No primeiro parágrafo,
Osório César pontua os temas do capítulo 3.
A seguir, pode-se
observar que ele usa os termos “demência precoce” e “esquizofrenia” alternadamente
para a mesma condição, expondo discussão sobre esses conceitos embasada em
vários autores. Vemos assim que essas conceituações estavam em debate nesse
momento. Também o uso do termo “autismo”, que não correspondia exatamente ao
seu uso atual, entrava nessa discussão. De resto, como sempre acentuamos, há
palavras e expressões próprias da década de 1920, que devem ser adequadas a
esse período.
...continuação do
texto...
Conceito
clínico-psicológico da demência precoce. Interessante biografia de um demente
precoce paranoide. “o autismo” do professor Bleuler. Desenhos de
esquizofrênicos (estudo comparativo). Interpretação psicanalítica dos quadros
de uma pintora paisagista do Hospital do Juquery. Poesia, literatura e desenhos
de três dementes precoces.
A demência precoce é uma moléstia mental estudada
primeiramente por Morel em 1858, cujo conhecimento foi mais tarde desenvolvido
extraordinariamente por Kraepelin, constituindo o seu estudo clínico “uma das
mais belas concepções”, como diz Roxo desse autor alemão.
A definição que dela deu o professor Júlio de Mattos (1) foi
a seguinte: “É uma psicose constitucional caracterizada por uma desagregação
das funções afetivo-motoras e intelectuais, sobrevindo, em regra, na
adolescência ou na juventude e tendo por termo, para a qual caminha através de
episódios alucinatórios e delirantes, uma irreparável falência mental”.
Muitas designações têm sido propostas para assinalar esta
entidade mórbida: Demencia sejuntiva
(Gross); Demencia paratônica
(Bernstein); Esquizofrenia (Wolff.
Bleuler); Ataxia intrapsíquica
(Stransky), etc.
A esquizofrenia, como diz Lafora (2), não é uma moléstia
mental que surge bruscamente num indivíduo são, mas é uma exaltação violenta e
patológica de um processo que anteriormente se desenvolvia pouco a pouco em um
indivíduo de aparência normal, sob a forma da chamada constituição mental “esquizotímica”.
No início da demência precoce geralmente aparece
irritabilidade exagerada, sensação de mal estar e humor alterado. A
personalidade começa a se modificar. O indivíduo não é mais o mesmo. Há
profunda transformação do seu “eu”. As respostas são dadas de mau humor e um
ódio surdo, sem razão de ser, pelas pessoas de sua família, se implanta na
imaginação do demente precoce, a ponto de se tornar um perigo a sua permanência
em casa. As reações emotivas são intensas. Lógica absurda. Quando se lhe
comunica a notícia do falecimento de qualquer pessoa da família, como seja do
pai, mãe ou irmãos, ele a recebe com satisfação, como se fora uma boa nova.
De todas as sensações é a dor que persiste por mais tempo na
demência precoce.
A consciência não desaparece senão em estado de grande
excitação ou de intenso estupor. A memória se encontra sem alteração sensível.
É muito comum verem-se dementes precoces que recitam de cor
poesias longas, discursos, trechos latinos de coisas aprendidas nos tempos de
escola.
O raciocínio a pouco e pouco vai se tornando de nível
inferior, até que chega a ser tolo e pueril. As associações de ideias são
extravagantes e muitas vezes sem nexos. Casos há (são frequentes) em que se
nota o chamado negativismo intelectual (Bleuler). O doente não consegue dar uma
resposta razoável e, numa verdadeira paralogia constante, diz um grande absurdo
em resposta ao que se lhe pergunta. Por exemplo, pergunta-se que idade tem e
diz um dia (Roxo).
As perturbações de cenestesia são notáveis. Dizem-se
influenciados pela eletricidade, pelo rádio e telégrafo sem fio. Acham-se
magnetizados, hipnotizados; sentem-se roubados de suas ideias.
A capacidade intelectual diminui e o doente cai
irremediavelmente num primitivismo pueril e extravagante.
As ideias sexuais não são raras; elas vêm com as alucinações.
Os doentes ouvem vozes que os acusam de terem sido vítimas de pederastia.
Tiram-lhes os órgãos sexuais. Introduziram-lhes varetas de ferro no ânus.
Os atos impulsivos tornam esses doentes perigosos. São
frequentes as agressões por parte deles a pessoas de quem recebem gentilezas.
São traiçoeiros.
O negativismo, cuja definição de Kahlbaum consiste na
tendência permanente e instintiva a reagir contra toda solicitação do mundo
exterior, qualquer que seja a sua natureza, invariavelmente acompanha a
demência precoce durante o período da evolução até o seu estado terminal.
Daí o observar-se nesses doentes a sitiofobia, o gatismo e o
mutismo.
