Continua o texto...
A arte na criança apresenta o
mesmo caráter simbólico e representativo da arte do primitivo. Ela é simples e
desprovida em grande parte de fantasia.
A imaginação da criança, como a
do primitivo, é realista em extremo. Os seus desenhos se limitam em arremedar a
natureza com representações de cenas da vida diária.
De 3 a 7 anos os desenhos desses
pequenos observadores se resumem em rabiscos com aparências de animais e na
maioria com forma humana. Em grande parte são desenhos muito simples e despidos
de decoração.
Após os 10 anos é que se
verificam, principalmente nos meninos, desenhos de flores e frutos, bem
cuidados e com esmero decorativo. Assemelham-se muito os desenhos de crianças
com os das raças primitivas e com os desenhos dos alienados, principalmente os
dos dementes precoces.
“Na primeira e na segunda
infância”, diz Spencer (1), “verifica-se uma absorção de sensações semelhantes
à que caracteriza o selvagem”.
“A criança que destrói os seus
brinquedos, que fabrica figurinhas com terras, que dirige seus olhos para todas
as coisas e pessoas, dá provas de muita perceptividade e de uma reflexão
relativamente débil. A mesma analogia existe na tendência à imitação. As
crianças repetem em seus brinquedos cenas da vida dos adultos e dos selvagens
e, entre outros atos de imitação, repetem as ações de seus hóspedes
civilizados.”
“O espírito da criança carece da
faculdade de distinguir entre os fatos inúteis e úteis; o mesmo acontece ao
selvagem”.
Mais adiante continua Spencer: “A
criança de nossa raça é como o selvagem, incapaz de concentrar sua atenção em
algo complexo ou abstrato. O espírito da criança, como o do selvagem, não tarda
em divagar por puro esgotamento, quando tem que se ocupar de generalidades e de
proposições complicadas. Tanto num como noutro, são débeis as faculdades
intelectuais superiores; é claro que precisam ideias que se não compreendem
senão mediante concurso dessas faculdades, e se possuem algumas são muito poucas.
As crianças, como os selvagens, têm em suas línguas algumas palavras de
abstração menos elevadas e não têm nenhuma das mais elevadas. Desde cedo a
criança sabe muito bem o que é cachorro, gato, cavalo, boi; mas não possui
nenhuma ideia do animal, independentemente da espécie; passam-se anos sem que o
abstrato entre em seu vocabulário. Assim, tanto na criança como no selvagem,
faltam os mesmos instrumentos de um pensamento desenvolvido”.
Nos primeiros meses de idade, o
que mais impressiona a sensibilidade da criança é o barulho, são os objetos
brilhantes e as cores muito vivas (o vermelho, por exemplo). É a primeira
manifestação de arte que a criança experimenta. Depois de um ano, mais ou
menos, é que começa a aparecer uma certa afinidade pela música e sobretudo pelo
desenho. Este tem agora a sua primeira manifestação caracterizada por rabiscos,
garatujas com significação simbólica, constituindo para a criança divertimento
precioso encher folhas e mais folhas de papel do que lhe dita o inconsciente.
Dos dois anos e meio para cima, são as representações humanas e de animais
domésticos que fazem o seu grande prazer gráfico. É neste período que ela mais
se assemelha aos selvagens atuais. Seu desenho é sintético; constitui apenas
uma tosca caricatura dos objetos que lhe rodeiam. Depois vem o período
imitativo, dos 10 anos em diante, no qual as reproduções gráficas são mais
cuidadas, estilizadas e já ornamentadas com objetos do mundo vegetal (folhas,
flores, etc.). As tendências artísticas nas crianças desta idade são
infelizmente ainda hoje, principalmente entre nós, sacrificadas, em virtude da
má orientação dessas disciplinas nas escolas. A criança não tem liberdade
artística nenhuma. Limita-se a copiar servilmente a natureza, reproduzindo os
modelos que os mestres lhes dão. O resultado disto é que elas sempre fazem
coisas semelhantes, sem originalidade e despedidas do cunho pessoal, o que não
deveria ser. O ensino do desenho precisaria ser completamente livre. Nada de
modelo. A criança espontaneamente reproduziria as imagens com ela sentisse
realmente, sem a preocupação de linhas, proporções e nem perspectiva. Só assim
veríamos surgir a arte sã, independente e subjetiva. Isto que acabamos de dizer
não constitui uma novidade. No México, o ensino do desenho nas escolas públicas
segue este princípio. A figura 11 é um desenho livre de um escolar do México.
