Após o título do
Capítulo 2, Osório Cesar faz uma citação sumária dos assuntos a serem tratados
neste capítulo conforme segue:
Os artistas do manicômio. Necessidade de uma emoção estética.
Curioso caso de um escultor cubista do Hospital do Juquery. Arte decorativa.
Pinturas murais. A tatuagem. A música (estudo comparativo). A dança (estudo
comparativo).
Segue-se o texto do capítulo 2...
A manifestação artística em certos
alienados, sob qualquer forma (escultura, desenho, pintura, poesia, etc.) é uma
necessidade indispensável à sua vida de enclausurado. Talvez seja isto o motivo
para que as suas ideias alucinatórias, de grandeza, etc. venham a se objetivar
mais demoradamente no mundo da realidade material. E dessa forma nós observamos
um fato singular. Os doentes que se entregam a essas cogitações ficam calmos,
trabalham com prazer, estilizam as suas manifestações de arte com inteira
satisfação de ânimo. Dir-se-ia que os seus pensamentos se perdem num enorme
mundo de belezas.
E não se julgue que essa atitude de
arte entre os alienados seja produto de reproduções mecânicas, estereotipadas,
feitas sem interesse, sem afetividade. Puro engano. Grande parte desses artistas
insanos possui uma verdadeira idolatria por tudo o que fazem e seus trabalhos
são, às vezes, sob o ponto de vista estético, de um valor inestimável.
Vejamos.
Entre os artistas de Juquery, onde
fomos buscar uma boa parte de nosso material, predominam os incultos, pelo que
o número dos loucos poetas e literatos é muito reduzido. Os plásticos e os
picturais são, ao contrário, mais numerosos.
Vamos tratar do caso de um escultor
muito original, cubista, cuja história é interessante por se tratar de um
indivíduo que nunca teve noção de arte e cuja educação intelectual sempre foi medíocre.
As sua produções escultóricas giram todas num idêntico princípio: o feiticismo
(1), e em algumas delas deixam reproduzir o sentimento atávico evocando a alma
dos antepassados de sua raça.
Passemos à história do doente:
T., 32 anos, preto, soldado da
polícia, casado, católico, brasileiro, procedente da Cadeia Pública. Entrou no
Hospital do Juquery a 2 de julho de 1919. Pai falecido há 22 anos. Mãe viva e
forte. Tem quatro irmãos normais. Sabe ler e escrever. Teve na infância
moléstia grave cuja natureza ignoramos. Na puberdade teve as primeiras práticas
sexuais aos 17 anos.
Doente removido da Cadeia Pública,
onde estava preso por ter assassinado a mulher a machadadas.
Somaticamente apresenta diversos
estigmas de degeneração, tais como assimetria craniana, orelhas pequenas e
abauladas, abóbada palatina funda e pés chatos.
Conta ele que ultimamente não tinha
sossego em casa, porque todo o mundo se implicava
com ele e por isso resolveu mudar-se. Mas não alcançou tranquilidade; os cursos operários, as telefonagens, as
cloroformizações continuaram.
Mesmo de longe, o agente o dominava, mudando o seu
pensamento e dando-lhe choques elétricos pelo corpo.
Um dia houve uma embrulhada; ficou
cloroformizado e as telefonagens o obrigavam a matar a mulher. Esta, porém, não
morreu, segundo ele afirma, mas multiplicou-se e hoje há muitas mulheres
idênticas à sua. Ele também foi morto e desdobrou-se em B.
Aqui, no Hospital, continuam a perseguí-lo.
Fazem tudo para aborrecê-lo; cantam como galo, latem como cachorro, viram o seu
pensamento, que, aliás, é conhecido por todo o mundo.
Reage muitas vezes e procura agredir
os empregados ou os demais doentes; no mais passa bem e conversa com relativo
acerto.
Esta observação que acabamos de ver
foi tomada pelo Dr. Alvarenga, em 2 de fevereiro de 1919. Hoje o doente se apresenta
mais calmo, porém a sua história em nada modificou. Além disto, ele se intitula
médico, comunica-se de vez em quando com “os poderes espirituais do espaço” e
receita fórmulas com medicamentos da sua extravagante imaginação, criando
neologismos interessantes. Eis aqui um exemplo de uma fórmula para curar
febres:
Dracinus com mel de pau.....50,0
Clorente................................30,0
Álcool drocies......................183,0
Corsemante........................300,0
Tome meio cálice de 2 em 2 horas.
Ultimamente a sua preocupação diária
é modelar em barro figuras grotescas de uma originalidade palpitante e de um
realismo disforme. Elas representam, a nosso ver, em T., como mais adiante
justificaremos, um grito atávico de recordações passadas.
Vejamos a figura 50, uma das suas
curiosas produções. “São Jacinto” é o nome que ele gravou nos pés da escultura.
É um feitiço. “A imagem”, diz ele, referindo-se a São Jacinto, “foi construída com
o ouro mais puro da mina que encontrei no terreiro e ela possui a virtude de
espalhar a felicidade entre os homens”.
Do ponto de vista artístico nota-se
uma certa originalidade na expressão que a figura apresenta.
A cabeça está coberta por um boné,
tendo no alto uma cruz e lembra uma “pose” de “apache”. Na face, nota-se, além
dos olhos empapuçados, o nariz desajeitado e chato, caindo em diagonal sobre a
boca semiaberta. Uma longa barba cobre todo o queixo, terminando no abdômen dilatado.