Na sitiofobia há recusa terminante dos alimentos. Muitas
vezes a oposição do doente é tão grande que necessário se torna o médico lançar
mão da sonda a fim de não ficar o doente sem alimentos.
No gatismo ou imundície, os doentes não se incomodam com a
limpeza de si próprios. Sujam-se com urina, fezes e toda sorte de imundície que
encontram.
No mutismo, o doente fica sem pronunciar uma só palavra meses
e anos. Conhecemos um doente no Hospital do Juquery que desde a sua entrada (há
dois anos seguramente) até agora se conserva no mais absoluto mutismo.
As estereotipias são frequentes nos dementes precoces; elas
se apresentam sob duas formas: as acinéticas
e as paracinéticas.
As acinéticas se caracterizam por atitudes extravagantes da
postura tomadas pelos doentes. Ficam horas inteiras imóveis, agachados num
canto ou em pé, com a cabeça baixa.
As paracinéticas são as estereotipias de movimento. Os
doentes caminham sem parar de um lado para outro ou esfregam os dedos
repetidamente.
O maneirismo é uma manifestação também muito frequente na
demência precoce. Consiste na afetação dos atos do doente.
A demência precoce, segundo Kraepelin, na 7ª edição do seu
Tratado de Psiquiatria, está dividida em três formas: hebefrênica, catatônica e paranoide.
A hebefrênica caracteriza-se principalmente pelas perdas da
afetividade e iniciativa, associação extravagante de ideias, modificações da
personalidade, abaixamento do nível intelectual e distúrbios sensoriais com
alucinações multifárias (Roxo).
A demência precoce catatônica é constituída essencialmente
por perturbações motoras. Negativismo, sugestibilidade e estereotipia.
A paranoide tem como sintoma capital a ideia de posse física
e o eco do pensamento (Kraepelin).
Segundo Regis (1*), podem-se distinguir, no conjunto dos
estudos mórbidos englobados por Kraepelin sobre a denominação comum de demência
precoce, dois tipos essencialmente distintos: demência precoce constitucional ou degenerativa e demência
precoce pós-confusional, aproximada da demência
precoce e da confusão mental.
Exemplo do primeiro tipo: indivíduos moços, mais ou menos
tarados anteriormente, que, depois de revelar certas tendências intelectuais,
estacionam logo, depois declinam, na ocasião e sobre a influência autotóxica do
processo púbere.
Exemplo do segundo tipo: aqui, com ou sem predisposição
anteriormente marcada, o processo patológico começa por um período de confusão
mental aguda, tóxica ou infecciosa. No curso ou em seguida a este acesso agudo,
aparecem fenômenos de estupor com os sintomas característicos da catatonia.
Ultimamente a tendência da psiquiatria é não considerar mais
a demência precoce como uma doença única e sim como uma síndrome. E é o que
parece mais acertado. Oswald Bumke (1**), justificando este modo de encarar a
demência precoce, escreveu o seguinte: “Verdadeiramente, a esquizofrenia não é
uma doença única. As numerosas variantes
de seu curso clínico é o fato de que em quase todas as doenças orgânicas
conhecidas (do sistema nervoso) podem apresentar quadros clínicos
esquizofrênicos, fazem pensar que os sintomas esquizofrênicos constituem formas gerais de reação, com os quais o
encéfalo pode responder a muitas diversas
causas mórbidas”.
E, mais adiante: “Portanto, as síndromes esquizofrênicas,
ainda quando se mostram com tais particularidades características, não
justificam hoje em dia a fórmula de conclusões clínicas especiais. É
absolutamente certo que se apresentam excitações catatônicas e estados de
estupor nas infecções e intoxicações da mais variada natureza, assim como no
climatério, na senilidade, na paralisia, na sífilis cerebral e em seguida aos
traumatismos do cérebro; igualmente certo é também que esquizofrênicos típicos
pelo seu curso podem ser evidenciados ou provocados por afecções febris e pelo
puerpério”.
Este mesmo autor define assim a demência precoce: “sob a
denominação de demência precoce ou de esquizofrenia englobamos (no momento atual) numerosos casos de
doença, cuja especial característica consiste numa destruição da personalidade psíquica que tem lugar, sem causa
conhecida, nos anos juvenis”.
“Os sintomas especiais de todos os processos esquizofrênicos”,
diz Bumke, “consistem em uma característica desagregação do pensamento,
determinadas pseudo-percepções específicas e reações afetivas paradoxais”.
Por esta narração sintética da opinião de vários autores, que
acabamos de fazer acerca da demência precoce, podemos avaliar, desde já, quanto
devem ser interessantes as manifestações artísticas criadas por essas
personalidades constituídas de acentuadas desagregações do curso da associação
das ideias, de alucinações, ideias delirantes, eróticas, persecutórias, de
grandeza, automatismos, estereotipia, etc..
