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Vários autores têm classificado a arte dos alienados em
diversos grupos diferentes, segundo o estado mental de cada um.
M. Pailhas (d’Albi) (1), tratando das artes nos alienados,
distinguiu 5 modalidades diferentes, que classificou da seguinte maneira:
1) – Dos degenerados com mentalidade débil e geralmente mais
pervertida do que delirante. Entre eles, encontram-se as tatuagens, as pinturas
sobre os muros, etc., cuja composição, ordinariamente muito vulgar,
frequentemente obscura, se limita a traduzir tendências desregradas, orgulho,
erotismo, misticismo, etc..
2) – Dos loucos circulares no período de exaltação. Alguns
desses doentes, dotados de educação geral e de certas aptidões artísticas
anteriores, algumas vezes fazem obras extraordinárias e especialmente originais
quanto ao sentido e à forma.
3) – Dos maníacos, entre os quais a veia artística se mostra
submissa aos processos intermitentes, qualquer que seja a aparente continuidade
do delírio. Mais do que no outro caso, a composição traz aqui a impressão desse
delírio. Frequentemente, a originalidade das concepções e a habilidade da
execução permitem excluir a demência, pelo menos nos graus avançados.
4) – Das demências constituídas. Aqui se acusa manifestamente
uma volta para a arte infantil, para as estereotipias, as composições
deformadas, incoerentes e hieroglíficas. Isto se verifica por acaso e desde que
o doente seja um profissional ou um prático da arte, produzindo obras de algum
valor, graças ao exercício automático das aptidões antigas.
5) – Das demências precoces e paralíticas, nos períodos de
exaltação iniciais.
Réja (2) classifica, assim, em três grupos as obras de arte
dos loucos que nunca produziram antes da moléstia:
1) Obras que denunciam uma desagregação mental, caracterizada por um automatismo quase
puro.
2) Obras onde se encontra contida uma emoção ou uma ideia.
3) Obras onde se encontra contida uma emoção ou uma ideia com um cuidado de
análise literária.
No primeiro grupo estão as obras que os doentes compõem e que
são simplesmente reminiscências e coisas lidas e ouvidas antigamente de outros
autores e retidas na memória, reveladas agora, desordenadamente, em verso ou em
prosa, apresentando estilo extravagante, em certos casos originais,
acompanhadas, às vezes, de conceitos pessoais.
Como exemplo dos escritos desse grupo vamos ver, mais
adiante, os versos de um demente precoce paranoide, criminoso, compostos
durante a sua estada na Penitenciária.
Em primeiro lugar contemos a história de sua doença:
A. (3), 35 anos, brasileiro, pardo, internado na Penitenciária em 28 de
Março de 1922 por homicídio, condenado a 15 anos. Na observação feita pelo Dr.
José de Moraes Mello, durante o tempo que o doente esteve na Penitenciária,
consta o seguinte:
Exame somático: Bem posto no uniforme, arrogante, inquiridor, sem gestos.
Assimetria craniana. Sensibilidade, marcha e movimentos normais. Reflexos
normais. Não há disartrias.
Filho de pais lavradores, analfabetos e alcoólatras. A. nasceu nos
sertões da Paraíba do Norte, Lagoa Grande, aos 15 de Agosto de 1890.
Anamnese: Frequentou durante 3 anos escola primária, mal viveu com os
seus até os dezoito anos, e nessa idade abandonou-os, fugindo para Pernambuco,
onde, em 1915, angariaram-no para a Marinha de Guerra; foi, diz ele (o Estado
Maior da Armada infirma a alegação), Marinheiro Nacional e praça do Regimento
de Fuzileiros Navais até 1918, quando teve baixa. Transferiu-se então para São
Paulo, Presidente Alves, onde, como trabalhador braçal, viveu até ser preso aos
14 de Setembro de 1919, por homicídio. Processado, foi condenado a quinze anos
de prisão, entrando na Penitenciária aos 28 de Março de 1922.
Como antecedentes mórbidos acusa sarampo, gripe e gonorreia. Era
alcoólatra e fumante.
