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texto...
(subtítulo: História Psiquiátrica de um doente com Delírio
Místico – Poemas Parabólicos com Interpretação do autor)
Essa é a história que V. conta de sua vida, desde os tempos
escolares até a sua entrada neste Hospital. Muitos dos fatos relatados aí são
verdadeiros, porém percebemos logo que, de vez em quando, a sua imaginação
descamba em delírios místicos, fantásticos, como sejam:
“Dez dias depois,
quando fui fazer uma visita ao ‘meu altar-mor’, domingo, enxerguei um coração
luzente e em cima dele jazia uma cruz também luzente, entrelaçado por uma coroa
de espinhos cheia de luz como a do sol, envoltas por uma chama de Fogo
vivíssima, enfim próximo ao vulto luminoso nele residente”.
São ideias delirantes sobre um fundo místico erótico.
Apreciemos agora a Lenda indiana, uma das mais curiosas
produções, escrita em 26 de Abril de 1925. É um poema em prosa, composto em
estilo bíblico, sob forma de parábola; é um episódio real de sua vida, contado
através de símbolos. Ele próprio nos dá a significação dos períodos simbólicos
do poema.
Lenda Indiana
“O grêmio triunfante (1) é semelhante a um menino sedento da
genialidade (2) alipotente de Arquimedes que procurava a base da lei de um
mistério profundo; e tendo concebido o plano do enigma, no momento supremo e
sacrossanto da Sublimidade das sublimidades, cento e vinte minutos depois do
meio-dia, conquistava enfim, o seu sonho acrisolado de mil e uma noites.
Decorrido o mesmíssimo tempo de harmonia da preparação gloriosa de algures em
Jericó, sem estar banhado em algo dos eflúvios do terceiro Selo do profeta
Daniel, recebia finalmente, no palácio da Ventura, um ente de bondade e ciência
intérminas – ‘abrirei em palavras a minha boca, e publicarei coisas escondidas
desde a criação’”(3).
“Os miríades e miríades de edifícios mais brilhantes do que o
sol lá daquele grêmio triunfante, oh desde a hora sexta até a nona, perderam as
suas brilhosidades infinitas, e, cobriram-se então do manto diáfano do Luto,
chorando e gemendo noite e dia, andava um anjo, contemplando o panorama da
destruição da Cidade Santa” (4).
“Trinta e nove dias depois recebia de novo o hóspede misterioso,
no palácio da Ventura, - ‘Destruirei a sabedoria dos sábios, e o entendimento
dos entendidos reduzirei a nada’” (5).
“Decorridos mais de dez dias depois pela terceira vez no
palácio da Ventura, recebia então o Hóspede misterioso, - ‘Este povo honra-me
com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; adora-me, porém, em vão
ensinando doutrinas que são preceitos de homens’” (6).
“Finalmente, no oitavo dia, pela última vez em sua amena
existência, recebia no palácio da Ventura o Hóspede misterioso; - ‘Disse o
Senhor ao meu Senhor: senta-te à minha direita, até que ponha os teus inimigos
por escabelo dos teus pés’” (7).
“Trinta e três dias antes da memorável descoberta
arquimediana, fora então solenemente, no local onde estava genuflexo o menino,
o qual, contemplava ali o Hóspede misterioso, a promessa sagrada, porém, ao
lado esquerdo daquela glória alipotente, jazia também genuflexa, no aspecto
solene da humanidade, ‘ad majorem Dei gloriam...’” (8).
“Sete anos depois no mesmíssimo dia memorável e sacrossanto
como o Leão de Jessé, finalmente, era então assentado o primeiro plano do
Pentalago de Ouro fino; e quatro dias depois a segunda misticidade
arquimediana, oh onze estrelas pulcras , acolá naquele gabinete eliano, no décimo
primeiro ano do século presente, no coração da trilogia branca como a neve,
emula convincente e bem refratária de Sidon!!! Hosana ao filho de David!
Benedito aquele que vem em nome do Senhor” (9).
“Três vezes cairão os soldados surdos e mudos (10)...! Aonde
está a glória moiseana, que servira de instrumento para a receptividade do
Hexlago de Ouro Fino!?! Quem tem ouvidos para ouvir, ouça a verdade. Aonde está
a glória eliana, que servira de instrumento para a receptividade do Pentalago
de Ouro fino!?! (11)”.
“Eu sou a incógnita sublime da lei newtoniana, ‘a pedra que
os edificadores rejeitaram, essa foi posta como a pedra angular; isto foi feito
pelo Senhor, e é maravilhoso aos nossos olhos?’ (12)”.