Não se veem os braços nem as mãos. As pernas, pequenas e desengonçadas,
emprestam a esse monstrengo uma atitude singular. Na perna direita nota-se uma
atrofia acentuada dos músculos da coxa. Essa escultura faz-nos lembrar a
carranca grotesca da Igreja de Santa Maria Formosa, em Veneza, produto da arte
decadente italiana, e que Ruskin descreve da seguinte maneira: “uma cabeça
enorme, horrenda, sobrenatural, de uma degradação bestial, excessivamente
ignóbil para ser descrita ou para ser olhada mais de um instante” (1*).
Charcot e Richer, levando essa arte
disforme para o terreno da medicina, estudaram acuradamente num livro
interessante (2) a célebre cabeça da Igreja de Santa Maria Formosa. “L’artiste
de Santa Maria Formosa”, dizem eles, “em quête d’um type grotesque, nous parait
l’avoir rencontré sur son chemin, vue de ses yeux, saisi au passage et
reproduit avec une fidélité qui nous permet aujourd’hui d’y retrouver les
marques d’une déformation pathologique, d’une affection nerveuse nettement definie
et dont nous avons eu récemment sous nos yeux, à la Salpêtrière, des exemples
fort intéresssantes. Il s’agit d’um spasme de la face d’une nature spéciale,
coexistant solvente chez les sujets hystériques mâles ou femelles avec une
hemiparalysie des membres et présentant des caracteres si tranches qu’il est
impossible de le confondre avec une autre affection spasmodique faciale”.
Quanto ao nosso artista, não possuímos
melhores informações do seu passado, além das que já vimos. O meio em que ele
viveu, certamente não o ambientou nessas tendências escultóricas, pois foi
soldado de polícia durante muito tempo.
Na escultura da figura 51, muito mais
extravagante, nos mostra a sua arte. Ela apresenta todos os caracteres da arte
cubista (3). Sentimos dentro dela palpitar a mentalidade primitiva representando
uma ideia religiosa sob uma forma plástica de beleza. Não se assustem os
leitores se classificamos de beleza a obra deste artista alienado. Hoje em dia
a concepção de beleza tem sentido muito diferente do que há anos atrás.
(seguem abaixo as notas de rodapé de Osório Cesar)
1 – Feiticismo e não Fetichismo como
erradamente se costuma escrever. Este vocábulo é de origem portuguesa e não
francesa, como muita gente ainda pensa. Vem de feitiço e foi empregado pela
primeira vez, muito antes dos franceses, pelos primeiros exploradores de Guiné,
como diz muito bem Fernando Ortiz no seu interessante livro “Glossário de
Afronegrismos”, às páginas 204 e 205, que passamos a transcrever:
“Fetiche.m. – Cada uno de los ídolos de
culte supersticioso em tierra de negros”.
“Asi disse la R. Academia, y dando
por aceptable esta definicion, sin entrar em analisis, muy posibles a la altura
de los actuales estúdios comparativos de las religiones, passemos a la
etimologia”.
“Esta palavra no es um afronegrismo,
aunque se refiera a cosas de los negros africanos, al igual que sucede com otros
vocábulos forjados por los europeus, como ‘etiopia’, o por los árabes, como ‘cafre’,
etc.”
“La R. Academia supone que
etimologicamente la palavra proviene del francés, fétiche, y este del latin, factitius,
de facere, hacer”.
“Sin embargo, la opinion mas
generalizada, y la mas verossímil, es que fétiche
procede del portugués feitiço ‘hechizo’,
aplicado por los primeiros exploradores de Guiné, muy anteriores a los francezes,
a los objetos proprios de las supersticiones y rito de los africanos”.
“Sabido es que la voz fétiche, asi como las derivadas fetichismo, fetichero y fetichista
fueron lanzadas a la circulacion del lenguage cientifico por la famosa obra de
Ch. De Brosses – Du culte des Dieux
fetiches ou Parallele de l’ancienne Religion de l’Egypte avec la Religion actuelle de Nigritie
(1760). Y em la seccion primera de este libro (pag. 18) se hace constar
claramente que el vocablo fetiche
procede del portuguéz antiguo fetisso,
de la raiz latina fatum”.
“Pero
antes el holandês Bosman (A New and
Acurate Description of the Coast of Guinea,
Londres, 1721, pags. 121
e sigts) ya usó ampliamente el vocablo y explicó sus varios sentidos, como bien
disse The Encyclopedia Britannica
(1914)”.
“Todavia pudiera añadirsele a tan
autorizada enciclopédia, em el siglo XVII, em 1665, encuentrase y ala voz
portuguesa fetisso, y algunas veces,
por error, fetisto y fetistoes,
usadas por ingleses para significar lo que hoy desimos fetiche. Como se ve, el origen portugués del vocablo es evidente, y
la etimologia franceza, que nos propone la R. Academia Española, es
rectificable”.
1*
- John Ruskin – Les Pierres de Venise. Trad. Francesa, pag. 244.
2 – Les disformes et les Malades dans
L’Art. Pag. 3, Babé. Edit. Paris, 1889.
3 – A arte cubista e a expressionista
representam o cume da arte subjetiva e individualista, pois nelas o artista
proclama inteira liberdade absoluta de expressão, de técnica e de seleção de
motivos não sensoriais. É a arte cerebral por excelência, porém nesta
cerebração o fundamental ou o inicial é de inferior categoria psíquica, é um
esforço para a vida primitiva, e o superior, psiquicamente considerado, é a
elaboração ornamental que a consciência acrescenta logo para revestir
inteligentemente os símbolos e complexos subconscientes da criação artística
(Lafora, obra cit.).