Exame psíquico: Cultura rudimentar que o evolver da vida enriqueceu de
conhecimentos e coisas várias, uns e outros mal compreendidos e deturpados; a
ideação, que um narcisismo moral e intelectual condiciona, é de uma riqueza de
belquior, feita de recordações fragmentadas, mal sabidas e truncadas, ditas com
ênfase tola e gesticulação imprópria, e escritas em grafia horrível, sob
incansável e irreprimível impulsão; a orientação, no tempo e no espaço, é
perfeita e a memória boa e pronta, embora fornida de uma provisão mal adquirida
de lembranças, recordações que ele aproveita, quer em prosa cheia de
impropriedades e de impenetráveis sentenças, quer versejando a seu modo, mas
conservando, através de todos os tropeços e tolices, a cadência dos cânticos
populares”.
Termina o Dr. Moraes Mello diagnosticando esse caso como o de
uma síndrome paranoide.
No Hospital do Juquery o doente foi examinado durante alguns
meses pelo Dr. Mário de Gouvêa, cuja observação psiquiátrica passamos a
relatar:
Removido A. da Penitenciária,
porque o doutor clínico daquele presídio encontrou na dedução diagnóstica uma
síndrome paranoide. Chegou a essa conclusão porque viu no quadro mórbido um
delírio persecutório, o raciocínio repousado em bases falsas, a egolatria, um
temperamento violento e a inadaptação ao regime da Casa. Documentando a sua bem
cuidada observação aparecem versos assinados pelo doente, porém, evidentemente,
muitos não são mais que reminiscências de leituras antigas; uma cópia de uma
carta que o nosso observando endereçou ao Dr. Pisa dá ideia mais exata do
estado mental que justificou o pedido de remoção. Aí está patente um delírio
que não é fixo e repousa sobre ilusões e alucinações, que ele descreve sem
rebuços: “desejava falar pessoalmente com Vossa Excelência porque é certo que
sonhei com coisas importantes para a ordem pública: descobri os processos de
uma revolução em vista para ser posta em prática. Fui traído pela turma de
bandidos lá do Hospital. Outros vêm pelo subterrâneo, que tem por baixo da
Penitenciária, me atormentar com o fim de eu não confessar as ideias
religiosas. Devo confessar que sou atormentado noite e dia; estas linhas são
escritas em baixo com tormentos. Peço respeitosamente a Vossa Excelência me
mande tirar desta cela que está ‘enroscada’... Os doutores do Hospital com
procedimento incorreto dizem a Vossa Excelência que eu estou ‘cozando’ das
faculdades mentais a fim de prejudicar os meus ‘reitos’, venho dizer que foi ‘um
espírito’ que ‘dilou-me lados linha”.
Conta-nos ainda que
agrediu, por uma simples observação, a um mestre da oficina, que em 1919 matou
estupidamente uma mulher porque repeliu uma proposta imoral.
A nossa observação
confirma a síndrome paranoide do nosso colega.
De fato, A. pensa como
lhe consente o seu caráter: é – no dizer expressivo de Franco da Rocha –
através de uma lente deformada que ele vê e interpreta o mundo. Ouçamo-lo:
- Mas afinal, A. porque
estás aqui? Qual foi o teu crime?
- Sr. Doutor. A
sociedade mandou me prender julgando que eu a estava ofendendo em alguma coisa.
Sou, desde pequeno, um perseguido desde 9 anos não sei que é família...
separado dela; se apanho um dinheiro, vou para o jogo, perco; vou na venda,
bebo; vou parar na Cadeia... Tenho necessidade, roubo... e a Sociedade entende,
ainda por cima, que eu a estou ofendendo...
- Mas, A., então achas
direito roubar?
- Mas se eu tenho fome,
não hei de roubar? Depois, seu Doutor, eu roubo sempre com muita justiça: nunca
deixo o outro desprevenido...
- Queres dizer que só
roubas os ricos?
- Certo; não vou roubar
quem não tem...
Desconfiança, ousadia, egocentrismo, delírio ambicioso, sem
fixidez, tudo isso observamos aqui e são elementos que falam a favor da "síndrome paranoide". É frequente contar bravatas aos companheiros, dizer que é "doutor",
que tem muito dinheiro, falar em 152 mil contos que o Dr. Jerônimo Monteiro
mandou depositar no Banco de Londres em nome dele, A... Escreve versos e lê, muito "convencido" dos seus "dotes literários".
Notas de Osório César:
1 – Projet de création d’um musée reservé aux manifestations
artistiques des alienés. L’Encephale. Deuxième semestre, 1908, pag. 426.
2 – M. Réja.
L’Art chez les fous, pag. 116. Ed. Mercure de France. Paris, 1917.
3 – Archivo psychiatrico do Hospital de Juquery. Anno 1926.