“No septuagésimo oitavo dia do ano santo da graça áurea da
comemoratividade solene da maior glória paraclítica, um Apóstolo irmão gêmeo do
Rei da Siracusa, assentava, enfim, o primeiro plano da glória sempiterna do
Desejado de todas as nações e essa égide sacrossanta é o Moisés moderno de
ambos os Testamentos Evangélicos” (13).
“Vem agora pela presente missiva um eflúvio paraclítico
diante da gloriosa figura galênica (14) apresentar-lhe ovante de ufania, a
chave do enigma dos quatro fundamentos infinitos (15); ora, as seis letras do
alfabeto (16) têm mais resplendor do que o centro do sistema planetário. Aqui
está a sabedoria. Aquele que tem inteligência calcule o enigma oculto nessas
páginas dedálicas”.
“O grêmio triunfante é também semelhante a um generalíssimo
que buscava ótimas espadas de cabo de ouro de vinte e dois quilates (17) e
tendo visto uma de grandioso valor dentro de um estabelecimento de armas
bélicas (18), tendo uma lâmina fundida com aço, manganês e zircônio, foi vender
tudo o que possuía e a comprou”.
“Finalmente, o grêmio triunfante é semelhante a um Diógenes
(19) moderno, que procurava uma nitroglicerina colossal com aparelhos adrede
preparados para a execução final, concebendo então no âmago dos olhos do
entendimento essa musculatura química, assentou uma no sol, e a outra no
satélite da terra; hoje, ainda está trabalhando o grandioso aparelho que divide
os Tempos, porém, somente o nosso Pai que está no Reino dos Céus conhece o
segundo exato da solene e amena realização”.
“Terceiro
Pavilhão, 26 de Abril de 1925”.
Como acabamos de ver, a Lenda indiana é um amontoado de
frases com caracteres simbólicos calcados num misticismo erótico que V.
reproduz, rememorando acontecimentos ocorridos durante a sua vida escolar.
Todos os seus trabalhos literários são assim desse feitio. Há, neles, porém,
algumas vezes, períodos interessantes criados com bastante originalidade.
Para terminarmos, escutemos dele mais a seguinte poesia:
O canto do Cisne (20)
“Num lago cristalino vários Cisnes gemem
O hino da morte álgida. A coruja infrene (21)
Abrindo o bico solta o alarido atroz, tremem
Os Cisnes na solidão sem cilício perene”.
“No augúrio nunca fica em silêncio profundo,
Ninguém afugenta essa ave muito enfadonha
Da inclemência sutil no merencóreo Mundo.
O símbolo da última Dor soluça e sonha”.
“O hino da morte álgida vendo no espaço
O fundo azul sob uma forte tempestade (22)
Sente então Nostalgia e bastante cansaço...
Não desce jamais algo de melifluidade”.
“Nota altíloqua solta ainda a ave maldita
No lago cristalino sem piedade, tontos (23)
Os pobres Cisnes não tem uma hora benedita
De silêncio no Rosário de suas contas”.
“Mas um dia a trombeta (24)
Galênica soará
Lá no azul
Religioso
Do paul,
Carinhoso
Lenitivo sentirão.
Os Cisnes bastante álgidos,
E enfim, surgirá a Visão
De seus dias insípidos.
A asa da morte será
Mais suave e gentil na meta.
Jesus
Da glória (25)
De luz
História
Contará
A Galeno
No fundo Azul
No ígneo Inferno
O Rei Saul
Perdeu o trono
De Israel,
Forte Assomo
Gabriel
Galênico
Desmanchai (26)
Dedálico
Augúrio santo
Daquela triste
Ave de encanto,
Ninguém resiste
Tempestade acolá!
Caridade
Tem Jehovah
Autor
Dos teus
Do amor
De meus
Dias residente
No lugar bem quente.
Bela lição
Do coração...”
Essa poesia foi escrita em 1924, quando já havia desaparecido
o período de excitação de que o doente foi acometido durante um certo tempo,
como já vimos mais atrás.
Não há encadeamento lógico nessa sua inspiração; encontramos
nela uma associação de ideias extravagantes. As representações simbólicas como “Cisne”,
“coruja”, “Galênica”, etc., surgem do subconsciente de V. mecanicamente
evocadas, provavelmente, pela contiguidade de ideias.
Também encontramos frequentemente nas produções artísticas
desse doente, neologismos, símbolos e estereotipias, que apresentam certo
interesse para se proceder a um estudo psicológico retrospectivo da sua vida
anterior à vesânia.
