre observamos que se trata de Psiquiatria dos anos 1920...

     O caso que vamos relatar aqui é curioso por se tratar de um indivíduo que desenha regularmente, conhece música, faz versos e toca bem violão.
     Vejamos a sua história psiquiátrica:

     M.R.(1), 20 anos, branco, solteiro, brasileiro. Entrado no Hospital de Juquery em 15 de maio de 1924.
     De seu balanço genealógico, sabe-se que seu avô materno foi alienado.
     As primeiras perturbações mentais foram observadas em fins de 1923; esse primeiro desequilíbrio durou 2 meses, voltando o doente à calma, subitamente, para de novo mostrar-se agitado, turbulento, perigoso, cometendo uma longa série de atos desatinados e destruidores, em fevereiro deste ano. Sua infância correu sem graves acidentes de saúde; seu desenvolvimento físico e psíquico foram normais; seu espírito foi lúcido, de inteligência muito viva, observação meticulosa, atenção pronta, de grande atividade física e psíquica, mas sempre de gênio inquieto, sem perseverança, quase sem espírito crítico, a sua mocidade tem sido movimentada, rica de atos extravagantes e excêntricos; arquiteta grande número de planos de vida por um prisma de otimismo e confiança; quase todos os seus atos são precipitados, e os seus conceitos são inconsequentes. As suas narrativas são vivas, denunciando grande jogo de imaginação; a sua memória é exaltada, recorda-se com facilidade e precisão de imagens remotas, nomes, datas, etc. A associação das ideias é perfeitamente regular, sem exposição precipitada e confusa; responde a tudo com extrema facilidade e precisão; seu espírito é lúcido e bem orientado no tempo e no espaço. Seus conceitos são lógicos, bem encadeados, mas não são razoáveis no maior número das vezes, pela falência da faculdade de crítica que inibe qualquer ponderação justa. Os seus atos também tornam-se extraordinários e extravagantes pela mesma falta do juízo crítico; para o doente tudo o que faz é natural e perfeitamente racional. Muito habilidoso, e com desenvolvido sentimento artístico, toca admiravelmente violão e desenha com perfeição; observa-se um fato muito interessante quando toca violão; em meio de qualquer música de execução difícil, ele enxerta variações de sua própria imaginação, de incrível beleza e ritmo de notável originalidade. De agitação motora moderada, o doente é um contínuo inquieto, passa os dias em plena atividade, preocupando-se com tudo que afeta a sua atenção, sempre muito pronta ao serviço de sua observação muito viva, mas sempre muito inconstante. O doente é inquieto, mas as suas atitudes são normais, não há maneirismo, estereotipias, etc. O seu humor é alegre e expansivo, é delicado e obediente; mas algumas vezes torna-se exaltado e mesmo violento. Não apresenta delírio e nem perturbações perceptivas. O seu sono é tranquilo e prolongado. Não observamos grandes alterações de sua emotividade. Sentimentos éticos presentes, sem baixa e nem perversões; as suas aflições são moderadas, e guarda atitude normal para com a sociedade; não pratica atos imorais e nem pronuncia termos obscenos. Fala corretamente, sem dificuldades de articulação, a sua dicção é ótima. Marcha firme e bem orientada, todos os seus movimentos voluntários são bem coordenados.
     Diagnóstico: Loucura Moral. Excitação maníaca.

     Nesse doente, a manifestação artística se observa sob vários aspectos: desenho, pintura, música e poesia. Possuímos grande coleção de desenhos de M. Quase todos esses desenhos são de caráter obsceno. Exceção de uma meia dúzia deles, cenas caricaturais, humorísticas, que lhe revelam senso artístico acurado para essa disciplina.
     A fig. 78, por exemplo, é uma composição bem curiosa. Representa um “caipira” fumando cigarro. Fisionomia expressiva, sombreado inteligentemente cuidado e atitude otimamente compreendida, dão a essa figura a realidade do tipo estudado.
     A fig. 79 é um desenho de um busto de mulher mostrado de perfil. Afora alguns exageros de proporção, como no pescoço e na parte superior do dorso, o desenho é bom. Nota-se que a preocupação maior do autor foi a de acentuar nessa figura a forma dos seios, imprimindo-lhes um tanto de sensualidade.
     A fig. 80 é um desenho defeituoso, desproporcionado e de caráter lascivo. Se bem que estejam nessa figura os caracteres sexuais femininos notadamente marcados, entretanto observa-se nela qualquer coisa de andrógino, tal a masculinidade do tórax e do pescoço e também a expressão da cabeça. Nesse nu que não é artístico o autor só se preocupou em realçar com mais luxúria do que nas figuras anteriores, as zonas erógenas do sexo feminino.
     A fig. 81 representa um indivíduo sentado onanizando-se. A composição é bem feita.
     No desenho da fig. 82, o caráter dominante é a obscenidade. São dois indivíduos em atitude sexual. Desenho mal feito.
     Aqui está, pois, um caso bem curioso. Esse doente, que conserva no Hospital sentimentos éticos, atitudes normais perante os seus camaradas e não pratica atos indecentes, no entanto desenha grande número de quadros francamente obscenos.    

1 – Dos Archivos Psychiatricos do Hospital do Juquery. Anno 1924.