Vejamos, por exemplo, a autobiografia abaixo transcrita de um
demente precoce paranoide do Hospital do Juquery, onde se mostra bem patente um
delírio absurdo de grandeza, com fundo religioso.
MA BIOGRAPHIE
Par E.P.
“Je suis né le 25 Mars 1885, à Londres. Je fus habiter le
grand-duché de Luxembourg, où je m’installai avec ma famille. Le calendrier
bourgois n’a que 45 années depuis cette époque jusqu’a aujourd’hui. Mais m avie
dura um confort ecclésiastique. M avie se divise em époques: la première, mon
enfance avant lécole primaire, la deuxième, l’école primaire, la troisième, ma
jeunesse avant mon entrée dans les ordres, la quatrième, depuis mon entrée dans
les ordres jusqu’au moment où je fus hors d’office, la cinquième m avie de
Priva-Dozent, et de Monarque, jusqu’à l’époque où j’arrivai à São Paulo, la
sixième, ma vie comme professeur e Président de République jusqu’au moment où
je me révellai avec Dionysius Verdin, dans le parloir de cette Maison. Je reçus
les Saintes-Ordres comme suit: Von Mettlach, qui est aussi von Dobelutz,
Professeur à l’Université de Halle, ff. d’évêque de Luxembourg, me conféra les
ordres Mineurs à Paris, lorsque je fus sacré Roi de Belgique, sous le nom de
Frommler. (Le Sacre des Rois de France, par Rotoiger, Paris
Metzger 1900 – The Tipies of the Old Testament, by Francis Andrew Lang). Je
reçus le jour diaconat et le diaconat avant, respectivement après le sacrament du
Mariage, à Halle an der Saale, lorsque je fus l’empereur d’Allemagne, Guillaume
II. Le Sacerdoce me fut
conféré par le meme prélat, à Luxembourg, avec mes camarades, qui étaient dans
les ordres. Le reste des ordres, pour être évêque, sont de la Basilique de
Saint Pierre, à Rome, par le pape Pie X, et constituent toutes les céremonies
liturgiques qui y eurent lieu, durant mon séjour au college germanique”.
“Comme enfant
j’avais toujours la taille d’um homme âgé, excepté au college Saint Gervais, où
mes dimensions variaient. Le sommeil, cependant, m’était defender. Dans la
première période nous habitions à Trois-Virges où mon grand-père, de grand-Duc
d’Oldenbourg, comme du Kulturkampf, demeurait encore plus tard. Et nous
voyagions beaucoup, de sorte que nous fumes plusieurs fois le tour du monde et meme
nous faisons des voyages sur les étoiles. De là, je rapportais beaucoup de trèsors, j’achetais les pays
de la terre et les astres, que je déposais dans mon trésor. J’achetais encore
des lettres amoureuses, qui avaient une grande valeur. Mais mon triomphe était
la Russie. J’avais des titres comme Seltrab, empereur de Suède (320 après Jésus
Christ). Voir Welten, Handbuch der Weltgeschichte, p. 90,
Selenius, empereur de Byzance 201-202 (Welten, p. 88), Helmarum empereur de
Rome-Ostrogoths 201-202 (Welten, p. 88), Procopio pape”.
Como vimos, é um delírio de grandeza absurdo, que o doente
escreveu em francês, com convicção de ideia. O seu mundo é inteiramente fantástico.
Vive enclausurado no seu sonho. É isto o
que constitui o “autismo” do professor Bleuler (1***). “Os esquizofrênicos
perdem o contato com a realidade; nos casos leves isso se nota apenas de vez em
quando; nos casos graves, a todo o instante. Por isto vivem num mundo
fantástico, onde satisfazem toda a espécie de desejos e ideias de perseguição.
Ambos os mundos, entretanto, para eles são reais, e, às vezes, podem ser
conscientes do que se passa nos dois. Em outros casos, o mundo artístico é para
o paciente o mais real; o outro, o nosso, é só um mundo aparente. Nos casos de
média gravidade aparece, em primeiro lugar, qualquer um dos mundos, segundo a
constelação, e mesmo acontece, embora raramente, doentes que passam
voluntariamente de um para outro, Os casos mais leves se movem mais na
realidade; os mais graves não podem separar-se do mundo do sonho, mesmo para as
coisas mais simples, como o comer e o beber, ainda que conservem um certo
contato com a realidade”.
Notas de Osório César:
1 – Elementos de Psiquiatria. Porto, 1911.
2 – Estudio psicológico del cubismo y expressionismo. Arch.
De Neurologia, Tomo III, nº 2, Madrid, 1922.
1* - Précis de Psychiatrie. Coll. Testut, 5. Edit. 1914.
1** - Tratado de las enfermidades mentales, pag. 898 e seg.
Trad. Esp.
1*** - Tratado de Psiquiatria. Trad. Esp. Calpe, 1924.