“Os neologismos”, diz A. Marie (27), “assemelham-se à
linguagem dos crônicos, refletindo seus simbolismos e sintetizando seus
sistemas delirantes. Este último se cristaliza de certo modo em seu automatismo
e em sua monótona repetição. Através de suas aparências incoerentes é, às
vezes, possível deduzir de sua amálgama as grandes linhas de uma cadeia de
concepções progressivas, fixadas em certo modo em seus grandes rasgos e
imobilizados pelo mecanismo de detenção ideo-emocional sem mais significação,
às vezes, para o mesmo demente, que esquece o seu valor mnemônico primitivo.
Entretanto, se se segue o caso, podem-se encontrar, em certo modo, registradas
nestas estereotipias as estratificações delirantes extintas, de que não formam
mais que o córtex vazio. Como nas camadas geológicas, o sábio pode ler as fases
atravessadas pelo planeta, o linguista pode encontrar o eco da evolução
histórica dos que falaram, do mesmo modo, as estereotipias destes delirantes,
em aparência incoerentes, refletem e conservam à sua maneira e fielmente, o
traço de sua evolução sistemática”.
“Por outra parte, as estereotipias são fenômenos de evolução
normal como a tendência ao simbolismo e as determinações ideo-emocionais”.
Notas:
1 – O grêmio triunfante simboliza o reino do céu.
2 – O menino sedento de genialidade é o próprio V.
3 – Esta se refere à vida de V. ; foi no dia 12 de Fevereiro
de 1904, domingo, que ele conquistou, por intermédio de Jesus Cristo, uma coroa
de ouro, no segundo dente molar do maxilar superior.
4 - ?
5 – Isto significa que V. recebeu Jesus Cristo, pela segunda
vez, na sede da alma; Maio de 1904. (Provavelmente quando ele refere que
recebeu Jesus Cristo na alma, devemos entender isso como reminiscência de
comunhões ministradas na Igreja ao doente, quando frequentou colégios
religiosos).
6 – Tem o mesmo significado.
7 – Idem, idem.
8 – Refere-se este trecho à realização da promessa da coroa
de ouro.
9 – Aqui, V. relata que no dia 14 de Fevereiro de 1911
fora-lhe colocado meio pivô de ouro no seu dente incisivo; no dia 15 do mesmo
mês, o 2º pivô. Por último, em 18 de Fevereiro, fora-lhe colocada a 2ª coroa de
ouro.
10 – Provavelmente, V. se refere neste trecho à Ressurreição de Jesus Cristo.
11 - ?
12 – V. explica que essa passagem se refere à trilogia
celina.
13 – Este trecho é alusivo ao Cirurgião Dentista que colocou
nos seus dentes as coroas de ouro.
14 – Ele se refere ao diretor do Hospital do Juquery, a quem
é oferecido este poema.
15 – Os quatro fundamentos infinitos referem-se às quatro
datas misteriosas: 25 de Março de 1904; 3 de Maio de 1904; 13 de Maio de 1904 e
21 de Maio de 1904. Estas datas v. não as revelou.
16 – As seis letras do alfabeto no algarismo romano (DCLXVI =
666) são alusivas ao Coronel E.L.D. (Fazendeiro residente em São José do Rio
Preto) que V. chama a besta principal do Apocalipse.
17 – A espada de cabo de ouro de 22 quilates simboliza a
riqueza e a glória de V.
18 – O estabelecimento de armas bélicas simboliza as
escrituras santas.
19 – Diógenes simboliza o homem puro.
20 – O canto do Cisne é uma metáfora escrita por V. e
dedicada ao médico alienista do 3º Pavilhão, com o fim de solicitar deste
providências contra um companheiro que gritava o dia todo, perturbando a paz dos doentes que se achavam de cama. O
canto do Cisne simboliza a morte e é alusivo aos que estão passando mal na
Enfermaria.
21 – A coruja infrene, etc., refere-se ao companheiro que
passava o dia todo gritando no Pavilhão.
22 – Refere-se este trecho à agonia dos doentes moribundos.
Quando se aproxima a morte, os doentes têm a sensação rápida e nítida de ver e
passar pelos seus sentidos como se fosse uma visão caleidoscópica, os quadros e
as paisagens que a natureza impressionou as suas células cerebrais
anteriormente.
23 – Os pobres Cisnes, como já vimos, são os doentes; “o
Rosário de suas contas...” representa os últimos dias da vida.
24 – Simboliza a justiça do médico que deverá por termo às
gritarias do companheiro.
25 – O médico será interrogado por Jesus Cristo sobre o
barulho da Enfermaria.
26 – Esta passagem é interpretada do seguinte modo: vós,
doutor, deveis calar o canto daquela ave terrível que é a coruja, isto é, o
companheiro que gritava na Enfermaria.
27 – Misticismo e Loucura, tradução espanhola, pag. 250,
Madrid.