Representa um Cristo crucificado. Encontram-se nele individualidade e
originalidade. À primeira vista parece tratar-se de um desenho hindu, tal é a
delicadeza e o rendilhado da estilização que ele representa. A figura do Cristo
é muito original. A cabeça contorcida mostra somente o perfil. Os cabelos
anelados caem sobre o pescoço. Braços muito longos pregados à cruz. Uma tanga,
espécie de toalha bordada, prende-se à cintura. A liberdade que o pequeno
artista mexicano teve para exprimir o seu sentimento de beleza foi tanta que a
sua imaginação criou uma inédita figura de Cristo, tão interessante como a dos
artistas da Renascença.
Victor Mercante (1*), nas suas
investigações experimentais sobre os sentimentos estéticos da criança, chegou a
um resultado bem curioso. Em 280 crianças ele tirou as seguintes conclusões,
que resumimos aqui:
1 – Os sentimentos estéticos nas
crianças são manifestações instintivas e não produtos de análises mentais.
2 – Há um pequeno grupo de
indiferentes (classificação Binet), em sua maior parte retardados.
3 – nos adolescentes
(classificação Baldwin) não existem senão sentimentos estéticos inferiores.
4 – A idade e o estudo, dentro do
círculo primário, são fatores que não orientam tendências estéticas elementares
nem estabelecem nas variações do afeto a ordem progressiva notada no
desenvolvimento das demais aptidões.
5 – O sexo, pelo contrário,
inclui diferenças notáveis. O sentimento estético da mulher é flutuante e
dispersivo, enquanto o do homem é fixo e reconcentrado.
6 – o significado dos gráficos
indica que as cores orientam melhor a afetividade do que o tamanho e a posição.
7 – Tratando-se de matéria inerte
e formas simples, parece lógico o supor-se que a simetria arrasta e centraliza
os gostos. Mas esta centralização não é absoluta e os sentimentos afetivos
sofrem desagregações importantes que se deve ter em conta uma classificação
distributiva de alunos. A evocação é, em geral, o elemento mais poderoso na
orientação dos afetos.
8 – No tocante a tamanhos, as
crianças preferem o pequeno ao grande, sem que a instrução e nem a idade
determinem um princípio de variabilidade nos juízes.
9 – No tocante às cores, os
homens preferem o verde e as mulheres o vermelho. O amarelo apresenta uma
percentagem de gostos mais acentuados nas mulheres do que nos homens.
As conclusões de Mercante estão
bem observadas.
Também Reja (1**) estudando a
evolução do desenho na criança, observou que ela apresenta três fases
distintas:
A primeira fase se limita a
garatujas informes, a confusões e linhas, onde a criança acredita ver os
elementos do objeto que deseja representar; a segunda fase, que constitui o
estilo pueril propriamente dito, se distingue por toscos esquemas, balbucios de
um simbolismo incipiente; a terceira fase de transição para um novo período
mental, onde se inicia uma nova direção: a da cópia realista da natureza.
“Existe nas crianças (2) uma
certa lei natural, um ‘canon’ podemos dizer, quanto à representação das formas
mais comuns. Em milhares delas, as interpretações coincidem num mesmo sistema
de estilização. A figura humana, por exemplo, envolvendo da síntese dos palitos
é assim representada: a cabeça por um círculo, o tronco por uma elipse, dois palitos
para as pernas, com extremidades quadradas representando os pés, ordinariamente
em sentidos opostos, dois para os braços com ramificações nos extremos para os
dedos, isso em número indeterminado... à vontade do artista... Alguns,
observando mais a anatomia, partem as pernas e os braços, atendendo às
principais articulações. Outros, cogitando de detalhes, juntam dois pequenos
círculos ou simplesmente pontos para os olhos, um traço vertical para o nariz e
um horizontal para a boca. Ainda outros cogitam das orelhas, dos cabelos e dos
dentes, dependendo essas diferenciações da idade, do adiantamento e
principalmente da tendência artística seguida... Quando executam composição
onde haja superposição de planos, não admitem corpos opacos. Absolutamente.
Numa figura de chapéu, a cabeça deve ser vista em transparência: é lei
inflexível”.
No rodapé constam:
1 – Los dados de la Sociologia. Trad. Hesp. Tomo I. pág. 137.
1* - Sentimientos estéticos del Nino. Arquivos de Psiquiatria y
Criminologia. Ano V, janeiro-fevereiro, 1906. Buenos Aires.
1** - Reja – L’Art dês
fous – cit. Por Nombela – Arquivos de Psiquiatria y Criminologia. Maio –
Junho de 1909, pág.311.
2 – Porciúncula Moraes – O ‘canon’ universal das crianças e a sua
tendência futurista. “O Jornal”, Maio, 1928.
Comentários sobre o texto:
Ao mesmo tempo em que o autor repete tendência da época na
interpretação entre aspectos cognitivos e psíquicos em diferenças entre
masculino e feminino, conforme já notamos anteriormente, ele aponta para
fatores limitantes da criatividade no ensino de então e cogita a respeito de
outras possíveis formas pedagógicas que pudessem ser mais estimuladoras da arte
espontânea.